Desenho de Robert Crumb, 1982
Bix Beiderbecke é o fac simile de Scott Fitzgerald no jazz. Têm vários pontos
biográficos em comum: ambos vieram do álgido norte rural (Bix do Iowa,
Fitzgerald do Minnesota), ambos procedentes de famílias bem estabelecidas e de
confirmada probidade, e ambos pontificaram a jazz age (designação cunhada por Fitzgerald) durante esses roaring twenties, em que foi moldado o
século XX. Por fim, ambos foram levados à morte pelo álcool, Bix muito cedo,
com 28 anos, o escritor apenas cedo, com 44.
Leon Bismark – nome tão pomposo que a família sempre
o apodou de “Bix” – Beiderbecke foi ao encontro do jazz empurrado pelo ar dos
tempos. Desde pequeno que revelava uma formidável precocidade musical e quando
os pais o internaram num colégio militar, numa derradeira tentativa para o
corrigir, desacautelaram que a escola ficava nos arrabaldes de Chicago, então a
cidade do vício. Enquanto o diabo esfrega um olho, Bix abandona os estudos e
entrega-se de corpo inteiro à boémia, destilados e jazz incluídos.
No dealbar da década de 20 o jazz era um som novo e
inesperado, provindo dos baixos da nação, do sul dos pobres negros descendentes
dos escravos. Tinha um ritmo hipnótico, com cheiro a selva e a perigo, capaz de
excitar a euforia e melancolia no mesmo compasso – nada recomendável, portanto.
Claro que isto só poderia entusiasmar um jovem impressionável como Bix
Beiderbecke.
Estranho sim é que Bix Beiderbecke tenha persistido
no jazz para além da adolescência, prosseguindo uma carreira como pianista e
cornetista no mesmo passo em que se mostrava refratário a qualquer educação
musical. E que não tenha desanimado após umas primícias profissionais
integrando os Wolverines, no final de 1923, septeto de dixieland (a versão cara-pálida do jazz negro de Nova Orleães) que
apesar de ter gravado alguns discos nunca deixou de ser trivial. É bom lembrar
que no ano anterior Louis Armstrong e King Oliver se haviam estabelecido em
Chicago e dali conquistavam a nação. Depois desta, Bix passou por mais duas
frustres experiências: uma vã tentativa de ingressar na Universidade do Iowa e
uma passagem pela orquestra de Jean Goldkette, baseada em Detroit. Foi aqui que
conheceu e teceu uma indefectível amizade com o saxofonista Frankie Trumbauer, que
passaria a ser o seu alter ego.
Singin’ the Blues
(vol. 1)
1927
Columbia CK45450
Bix Beiderbecke (cornet, piano); Frankie Trumbauer (saxophone); Eddie
Lang (guitarra); Jimmy Dorsey (clarinet, saxophone alto); Joe Venuti (violin);
Doc Ryker (saxophone alto); Bill Rank (trombone); Don Murray (clarinet); Paul
Mertz (piano); Seger Ellis, Irving Kaufman (voz); Chauncey Morehouse (bateria).
“Singin’ the
Blues”, “Way Down Yonder in New Orleans” e “I’m Coming Virginia”, todas canções
gravadas em 1927, são o apogeu da arte de Bix Beiderbecke. O
seu ouvido era insaciável e, arrebatado com Debussy e Ravel, depressa
incorporou na sua música as concepções harmónicas do impressionismo. Em
contraponto com o estilo pujante e estentórico de Louis Armstrong, sempre muito
lá em cima, Bix traça linhas melódicas mais emocionais do que musculares,
desenvolvidas com evidência lógica. Introvertido, os blues calhavam-lhe bem, pois
embora não os transportasse nos genes sentia neles o seu próprio registo desafectado.
Toda esta mistura era inédita, foi surpreendente e fez ângulo na história do
jazz.
Para
mais, se a partir da Chicago dos anos 20 o jazz deixou de ser um dialecto
regional e se tornou a música popular americana, a partir de Bix Beiderbecke, o
jazz, embora continuasse a ser uma questão negra, passou a estar ao alcance de
todos, independentemente de credo ou raça. Não se tratava de uma expropriação,
como mais tarde se acusou e nalguns casos até foi, mas de uma mundividência –
não o diminuiu, engrandeceu-o.
Bix Beiderbecke era uma figura excêntrica. Acerca
dele o anedotário é abundante e muito contribuiu para o melodrama com que
quiseram converter a sua vida numa lenda romântica: que não se descalçava
durante dias a fio; que se esquecia de tudo, inclusive instrumentos, em
qualquer lugar; que nunca trazia dinheiro nos bolsos; que dormia ao acaso. Hoje,
em vez do cliché do artista maldito, talvez seja mais sensato ver em Bix um idiot savant à semelhança de Mozart,
irresponsável e desligado de toda a realidade que não fosse musical. Sendo um
alcoólico relapso e compulsivo, para mais do gin marado da Proibição, fez
parte, se é que não a iniciou, de uma linhagem de músicos cujas vidas habitaram
o jazz como um drama existencial.
Bix Beiderbecke morreu aos 28, consumido mas
celebrado. E completo: a sua influência no jazz estava consumada.
José Navarro de Andrade
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Davenport Blues; Krazy Kat; Sorry, Singin’ the Blues.. já na play list. Obrigada e parabéns por mais um excelente texto.
ResponderEliminarConfesso mais esta ignorancia.O nome não me é estranho mas a musica totalmente.A gravação existente é audivel?Obrigado.
ResponderEliminarO texto continua de ótima qualidade.
Cara Ferol de Leça, todas as gravações aconselhadas estão disponíveis no mercado, ou seja, no iTunes e na Amazon.co.uk (verificado). Em Portugal, como cada vez mais por todo o lado, resta a remota possibilidade de as encontrar nas discotecas.
EliminarEstava a pensar mais na qualidade das "gravações" dos CDs disponiveis
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