impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 4 - SIDNEY BECHET
Fotografia de Corbis Naylor
|
Dos
apóstolos que disseminaram o jazz para além dos arrabaldes de Nova Orleães
Sidney Bechet foi o que mais depressa se distinguiu e o primeiro que mais longe
chegou.
Louis
Armstrong só em 1922 reservaria assento no comboio para Chicago, viagem que
representou a entrada bíblica do jazz na Terra Prometida. King Oliver, que fora
quem lhe enviara a carta de chamada, residia na cidade ventosa desde 1918. Kid
Ory, em 1919, dava à Costa do Pacífico na embrionária Los Angeles, onde se deve
ter cruzado com esse autêntico maltês que era Jelly Roll Morton, desde 1904 a
vagabundear por todos os estaminés de má nota do Sul. Em comparação, Sidney
Bechet desembarca na Europa no precoce ano de 1919 – Paris, Berlim, Londres, um
chique… – em digressão com a Southern Syncopated Orchestra de Will Marion
Cook.
Na
sua estadia em Londres mal sabia Bechet que seria como a borboleta do aforismo:
com três batimentos de asa desencadeou, bem mais tarde, um ciclone. O primeiro
foi ter deparado com um saxofone soprano, pelo qual se entusiasmou e
definitivamente trocou o clarinete. O terceiro, melhor fora que não tivesse
sucedido: condenado por tentativa de violação em 1922, depois de um mês de
encarceramento, foi deportado para os Estados Unidos, onde arribou sem fama nem
proveito.
Mas
o segundo efeito de borboleta é que foi verdadeiramente extraordinário. Entre
os espectadores das récitas de Sidney Bechet sentava-se com frequência
Ernst-Alexander Ansermet. O ex-professor universitário de matemática comutara
os algoritmos pela música e em 1919 louvava-se como director musical dos
Balletts Russes de Diaghilev; precisamente aquele que perpetrara “A Sagração da
Primavera” de Igor Stravinsky, levado à cena em 1913 e encarecido pelo
memorável tumulto de ovações, urros e tabefes na plateia.
O
enlevo de Ansermet com o que escutara encorajou-o a escrever “Sur une orchestre
négre”, uma apologia musicológica e analítica detalhada das “canções e danças
americanas às quais se aplica o epíteto de ragtime.” Realce é dado à presença
de “um extraordinário virtuoso do clarinete”, cujo desempenho evocava-lhe o
Concerto nº2 de Brandeburgo de Bach: “quero deixar escrito o nome deste artista
de génio, que, da minha parte, nunca esquecerei – é Sidney Bechet.”
A
relevância de tais observações supera o valor histórico de consistirem
provavelmente, no primeiro ensaio sobre jazz, estimando-o com propriedade
intelectual e comprometendo-o como expressão artística. Mais do que isto,
posicionam o jazz como um dos catalizadores da controvérsia que, por esta
altura, começava a cindir as altas esferas da música erudita contemporânea. O
jazz contagiou inequivocamente Debussy e Ravel além de Stravinsky, o compositor
que por ele mais se encantou. Mas no polo oposto, o vestalino e frígido Adorno,
cujas opiniões dobravam, com teutónica obediência, a cerviz do modernismo
alemão, abominou o jazz num primeiro escrito de 1936, reiterado por mais seis
até 1962. Sobre ele o também marxista Hobsbawm não mandou dizer por ninguém que
“escreveu as páginas mais estúpidas de sempre sobre jazz.”
Young Sidney Bechet 1923-1925
1998
Timeless
Records – CBC 1-028
Sidney
Bechet (saxofone soprano); Calrence Williams (piano); Louis Armstrong (trompete);
Thomas Morris (trompete); Buddy Christian (banjo); Sara Martin (voz); etc…
De
regresso a penates aos EUA, como se viu, Sidney Bechet gravou um bom punhado de
composições, contando nalgumas delas com a participação de um jovem e voraz
Louis Armstrong. Recentemente recuperados e reeditados, nestes trabalhos
palpita a energia, ao mesmo tempo fauve,
de quem assim foi ouvido no Velho Continente, e sofisticada, tal como era
sentida entre os seus pares de Chicago, de um músico que cruzava o zénite.
Pormenor nada despiciendo: jamais se ouvirá Louis Armstrong a ser ripostado de
maneira tão perturbadora, à beira do KO técnico – aprendeu bem a lição.
Depois
disto a estrela de Sidney Bechet esbateu-se porque declinou a popularidade do
modelo de jazz ao qual se manteve fiel. No final da década de 30, julgando-se
extinto como um fóssil, trocou o saxofone soprano pela fita métrica de alfaiate
– a sério!
Está
por saber se Alfred Lyons teve alguma segunda intenção ao lançar “The fabulous
Sidney Bechet” em 1953, no ápice da grande investida modernista pontificada
pela sua Blue Note. A etiqueta afirmava-se como o porta-aviões do jazz
consequente à revolução do bebop, donde levantavam voo os músicos que marcaram
a década de 50 e seguintes. Ora Bechet, afiliado na Blue Note desde 1939, mas
com esporádica actividade, embora merecedor do respeito devido a um ancião,
representava uma espécie de paleo-jazz, antecedente do swing, relíquia de
museu. “The fabulous Sidney Bechet” banzou os contemporâneos por estar isento
de um grama que fosse de revivalismo. Bechet não repete liturgicamente as
fórmulas do ragtime, antes demonstra um desenvolvimento orgânico, provando que
o género estava preterido mas não ultrapassado, à semelhança da fauna de uma
ilha perdida, que tivesse evolucionado à sua maneira. Um fenómeno que só pode
ser ouvido como paradoxal por quem não assimilou ou renegou as apreciações de
Wynton Marsalis, emitidas nos anos 80 e vulgarizadas como pós-modernas. Já
neste século foram dadas à estampa gravações de Bechet para a Blue Note, no CD
“Complete Blue Note 1939-1951 Master Takes”, e, 50 anos depois, persiste o
sabor fresco da sua música.
Mais
uma vez, da música de Sidney Bechet se podem retirar ilações muito filosóficas:
nem tudo se perde, nem tudo se transforma, ao contrário do que postulou
Lavoisier.
José Navarro de Andrade
Breve apresentarei aos vossos ouvidos uma incursão dele por França.
ResponderEliminarCreio que houve uma passagem por Lisboa com direito a gravação com Amalia?Sonhei ou li algures via Jose Duarte?Anos sessenta.
ResponderEliminarTalvez mais cedo dado ter morrido em 59...
ResponderEliminar