Seis semanas de reportagem numa
Angola proibida
Regresso a um palimpsesto da memória
2.
Semanas
depois, partimos para o Norte, sempre pelas picadas. Continuámos
o roteiro turístico da Guerra. Levaram-nos a Mavinga, vila destruída,
abandonada, marcas da metralha em todas as paredes coloniais. Caminhámos pelas
zonas desminadas, vimos um Antonov-26 russo abatido. Parámos em aldeias sob a área
de influência da UNITA. Numa delas vi pela primeira vez um soba com
guarda-chuva e cadeira de braços como símbolos de poder. Vi as ribeiras que
correm com a água mais transparente que já vi entre paredes de terra que
parecem talhadas por pedreiro. Num barco pneumático, atravessámos um rio largo, com
crocodilos falados mas não vistos. Dormíamos em cubatas espaçosas. Numa delas,
sem uso, quando procurava adormecer, ouvi ruídos estranhos. Apontei a lanterna às
paredes e ao tecto, cobertos de centenas de enormes louva-a-deus, ou seriam
cigarras gigantes, comendo serenamente a palha da cubata. Não eram carnívoros.
Adormeci.
Antes
do Caminho de Ferro de Benguela, apeámos dos Unimogs e começámos
uma caminhada a pé que duraria três semanas. Não sabíamos onde íamos. Não sabíamos
ainda que, algures a Norte, a duzentos
quilómetros, na província da Lunda-Sul, uma pacata localidade de origem
portuguesa seria conquistada ao MPLA para os jornalistas assistirem.
A
primeira etapa da caminhada foi Munhango, uma estação
abandonada no caminho-de-ferro inutilizado pela guerra. As locomotivas a vapor
morriam de tão longa paragem. Era a terra de Savimbi, onde, disseram-nos, o pai
fora chefe de estação. Apanhámos mangas da árvore e cana de açúcar — e a
diarreia correspondente.
Máquina
cansada da guerra no Caminho-de-Ferro de Benguela, em Munhango.
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Caminhar
oito horas por dia e a bom ritmo era uma novidade para mim. Em três
dias, os músculos, todos os músculos, estavam exaustos. Um enfermeiro da UNITA
massajou-me e o problema ficou resolvido. Os escoceses, habituados a andar a pé,
olhavam para mim com dó, mas sofreram do mesmo mal dias depois. E tiveram
larvas de varejeiras implantadas nos pés e picadas de insectos. Eu safei-me desses
males, sem saber porquê. Tinha levado uma embalagem de vitamina B, que tomava
diariamente. Anos depois, li que, tomando esta vitamina, a pele liberta um odor
que afasta os insectos.
Foram
três
semanas intermináveis. A comida era horrível. O mel, que soldados apanhavam das
árvores, era enjoativo e servido com abelhas mortas, mas muito melhor do que o
corn beef enlatado. O arroz era uma papa insossa. Quando passávamos por
aldeias, comíamos repolho cru, com sal, uma maravilha. Ou maçarocas de milho. A
caminho do Equador, debaixo das árvores, o sol desaparece em minutos. Não há entardecer,
só noite e dia. A chuva vem e vai sem aviso. Na primeira noite, e era de luar,
dormimos ao relento. Eu, toda a minha roupa, tudo o que levava — encharcados. A
partir dali dormi numa tenda formada pelos três panos de lona quadrados que eu
já conhecia da minha tropa em Portugal. Passei frio quase todas as noites. Não
ia preparado. A Sul, os prisioneiros checoslovacos tinham-me dito, perplexos,
que muitas manhãs encontravam a água gelada nos recipientes. Andar horas à chuva,
quase sem falar, permite introspecção, a acreditar na literatura. Eu só me
lembro de sonhar em andamento, nos primeiros dias, com bife e batatas fritas e,
alguns dias depois, com pão com manteiga, pão com manteiga, pão com manteiga.
Um
dia, após
várias horas caminhando à chuva, e eu levara uma pobre gabardina de plástico,
que me protegia bastante, mas fazia-me suar, parámos numa aldeia e
colocaram-nos na cubata redonda das reuniões do chefe, onde também chovia. A
umas dezenas de metros, cozinhavam para nós, o fumo saía por entre as palhas do
tecto. Era galinha, disseram-nos. Um acontecimento destes faz sonhar
intensamente. E veio a galinha do mato. Estava tão dura que eu, com uma
dentadura fortíssima, não consegui mastigar nem um pedaço. Desalento maior que
a chuva sem fim daquele dia.
E
continuava a caminhada. Acompanhava-nos sempre o secretário
de informação da UNITA, hoje deputado na Assembleia Nacional, um dos poucos
sobreviventes da liderança de Savimbi. Os outros desertaram ou foram mortos
pelo MPLA, como o líder, ou pelo líder. Formado em História, Jaka Jamba
recitava poesia portuguesa, lembro-me de “A Lua de Londres”, enquanto palmilhávamos
quilómetros debaixo das árvores altíssimas da floresta da Lunda-Sul:
Rompe a custo um plúmbeo céu,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, húmido véu,
Traz perdida a cor de prata,
Nas águas não se retrata,
Não beija no campo a flor,
Não traz cortejo de estrelas,
Não fala de amor às belas,
Não fala aos homens de amor.
Por
vezes o arvoredo terminava abruptamente e entrávamos
numa enorme clareira, como que uma auto-estrada de erva. Não tardava que os pés
se nos enterrassem na terra encharcada: todo o campo verde era um charco de
ambas as margens de um riozinho com meio metro de largura. Causava estragos no
calçado e na qualidade da caminhada. Irritava que tanta água se resolvesse em tão
pequeno fio de ribeiro. De outras vezes, subíamos uma ladeira inclinadíssima,
esperando eu ver do alto a paisagem larga de Angola, a paisagem das fotografias
de paisagens de Angola. Mas, no alto, não havia cume, mas planalto, mais
floresta de árvores altas, nenhuma vista.
Ouvíamos
religiosamente as emissões da BBC, da France Inter, da Voz da América e da RDP
Internacional. Por elas sabíamos se as nossas reportagens, entregues à UNITA e
por ela enviadas para os seus destinos, por acordo prévio, tinham eco nos media
internacionais. Mistério: as notícias enviadas pelo repórter escocês eram
mencionadas pelos longos noticiários europeus e norte-americano, mas os meu não.
Silêncio. Pedi explicações. Disseram-me que as minhas notícias tinham sido
entregues. Desconfiei.
Chegou
o dia. Estávamos perto do alvo vítima do ataque da UNITA: Alto
Chicapa, uma aldeia colonial no meio de nada, abandonada pelo MPLA, abandonada
pela população civil das aldeias em redor. O assalto era uma pequena tragédia ,
com oráculos certos — a guarnição do MPLA sabia do ataque iminente. Assistimos
de longe à operação militar, ficámos perto das bazookas. Na localidade, o
tiroteio. Senti-me vítima, vítima da necessidade de propaganda da UNITA, o
observador imparcial e independente, o repórter de agência que vai informar o
que viu.
E
o que ali vi foi um acto de guerra. Em breve, seria um episódio
esquecido, mas naquela manhã, o Alto Chicana era tudo. Um pequeno acto de
guerra, duma guerra civil, duma guerra entre dois blocos, da mesma Guerra de
sempre, da primeira guerra que já houve, da última que haverá, a Guerra que
mata nas vitórias e nas derrotas, não há vitória de alguém sem a derrota de
alguém, não há vitória nem derrota sem mortos e feridos e prisioneiros, sem
sangue no terreno e ossos estilhaçados.
A
pequena guarnição do MPLA, abandonada no fim do mundo, onde nada
acontecia, caiu em menos de uma hora. Entrámos no Alto Chicapa, uma rua, meia dúzia
de casas portuguesas no alto dum pequeno planalto, com um reservatório de água, a casa do
administrador, a piscina vazia. Os edifícios degradados mostravam o ócio
nervoso e pobre duma guarnição que guarda uma terra de ninguém numa estratégia
militar sem sentido. Os soldados, escorraçados pela população quando procuravam
obter comida, coziam bananas verdes e faziam graffiti nas paredes.
Os
conquistadores do Alto Chicapa posam para a prova fotográfica.
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E,
depois, os mortos e os prisioneiros. O meu primeiro choque não
resultou de ver mortos e prisioneiros, mas de saber que aqueles homens eram vítimas
de um ataque encenado para jornalistas a uma guarnição abandonada pelo seu próprio
exército. Para mim, era tarde demais para voltar atrás. E o segundo choque
resultou quando peguei na máquina fotográfica: há uma dimensão de grande violência
no registo analógico da imagem, o que se mostra é o que lá está, que a escrita,
pela sua natureza, sempre atenua. Olha-se, enquadra-se, fotografa-se a
javardice da guerra, os despojos da guerra. Não era nem sou fotógrafo e aquela
foi a minha primeira e única experiência do que se chama, com ressonância
grandiloquente, “reportagem de guerra”. Foi a primeira e única e última vez que
peguei na câmara para fotografar mortos e prisioneiros de guerra. Fiz poucas
fotografias, tinha pouco filme. Suponho que estas que aqui vão — excepto a do
militar morto, que recuso reproduzir, por pudor — foram as únicas que fiz. Estão
no arquivo da NP, hoje integrado no arquivo da Lusa. Baixei-me, fiquei quase à altura
das vítimas, mas não sei dizer se foi pelo instinto de obter o “melhor” enquadramento
se foi por respeito, para humanizar aqueles homens. Ou ambos? Creio que ambos.
Três soldados do MPLA aprisionados no Alto Chicapa.
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O “melhor”
enquadramento, na fotografia de reportagem, é o que capta o momento, a sua essência,
se possível sem detalhes distractivos, de acordo com as regras da estética
desenvolvida na pintura e no desenho do Ocidente desde o Renascimento. É possível
fazer “boa” fotografia de guerra sem o elemento estético, sem o embelezamento?
O horror e o belo, aliados no paradoxo: o Sublime. Olho de novo estas
fotografias. Há “boas” fotografias do horror sem o belo? Sem o belo consegue
mostrar-se o horror — com eficácia, com impacto no observador distante? A forma
serve a função de mostrar, ou, indo mais longe, de denunciar o horror?
O Pensador.
Soldado do MPLA aprisionado no Alto Chicapa.
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Os
pintores do Sublime — há uma sala de horrores sublimes na
Tate Gallery — recriavam nos seus ateliers, anos, séculos ou milénios depois,
os episódios míticos ou reais, com tintas e pincéis, mas o fotógrafo está lá,
no meio do horror e regista-o sem recriar, apenas escolhendo o ponto de vista.
O meu foi o de um jovem jornalista atarantado, tentando pensar enquanto se via
no meio de um acto de guerra agendado para as reportagens. Senti enjoo, repugnância,
enquanto olhava pelo visor, enquadrava e disparava as balas fotográficas. O
mensageiro, a testemunha, também sofre com a guerra. O stress pós-traumático não
é exclusivo do soldado.
Derrotado.
Soldado do MPLA aprisionado no Alto Chicapa.
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(Continua)
Eduardo Cintra Torres
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