A
bandeira existe como símbolo de unidades político-geográficas há milhares de
anos, mas só com a crescente inclusão dos habitantes de cada país no sistema
político, económico e militar ela passou a identificar-se não apenas com o
«país» mas também com a «nação». A longa guerra nacional da Holanda contra a
Espanha associou a sua bandeira e suas cores (vermelho, branco e azul) à forma
republicana de governo e à liberdade. Depois da Revolução de 1789, a França
adoptou as mesmas cores, desta vez num formato vertical[1].
Fazendo
coincidir, grosso modo, os conceitos
de país e de nação, a bandeira nacional acompanha essa reorientação da
estrutura político-ideológica, passando a simbolizar não apenas o país mas o
conjunto dos seus cidadãos ou habitantes. «Dada a ubiquidade das bandeiras no
mundo moderno e os seus usos múltiplos, há surpreendentemente poucos estudos
das ciências sociais sobre as bandeiras», mas os que há centram-se em torno de
«dois temas relacionados de perto: etnicidade, nacionalismo, patriotismo e
identidade etno-nacional» (Jenkins, 2007).
De símbolo de um (país) para símbolo de muitos (nação), a bandeira
funciona como um totem para a comunidade, como argumentam Marvin e Ingle numa
perspectiva durkheimiana do mais universal dos símbolos nacionais modernos
(Marvin e Ingle, 1999). A bandeira tem uma utilização simbólica formal e grave
ao nível do Estado e das relações internacionais, mas o seu valor efectivo
deve-se também ao facto de se infiltrar nas consciências e na memória visual ao
nível da vida quotidiana (Billig, 1995) e do nacionalismo informal (Eriksen,
1993).
Símbolo de uma comunidade, a bandeira
funciona como sinédoque visual. Ao ver-se a bandeira, «vê-se» o conjunto de
pessoas da unidade política nacional que ela representa. Sendo ela um símbolo
geralmente muito abstracto, esta associação automática bandeira-nação é afinal
um constructio cultural e histórico de longa fermentação. O significado
que se atribui à bandeira nacional, em qualquer caso, «baseia-se puramente em
conotações culturais partilhadas» (Hartley, 2002: 223). O valor assumido pela
bandeira cresce de forma logarítmica em relação àquilo que ela é
fundamentalmente, um pedaço de pano rectangular pintado com certas cores e
formas. O seu valor supera em determinadas circunstâncias o referente que
representa (o país, a nação) e que é menos fácil de «agarrar» do que o símbolo,
como Durkheim já comentava a propósito dos símbolos totémicos em relação ao
próprio totem: «chega-se ao resultado notável de as imagens do ser totémico
serem mais sagradas que o próprio ser totémico.» E acrescentava que o signo
«toma o lugar» do referente, «é a ele
que são reportadas as emoções» que o referente provoca,
é ele que é amado, temido, respeitado, é a ele que se
mostra reconhecimento, e é a ele que se prestam sacrifícios. O soldado que
morre pela bandeira, morre pela pátria, mas, de facto, na sua consciência, é a
ideia de bandeira que ocupa o primeiro plano, pode até mesmo acontecer que seja
aquela a determinar directamente a acção (Durkheim, 2002: 138 e 229-30).
A
multidão, apesar de reunir um número geralmente grande de pessoas, é também uma
sinédoque quando formada para, e vista como, representação de um conjunto ainda
maior. No caso de multidão nacional, isto é, uma multidão que luta pela nação
ou a celebra, estamos perante um símbolo coincidente com a bandeira nacional no
que respeita ao objecto que qualquer delas simboliza, isto é, substitui; no
caso, a nação. A bandeira é, todavia, um símbolo mais distante na sua linguagem
do signo que representa, pois não há ou quase não há qualquer relação entre o
rectângulo colorido e geométrico de uma bandeira e o conjunto das pessoas de
uma nação. Neste aspecto, a multidão, sendo formada por pessoas, está mais
próxima da nação na sua linguagem do que a bandeira. Quase que a poderíamos
considerar como um índice, pois onde há multidão nacional há nação como «onde
há fumo há fogo». É por isso que a multidão é muitas vezes usada como
representação de uma nação, sem o recurso à bandeira. Em termos retóricos, a
multidão é, assim, uma sinédoque visual. A sua presença como representação
nacional é mais emotiva (por ser formada por seres humanos) e de efeito muito
mais eficaz, pela associação que estabelece entre o observador e outros
indivíduos. De facto, o indivíduo sente a nação em primeiro lugar como
comunidade de pessoas pela simples razão de que
o membro de uma
nação não se vê sozinho. Tão logo ele é designado ou se
autodesigna como tal, algo mais abrangente penetra-lhe a imaginação, uma
unidade mais ampla à qual ele se sente ligado. A natureza dessa unidade não é
desimportante, assim como tampouco o é sua ligação com ela. Não se trata
simplesmente da unidade geográfica de seu país (...) Tampouco pensa ele em sua
língua (...). Significado ainda menor tem para o homem normal a história de sua
nação.. (...) A unidade mais ampla à qual ele se sente ligado é sempre uma massa
ou um símbolo de massa (Canetti, 1995: 168).[2]
Neste
ensaio, pretendo mostrar a relação entre os dois símbolos – bandeira nacional e
multidão nacional – em diversas representações mediáticas, quase todas na
pintura. Se a bandeira ou os estandartes há muito surgiram na pintura,
nomeadamente em representações religiosas ou de combates ou guerras, a relação
do símbolo nacional com o sentimento patriótico e com o nacionalismo acentua-se
no século XIX (v. Gottlieb, 1962). O ponto de partida é o quadro de grandes
dimensões que Eugène Delacroix pintou em 1830 comemorando a revolução de Julho
desse ano que colocou Luís Filipe no trono (Museu do Louvre, Paris; Figura 1).
O quadro chama-se A Liberdade Guiando o Povo no 28 de Julho de 1830. A
imagem é eminentemente revolucionária: decorre no novo espaço público, a rua,
espaço urbano, como se vê pelos prédios ao fundo; há mortos no chão; os
combatentes, representando os burgueses e o «povo» estão armados e avançando
para a luta, que prossegue, como indicia o fumo de canhões ou incêndios
elevando-se por trás do grupo principal; acima deles, sobressai uma mulher de
peito ao léu – simbolizando a liberdade como nova religião - com a bandeira tricolor tão
levantada que «rebenta» até com o limite superior do quadro; o quadro
representa a multidão dos vivos e a multidão dos mortos, pois também estes são
parte da «nação» ou representam a vitória sobre o inimigo[3]; os
paus de bandeira e as armas levantadas a perder de vista indicam que a
liberdade guia um grupo significativo de pessoas, mas, sendo propósito do
pintor que o observador não possa ver o final do grupo, cria-se a representação
colectiva, em parte visual, em parte mental, de que a liberdade guia
efectivamente todo o povo – e para que o observador não tenha qualquer dúvida a
esse respeito o título do quadro utiliza a reconfortante capacidade
abstraccionista da linguagem das palavras para dizer que é mesmo «o povo» que
«a liberdade» «guia».
As personagens
do quadro estão esteticamente organizadas (e decerto também politicamente
correctas para os vencedores, o que os símbolos presentes em cada uma
comprovam), mas há também uma certa confusão própria dos conflitos de rua e de
multidão revolucionária – neste caso não apenas revolucionária mas também nacional,
o que a bandeira erguida pela Liberdade estabelece em definitivo: a tricolor
era usada desde as jornadas multitudinárias de 1789 (com as três barras
horizontais, como na Holanda; Figura 2) e era a bandeira da França desde 1794,
mas fora substituída com a restauração de 1814, sendo reposta com a revolução
representada por Delacroix.[4]
Figura 1. E. Delacroix, A Liberdade
Guiando o Povo no 28 de Julho de 1830
Figura 2.Tomada da Bastilha
A
Liberdade do quadro de Delacroix fez um longo percurso, transformando-se em
Portugal em república na iconografia dos republicanos e depois do novo regime
república de 1910, mas o «povo» mudou de figura: a multidão que acompanha a
república é numa litografia de finais do século XIX a soma de uma centena de
membros do partido republicano (com os principais dirigentes à frente) a que se
soma a multidão sem nome até ao horizonte (Figura 3). Nessa litografia, bem
como noutras imagens semelhantes, a mulher-república figura como símbolo de
corpo presente, de tal forma numa escala desproporcionada com as outras
personagens, que deixa de funcionar o seu papel de líder («a liberdade guiando
o…»). A sua posição estática, frontal e simétrica sublinha o lado religioso do
símbolo. As outras personagens estão ao seu serviço, mas são os dirigentes
republicanos quem lidera o «povo». A bandeira é republicana, mas não ainda a
nacional, apenas da multidão representada graficamente. Pretende-se que esta
multidão cresça até ao infinito, até corresponder à «nação» com a implantação
da república.
Figura 3. «Pela República», litografia com membros do partido
republicano mais evidentes na época da propaganda
O
pintor Veloso Salgado recuperou o movimento da mulher símbolo e o seu papel
dirigente no quadro alegórico à eleição republicana da Câmara Municipal de
Lisboa de 1908 (Figura 4). A república está envolvida na bandeira com as cores
republicanas (ainda não a bandeira nacional) e dirige a multidão republicana
que enche a Praça do Município. Trata-se de um momento muito concreto da luta
republicana: a vitória nas urnas em Lisboa parece tornar possível a via
eleitoral para a tomada do poder. A multidão é chefiada pelas figuras
republicanas mais proeminentes que, em vez das armas dos revolucionários de 1830,
agitam o boletim de voto que depositam um a um na urna que outro símbolo
antropomórfico segura com firmeza: para quem não o identifique, o pintor
pôs-lhe uma bandeira vermelha na mão com a palavra «sufrágio». Em 1908 o
sufrágio era de tal forma identificado como caminho político para a vitória
republicana que este sufrágio tem a calma dos deuses, é homem e recebe o apoio
suplementar da república feminina, aqui quase uma sereia que chama a multidão
ao voto. A mão esquerda da república não levanta uma bandeira revolucionária
mas uma inscrição com a referência ao acto de 1908 e a mão direita aponta para
a urna e a mão do sufrágio que segura a urna com firmeza. Tal como na
litografia «Pela república», esta multidão tem líderes identificáveis (Teófilo
Braga, Bernardino Machado, Afonso Costa, António José de Almeida, Manuel
Arriaga) e massa anónima. Um ano depois desta eleição, os republicanos optaram
no congresso de Setúbal (1909) pela via revolucionária, mas golpista (História,
s.d.: 539).
Figura 4. Veloso Salgado, Alegoria à
eleição dos candidatos republicanos à Câmara Municipal de Lisboa em 1908
Figura 5 Charles Alexander Smith,
L'Assemblée des six-comtés, 1890
Figura 6 Henry Nelson
O'Neil, The Parting Cheer, 1861
No mesmo período, outras pinturas juntam
a multidão e a bandeira nacional de forma mais evidente (figura 5, Canadá) ou
mais discreta (Figura 6). Enquanto a primeira responde à necessidade de afirmar
a simbiose entre a multidão e um episódio da luta patriótica dos canadianos do
Québec contra o governo britânico em 1837, dando-se muito destaque às
bandeiras, no quadro britânico a presença da «Union flag» é muitos discreta,
embora esteja no ponto mais alto da multidão. O pintor britânico não
necessitava de afirmar o patriotismo, quer pelo tema quer porque esse
patriotismo estava bem arreigado nas massas. Este quadro representa a partida
de emigrantes, provavelmente para a América. A multidão em terra inclui
elementos de várias condições sociais, idades e um negro, não havendo qualquer
dúvida quanto à representação da nação. A emigração representa a divisão da
nação. A multidão está dividida em dois – uma parte em terra, outra no navio –
e entre os que ficam a subdivisão em grupos é notória. Todavia, acima da multidão
dividida permanece a nação representada pela bandeira. Nenhum dos presentes na
despedida o sabe, ocupados como estão pelas emoções dilacerantes da despedida,
nem mesmo o porta-bandeira da ocasião - uma criança de tenra idade, que sorri
transportando em si o futuro da pátria.
A
presença crescente da bandeira nacional na pintura do século XIX, corresponde
ao peso crescente do nacionalismo na política, que ocorre em simultâneo com o
seu contrário, o internacionalismo. A bandeira vermelha também ocorre na
pintura da época. Mas neste ensaio interessa prosseguir na representação
simbiótica da multidão e da bandeira nacional. Os quadros seguintes,
impressionistas ou realistas, três franceses, um norueguês e um
norte-americano, mostram uma relação diferente entre a multidão nacional e o
seu símbolo visual máximo.
Os quadros de
Claude Monet, La Rue Montorgueil. Fête du 30 juin 1878 e Rue
Saint-Denis, fête du 30 juin 1878 foram pintados nesse dia 30 de Junho.
Representam a festa nas ruas embandeiradas por ocasião da Exposição Universal
em Paris (Figuras 7 e 8). O dia foi declarado feriado pelo governo. Esta
primeira festa nacional autorizada em França desde 1871 chamou-se Festa da
Paz; marcou a recuperação da França depois da desastrosa guerra contra a
Prússia e da Comuna de Paris (1870-1). O entusiasmo em Paris foi enorme; meses
depois desta explosão colectiva de alegria e paz, ocorreu a implantação da III
República.[5] No
primeiro quadro Monet mostra a multidão longitudinalmente às linhas verticais
do quadro. As margens laterais são estabelecidas pelos prédios da rua que, ao
fundo, na sua ligeira curvatura, acabam por ocupar a parte central. A agitação
é impressionante, com a vibração das bandeiras e as pequenas pinceladas na
multidão sugerindo o movimento das pessoas. Centenas de bandeiras nacionais
presas junto das janelas de ambos os lados da rua dão uma vibração adicional à
cena de multidão e participam com ela no «abraço» nacional: de um lado ao
outro, elas quase se tocam, elas chamam-se umas às outras. Nada é descrito com
precisão, tudo é impressão. Nenhum indivíduo se destaca da massa, nenhuma
bandeira se sobrepõe, nenhum prédio merece atenção especial: esta é uma
representação de multidão em festa em que a massa de gente, a massa de
bandeiras e a massa de prédios – a cidade - se juntam em unidade, sem conflito, e
se fundem numa só acção e movimento. No segundo quadro a fusão
cidade-multidão-bandeiras é ainda mais completa. Também aqui Monet adoptou uma
perspectiva elevada das ruas, de que estes dois quadros são dos primeiros
exemplos na pintura da época (Musée d’Orsay, 1989: 92). Essa perspectiva é
habitual na literatura quando se trata de observar a multidão pois permite ao
observador ou autor abarcá-la em conjunto sem se misturar com ela (por ex.,
sobre a multidão de Lourdes em Zola e Huysmans, ver Torres, 2007). O júbilo da
multidão e a ligação entre o povo na rua e o povo à janela são evidentes. As
bandeiras dos dois lados da rua contactam ou sobrepõem-se visualmente, cobrem
parcialmente a multidão, dominam o espaço. Os prédios perdem a individualidade,
como cada bandeira e cada pessoa, obtendo-se a unidade de todos os elementos. O centro visual do
quadro, onde o vértice do triângulo do céu encontra o vértice do triângulo da
multidão, introduz um conceito de
infinito no momento captado, no movimento e na multidão. O efémero assim
captado como que diz que nada voltará a ser como era antes. A multidão eleva
acima de si as imagens dos seus seres totémicos: numa bandeirola inscreve-se um
viva à França, numa bandeira um viva à República.
Da janela de sua
casa, Édouard Manet pintou uma tela com o mesmo tema, Rua Mosnier com
Bandeiras (Figura 9). O contraste com a vibração dos quadros de Monet é
enorme: só as bandeiras os assemelham. A discreta rua está quase deserta; de um
lado da rua, uns transeuntes burgueses; do outro, um aleijado (pedinte?, vítima
da guerra franco-prussiana?) e, entrando em cena, um trabalhador transportando
uma escada. As personagens representam, desse modo, a população urbana. As
dezenas de bandeiras presas nos prédios pairam acima dos transeuntes numa rua
onde os poucos que passam não participam do seu significado naquele dia
feriado. Mas estão lá, dando um significado à composição. Enquanto Monet pintou
a festa nacional de uma multidão feliz, pacífica, comemorando-se a si mesma,
sem adversários, Manet pintou o patriotismo informal e do quotidiano, aquele
que se manifesta por pôr a bandeira à janela como quem põe um vaso de flores e
sair à rua em trabalho ou passeio.
Figuras 7 e 8. Claude Monet, La
Rue Montorgueil. Fête du 30 juin 1878 e Rue Saint-Denis, fête du 30 juin
1878
Figura 9. Manet, Rue Mosnier com
Bandeiras
Nos dois
quadros seguintes, as bandeiras adquirem uma importância mais formal,
menos espontânea. O pintor norueguês Christian Krohg mostra no óleo 17 de
Maio de 1898, datado desse ano, o desfile da multidão patriótica no 84º
aniversário da declaração da independência de 1814, que a Suécia impediu meses
depois; a ligação com a Suécia só terminou em 1905 (Figura 10). Em 1898 ocorreu
um episódio com a bandeira, tendo os noruegueses recusado a inclusão do símbolo
da união na bandeira, que fora proposta em 1814, a primeira distintamente
norueguesa e expressão da oposição local à Suécia.[6] No
quadro pode identificar-se o tipo social dos manifestantes, as várias idades,
homens, mulheres e crianças, mas o objectivo de Krohg não é o de individualizar
as pessoas, antes o de pintar a multidão nacional. A multidão perde-se de
vista, sendo uma massa indistinta na maior distância. Krohg não deixou que a
multidão assustasse o observador, criando um espaço «livre» de paisagem verde
que é mais «forte» do que a
massa, comprimindo-a e obrigando-a a um desvio ao
mesmo
Figura 10. Christian Krohg, 17 de
Maio de 1898
tempo que lhe fornece um ângulo recto
quase no centro geométrico do quadro e uma maior vivacidade ao movimento da
multidão. É, todavia, a bandeira nacional que dá significado visual ao quadro:
a bandeira, a única, está à frente da multidão, em primeiro plano, está, para o
observador, antes de qualquer outro elemento do quadro. A bandeira não tapa
senão um pequeno número de manifestantes, mas o seu lugar na composição é mais
um elemento que não deixa dúvidas de que a nação no seu conjunto está à frente
e é o objectivo de cada um dos seus membros.
O quadro de
Childe Hassam, Allies Day, May 1917, pintado nesse ano, é um entre mais
de duas dezenas que pintou de bandeiras dos aliados em Nova York durante a
Guerra.[7] Os
EUA tinham entrado no conflito um mês antes, em Abril de 1917 e neste dia foi a
primeira vez que as bandeiras da Grã-Bretanha, França e norte-americana tinham
sido desfraldadas juntas na rua, neste caso na 5ª Avenida em Nova York. Representa os mesmos três elementos das telas
de Monet – cidade, multidão, bandeiras –
mas num modelo bastante diferente e levando até ao limite a representação do
símbolo nacional avançada por Krohg (Figura 11). Ao contrário da transformação
por Monet de todos os elementos numa unidade única, no quadro de Hassam os
edifícios e as bandeiras nacionais dos aliados na 1ª Guerra Mundial que
enfrentavam as forças dirigidas pela Alemanha nos campos europeus estão bem
delimitados e são perfeitamente
identificáveis.
Figura 11.
Childe Hassam, Allies Day, May 1917
E, pela primeira vez, encontramos a
multidão não só quase tapada pelas bandeiras como elemento quase dispensável
da composição. A multidão, que seria visível numa grande extensão da avenida
não fosse o ponto de vista do pintor, é em grande extensão ocultada pelas
bandeiras, que se tornam o elemento dominante: a multidão perde a sua
supremacia representacional, sendo substituída pelas bandeiras. Aqui, os países
estão acima das nações.[8] O que
conta é a bandeira e o seu poder de representação. O New York Times de
13.05.1918 descrevia longamente o êxito
de Hassam na pintura das bandeiras, deixando para o final uma breve referência
ao ambiente urbano e à multidão: «Vêem-se as paredes dos edifícios em cinzento
suave e há um vislumbre das multidões nas ruas.»[9]
A 1ª Guerra
Mundial acentuou nacionalismos e nessa conjugação as nações puderam ser
encaradas «como se fossem religiões. E elas de facto têm a tendência a,
de tempos em tempos, assumir essa forma. A disposição para tanto está sempre
presente; nas guerras, as religiões nacionais se aguçam» (Canetti, 1995: 168).
A guerra tem ainda outra consequência: «o sacrifício violento de sangue faz que
os grupos sofredores se unam» (Marvin e Ingle, 1999). Essa coesão repercute-se
no uso e ligação à bandeira.
Antes do impressionismo
tardio de Hassam, os futuristas italianos faziam também a representação da
bandeira e da multidão pressionando pela intervenção no conflito. O movimento
defendia as glórias da guerra e a sua capacidade de proporcionar inovação
estética. Antes da entrada da Itália na guerra em 1915, os futuristas
intervieram publicamente exigindo a intervenção (Martin, 2005: 66) Em 1 de
Agosto de 1914, Carlos Carrà publicou a colagem Manifestação Intervencionista
no jornal Lacerba sob o título Festa patriotica-dipinto parolibero
(Figura 12). Trata-se de uma obra de propaganda política onde é possível
encontrar a bandeira italiana duas vezes bem como a palavra Itália no centro do
vórtice da composição. A multidão nacional está presente mas não numa
representação directa. Explicou Carrà: «Suprimi qualquer representação de
figuras humanas tendo em vista conseguir representar a abstracção plástica do
tumulto urbano» (idem, ibidem). Quer dizer, enquanto a bandeira, pelo seu
simbolismo abstracto, é reproduzida, já a cidade e a multidão estão
abstractamente presentes. Carrà substituiu as imagens pelos símbolos
linguísticos («cidade moderna», «rumores», estrada», «sirene», «bicicletas»,
«peões na Praça»,) por onomatopeias de ruídos urbanos («traaak tatatraak» e as
do título dum romance de Filippo Tommaso Marinetti de 1914, «Zang [T]ummTuum»)
ou ainda pela colagem dum título de imprensa, Corriere della Sera. Tais
elementos já seriam suficientes para gerar a imagem cerebral do «tumulto
urbano», mas Carrà acrescentou outros símbolos linguísticos próprios de
manifestações de massas: «E vviiiivaaaa o Reeei», «E vvivaaa o Exército»
«Abaixooooo». Tal já suscitaria a imaginação de uma multidão nacional num
ambiente urbano, mas Carrà inclui a própria palavra «folle», «multidões», na
sua colagem (Figura 13). Desta forma, os mesmos elementos que encontrámos em
Delacroix e depois em Monet, por exemplo, aparecem nesta obra do futurismo
italiano. A expressão artística é outra, a realidade político-sociológica é a
mesma, embora em contextos diferentes.
Figuras 12 e 13. Carlos Carrà, Manifestação
Intervencionista, 1914, e detalhe
Primo Conti, em Dimostrazione
Interventista, 24 Maggio 1915, cria uma relação desconcertante
entre cidade, bandeira e multidão. Esta manifestação realizou-se no dia em que
a Itália entrou em combate na I Guerra Mundial, depois da declaração de guerra
no dia anterior.[10] Tal como Monet e Hassam,
Conti adopta a perspectiva do observador exterior à multidão, colocando-se num
ponto elevado. Mas, ao contrário deles, Conti faz da manifestação um elemento
normal da vida urbana, como qualquer outro, como o eléctrico que ocupa o
centro, como o relógio que se prepara para dar cinco horas, como os transeuntes
que observam a manifestação ou seguem os seus caminhos. A manifestação visível
é a cabeça do cortejo, é uma pequena parte ou a totalidade? As hipóteses ficam
em aberto. Parece que o mais importante é acentuar a normalidade da vida urbana
com manifestações, mas as discretas bandeiras no prédio do lado direito e
algures no lado esquerdo indicam que esta manifestação concreta,
favorável à intervenção na guerra, representa a cidade, como o eléctrico ou os
transeuntes que passam (Figura 14).
Figura 14. Primo Conti, em Dimostrazione
Interventista, 24 Maggio 1915, 1915
Uma outra
representação do mesmo acontecimento é de outro universo: a Manifestação
Patriótica pintada por Giacomo Balla, um expoente do futurismo italiano, em
1915, sublima em formas quase abstractas os mesmos três elementos: cidade,
multidão e bandeiras nacionais (Figura 15). A cidade voa, as bandeiras voam, a
multidão segue por ruas que voam; o movimento é o mais importante. A multidão
transporta bandeiras que marcam a paisagem urbana ou esvoaçam em espirais, mas
a massa de gente é apenas uma mancha negra, instrumento das cores da bandeira.
Tal como nos quadro de Hassam e Conti e menos no de Monet, a bandeira nacional
– ou melhor, o nacionalismo – sobrepõe-se aos que são a sua razão de ser. A
nação serve a bandeira, não o contrário.
A
multidão nacional, portanto, caminha para diluir-se na bandeira. É absorvida,
artisticamente, simbolicamente, politicamente. É o que sucede na prática num
dos outros quadros do mesmo tema que Balla pintou em 1915: Formas-Volume do
Grito ‘Viva Itália’, no qual uma massa abstracta do terreno ou de gente é
aspirada por um vórtice no céu formado pelas cores da bandeira italiana (Figura
16). [11]
Figura 15. Giacomo Balla, Manifestação
Patriótica, Museo de Arte Thyssen-Bornemisza, Madrid
Figura 16. Giacomo Balla, Formas-Volume
do Grito 'Viva Italia', 1915, Galeria Nacional de Arte Moderna, Roma
Que dizer das bandeiras do seu país que
o norte-americano Jasper Johns pintou cerca de 1954-5? (Figura 17). O quadro
coincide em larguíssima medida com o referente. Esta sobreposição do quadro
sobre a bandeira surge num país, os EUA, onde o culto deste símbolo é muito
mais intenso nos indivíduos e nos colectivos do que na Europa. Os Estados
Unidos são também o país em que um sistema político democrático inclusivo levou
ao rápido desaparecimento do conceito de multidão da linguagem sociológica,
sendo substituído, a partir de Robert Park, pelo eufemismo comportamento
colectivo (Park, 1972), a ponto de na década de 1950 dois sociólogos
poderem afirmar que o conceito alargado de multidão «hoje, ao escrever-se,
parece estranho» (Turner e Killian, 1987: 2). A seguir à 2ª Guerra Mundial, o
tempo da multidão tinha sido substituído pelo tempo dos indivíduos da «multidão
solitária» (Riesman, s.d., 1ª ed. 1950). Independente da eventual intenção do
pintor a respeito da representação da bandeira, e independente do seu resultado
mais evidente (o símbolo nacional como ícone pop), a transformação da bandeira
num objecto identificado como obra de arte, confinando o quadro à bandeira
(mais do que o contrário, dado o poder do símbolo), representa o final do
processo iniciado com o surgimento do símbolo nacional na arte após a Revolução
Francesa: a bandeira, que representa a nação, junta-se à multidão nacional;
depois, esta perde presença e é «sufocada» pela bandeira; em Johns, a multidão
desaparece por completo porque a bandeira a representa sem necessidade de uma
por vezes perigosa assembleia multitudinária. A multidão parece estar «por
trás» do quadro de Johns, ou parece que está a vê-la, como seu espelho. E desta
forma, a bandeira acaba aqui por ser na arte o que há séculos pretendeu ser na
política e na rua: o símbolo nacional. Johns junta a capacidade transcendental
da arte à capacidade simbólica do objecto. A multidão nacional, que é uma forma
de visibilidade da nação, volta a tornar-se invisível porque a bandeira
readquire nesta obra de arte a sua função simbólica sem a sobrecarga de outras
formas de representação da nação.
Figura 17. Jasper Johns, Flag, 1954-5
A história
poderia acabar aqui, mas não. A última revolução nos EUA foi também a primeira,
e já tem mais de 200 anos. Noutros países, a revolução acontece. A multidão
reaparece, logo existe, logo reaparece também na arte.
Em
1974, o golpe militar transformado em revolução em Portugal recolocou a
multidão nas ruas nas mais diversas formas: controladas, descontroladas,
zangadas, alegres, conflituosas, encarniçadas. O grupo de artistas Puzzle, do
Porto, realizou em 1976 uma pintura colectiva, a Bandeira Nacional
(Figura 18). Tal como as bandeiras de Johns, esta coincide com os limites do
quadro, mas os pintores do Puzzle intervieram muito mais do que Johns sobre o
símbolo nacional – e a multidão reaparece. Não no lado esquerdo, que representa
o período anterior a 25 de Abril, mas do lado direito, vermelho. Uma das peças
do puzzle apresenta, misturados, símbolos de inúmeros partidos existentes na
época, exprimindo o caldo político efervescente da democracia nascente; e ao
centro, por trás da esfera armilar e à sua direita, aparece a representação duma
manifestação ordeira com bandeirolas e mais bandeiras nacionais: dentro da
bandeira nacional a multidão empunha a bandeira nacional – um pleonasmo de um
pleonasmo, camadas sobrepostas de símbolos convergentes no seu significado
preferencial: a nação (Figura 19). A continuidade democrática do regime
norte-americano proporcionava a cristalização artística da bandeira nacional de
Johns na sua redução ao próprio símbolo visual, enquanto a ruptura política de
1974 convidava os artistas do Puzzle a juntarem-se para uma mesma pintura da
bandeira nacional – logo aí consumando-se um primeiro acto de associação
colectiva em torno do símbolo visual máximo e institucional da nação – em que
essa ruptura se exprime na divisão bicolor da bandeira e na explosão multitudinária
da vida política e da manifestação na rua.
Figuras 19 e 20. Grupo Puzzle, Bandeira
Nacional, e detalhe
Este
é o primeiro caso em que encontramos a multidão dentro da bandeira.
Trata-se de uma comparação visual (a bandeira é nação tal como a multidão) ou
de dar visibilidade à metáfora presente na bandeira (representando ela a nação,
a presença da multidão patriótica, revolucionária e/ou democrática, reforça a
metáfora, torna-a visível, sendo essa visibilidade o significado preferencial
da multidão).
Todavia, é
possível levar ainda mais longe a identificação entre a multidão e a bandeira,
criando representações em que uma é a outra. Sendo essa identificação
total, não a encontramos nas formas mais artísticas – que recorrem quase sempre
à ocultação – mas antes em formas mais vernáculas de representação. É o caso da
«bandeira americana viva» formada por cerca de duas mil crianças das escolas
públicas de Chicago numa cerimónia em 1892 de apresentação da Exposição
Colombiana na Feira Mundial realizada em Chicago no ano seguinte e que atraiu
mais de 27 milhões de visitantes (Figura 20). A multidão é a bandeira, a
bandeira é a multidão: identificação total. As duas formas visuais (colectivo
de crianças e bandeira) cumprem a sua função de mostração e a sua função
simbólica visual: ambas são para se ver, ambas são para significar a nação
americana. A função de mostração é neste caso sine qua non: esta
bandeira humana parece ter sido feita para o registo fotográfico. Adequa-se
perfeitamente à era da fotografia e do cliché, com a multidão parada e disposta
de modo a caber na objectiva do fotógrafo. A multidão de crianças é uma pura
representação. As crianças são reunidas, vestidas das cores adequadas e organizadas
na escadaria de forma a construírem a bandeira americana com o único objectivo
de simbolizar o seu país e o êxito da
cidade e do país (sobre os aspectos específicos, ver Esteve, 2007: 127-36). Não
há nada de espontâneo. Não há «manifestação» adicional à de fazer parte da
multidão americana. Não há adesão livre à multidão nem esta se movimenta. A
multidão, como a bandeira, como a nação que ambas simbolizam, é «imutável»,
«eterna». A multidão é formada por crianças, o que corresponde à concepção da
época da multidão segundo a qual os seus membros têm um comportamento infantil - porque não, pois, que a multidão
seja ela mesmo objectivamente infantil?
(ver, por. ex., Tarde, s.d: 148). Mas não é uma multidão desregrada,
pelo contrário, obedece formalmente aos adultos que se vêem espalhados nas
margens da formatura e simbolicamente à nação. É certo que as crianças de hoje
serão os cidadãos de amanhã, mas, é difícil acompanhar o argumento de Esteve
(2007: 132-3) sobre a presença do conceito da individualização do indivíduo ao
analisar esta fotografia. Pelo contrário, ela confirma a submissão do indivíduo
(ainda por cima criança) à massa, à nação, sendo nisso um documento
historicamente coerente com as concepções e representações correntes das massas
e dos povos no final do século XIX e início do século XX.
Figura 21. Live American flag, World’s Columbian
Exposition Illustrated, 1893, Chicago
Voltamos a
encontrar a total identificação de multidão e bandeira nacional num projecto
publicitário de 2006 de um banco português fortemente institucional, o Banco
Espírito Santo, em conjunto com o poder mediático (apoio da SIC) e o poder
desportivo, a Federação Portuguesa de Futebol (o que equivale grosso modo
ao poder político). Não se tratou apenas de um projecto publicitário privado,
mas de um projecto público, ao envolver não só as duas instituições como a
mobilização de milhares de figurantes para formar a bandeira nacional («a mais
bela bandeira do mundo») no Estádio Nacional, no Jamor. Compareceram 300 mil mulheres
(Jornal da Noite, SIC, 20.05.2006) e participaram na bandeira, segundo os
anúncios do BES, 18788 voluntárias respondendo ao apelo de uma intensa campanha
publicitárias multimeios. A iniciativa destinava-se a mulheres, o que, 114 anos
depois da bandeira de Chicago, permite uma leitura ainda dentro dos conceitos
psico-sociais daquela época. De facto, identificava-se o comportamento
colectivo da multidão não só às crianças como às mulheres: «por todo o lado as
multidões são femininas» (Le Bon: 1998: 19). O facto de a iniciativa poder ter
interesses comerciais do banco e da federação futebolística junto do público
feminino não permite afastar a ligação nesta campanha do conceito de multidão à
mulher, que vimos já há muito estabelecido (a Liberdade mulher guiando o povo
homem, a república mulher acompanhando os homens republicanos, a nação
mãe-pátria...). A publicidade do banco centrou-se na ideia de que «não é por
acaso que bola, equipa, claque e bandeira são palavras femininas» (Figura 21).
As mulheres que foram ao Estádio Nacional ovacionaram os homens da Selecção
Nacional de Futebol (que ali se deslocou propositadamente para receber esse
aplauso, como se vê na Figura 22), da mesma forma que os homens no quadro de
Delacroix ou na iconografia republicana se relacionam com o sexo oposto
simbolicamente representado.
As imagens da
bandeira formada no Estádio Nacional são idênticas na simbologia às da
Exposição de Chicago, beneficiando naturalmente da cor, do movimento, dos meios
audiovisuais e aéreos. As imagens foram
usadas nos noticiários da SIC e em vários anúncios publicitários
televisivos do BES, mostrando em alguns
planos rápidos a formação da bandeira, isto é, o crescimento da multidão e a
formação de uma nova representação nacional, até à sua completação (ver anúncios televisivos do BES). Tal como em Chicago, o
objectivo no Jamor era formar uma multidão para ser vista e registada
visualmente.
Figuras 22 e 23. Anúncios de imprensa do BES após a formação da multidão-bandeira no Estádio Nacional
Figuras 24 e 25. Anúncios de imprensa do
BES após a formação da multidão-bandeira no Estádio Nacional
A publicidade em
movimento acentuou a formação progressiva da bandeira, mas qualquer um dos
anúncios de imprensa (figuras, 21, 22 e 24) ou outdoors (Figura 23) também pretendeu transmitir a dinâmica de
crescimento da multidão quer pela multiplicação de fotos quer pelo movimento
das figurantes (Figuras 23). Quer as notícias quer a publicidade sublinharam
que vieram mulheres «de todos os cantos do país» (Figura 24), ou seja, a
multidão é, também dessa forma, coincidente com a nação simbolizada pela
bandeira. No caso em apreço, a multidão da bandeira absorveu a multidão das
bancadas (Figura 24, à direita), o que acentuou o significado simbólico da
imagem humana no relvado e o objectivo mediático e publicitário da iniciativa
para a sua transformação em registos para uso mediático e memória futura.
Em
relação à bandeira humana de Chicago, a do Jamor tem duas características
importantes que vale a pena salientar. Em primeiro lugar, o Jamor tem um plus
próprio do nosso tempo: a presença e a afirmação livre do indivíduo na
iniciativa colectiva. Os anúncios do BES apresentavam pessoas concretas
(pessoas «conhecidas» da televisão, como
a apresentadora Fátima Lopes ou a actriz Rita Salema, em diversos anúncios
anteriores à iniciativa, pessoas comuns em anúncios posteriores, como nas
figuras 22 e 24). Coube às reportagens televisivas acrescentar a vox populi
que confirmava o assentimento com a iniciativa, o consenso em seu redor
(«nacional», o que é indicado também pela referência à presença de camionetas
vindas de todo o país) e o equilíbrio entre o ser individual e aquela efémera
colectividade (ver Jornal da Noite, SIC, 20.05.2006).
O indivíduo
concorda com a formação de uma multidão ordenada em formato de bandeira
nacional. O indivíduo entrega-se a uma actividade (implicando deslocações,
despesas, tempo) que lhe dá satisfação pessoal através da ligação à multidão
enquanto símbolo duplo da nação (em si mesma e no formato bandeira).
Este equilíbrio
do Eu e do Nós nos participantes exprime-se nesta representação maior que a
vida da bandeira nacional, mas ocorre hoje em muitas outras ocasiões de
manifestações colectivas de índole nacional – e naquele mesmo dia, como as
reportagens mostraram: os indivíduos mostram o «Nós» nacional que há em si
transformando o seu próprio corpo em símbolo nacional. Nesta arte de rua,
nesta vernácula arte de multidão, pois parece só ocorrer em dias
especiais como os de grandes competições desportivas entre «nações», os
indivíduos vestem-se das cores da
bandeira, forram o corpo de cachecóis, lenços, T-shirts, barretes, chapéus,
xailes e muitos outros adereços que uma imaginação por vezes prodigiosa inventa
com as cores da bandeira e pintam-se das mesmas cores, como se tatuassem a
nação na própria pele, inscrevendo a colectividade no seu corpo individual
(Figuras 21 e 22). Na iniciativa do BES, SIC e FPF, as tatuagens tanto foram
iniciativa espontânea (Figura 22, no alto à direita) como encenação
publicitária (Figura 23).
Figuras 25 e 26. Adeptos gregos e
portugueses em jogos do Euro 2004
Esse envolvimento leva-nos à segunda diferença entre
Chicago e o Jamor. A bandeira portuguesa de 2006 foi uma multidão destinada a
uso publicitário. A multidão tornou-se uma mercadoria como qualquer outra. O
seu uso foi múltiplo, dadas as entidades envolvidas, mas em qualquer caso o
objectivo foi o de uma representação mediática de simbolismo imediato. Nos
últimos anos, acentuou-se a representação de multidões na publicidade,
distinguindo-se o caso do Jamor pelo envolvimento da bandeira nacional. Apenas
dois anos antes, a utilização do hino nacional numa campanha publicitária
portuguesa (PT), causou protestos e alguma indignação. Tal já não sucedeu no
caso da multidão-bandeira.
Em 1912 Durkheim escreveu que nas sociedades
«primitivas» a imagem do totem «torna-se sua representação, é nela que se fixam
os sentimentos experimentados, porque ela é o único objecto concreto a que
esses elementos podem prender-se. Continua a lembrá-los e a evocá-los depois
ainda de dissolvida a assembleia» (Durkheim 2002: 230). Esse é o valor da
bandeira: mantém a nação sempre viva. O papel da multidão é o de permitir a
existência da nação, de a mostrar, de a tornar memória colectiva «depois de
dissolvida a assembleia». As obras analisadas neste ensaio indicam a relação,
por vezes completa, entre a multidão nacional e a sua bandeira, numa poderosa
ligação entre o símbolo efémero (a multidão) e o símbolo permanente (a
bandeira). Ao mesmo tempo, estas obras apontam para uma característica pouco
realçada da multidão, neste caso da multidão nacional, e que nos parece de
importância crucial: com o seu registo iconográfico (mas também literário e
documental-jornalístico) a multidão não é apenas uma congregação efémera mas
também uma representação perene de grande valor nas estruturas simbólicas
colectivas.
Eduardo Cintra Torres
Caxias, Agosto de 2007
Lista
de Figuras
- E. Delacroix, A Liberdade Guiando o Povo no 28 de Julho de 1830, Musée du Louvre, Paris
- Tomada da Bastilha. Gravura. Origem desconhecida,. Colhida na internet.
- «Pela República», litografia com membros do partido republicano mais evidentes na época da propaganda, in Montalvor, 1935
- Veloso Salgado, Alegoria à eleição dos candidatos republicanos à Câmara Municipal de Lisboa em 1908, CML, in Montalvor, 1935
- Charles Alexander Smith, L'Assemblée des six-comtés, 1890, Musée National des Beaux-Arts du Québec
- Henry Nelson O'Neil, The Parting Cheer, 1861, National Maritime Museum, Londres
- Claude Monet, La Rue Montorgueil. Fête du 30 juin 1878,Musée d’Orsay, Paris
- Claude Monet, Rue Saint-Denis, fête du 30 juin 1878, Musée des Beaux-Arts de Rouen
- Édouard Manet, Rua Mosnier com Bandeiras, Paul J.Getty Museum, Los Angeles
- Christian Krohg, 17 de Maio de 1898, colecção particular
- Childe Hassam, Allies Day, May 1917, National Gallerry of Art, Washington, DC
- Carlos Carrà Manifestação Intervencionista, colagem publicada no jornal Lacerba sob o título Festa patriotica-dipinto parolibero, Veneza, Collezione gianni Mattioli, Colecção Peggy Guggenheim – Fundação Solomon R. Guggenheim, Nova York
- Primo Conti, Dimostrazione Interventista, 24 Maggio 1915, 1915, Fondazione Primo Conti, Fiesole
- Detalhe da figura anterior
- Giacomo Balla, Manifestação Patriótica, Museo de Arte Thyssen-Bornemisza, Madrid
- Giacomo Balla, Formas-Volume do Grito 'VivaItalia', 1915, Galeria Nacional de Arte Moderna, Roma
- Jasper Johns, Flag, 1954-5, Modern Art Museum, Nova York
- Grupo Puzzle, Bandeira Nacional, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
- Detalhe da figura anterior
- Live American flag, World’s Columbian Exposition Illustrated, 1893, Chicago, in Esteve, 2007
21 a
24. Anúncios de imprensa do BES após a formação da multidão-bandeira no Estádio
Nacional, iniciativa conjunta do BES, SIC e FPF, 2006
25. Adeptos
gregos no Euro 2004, fotografia recolhida na internet
26. Adeptos
portugueses no Euro 2004, fotografia recolhida na internet
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Ed.
[1] flag. (2007). In Encyclopædia Britannica. Visto em 09.08.2007, em Encyclopædia
Britannica Online: http://www.britannica.com/eb/article-2345
[2] A tradução portuguesa desta edição traduziu do alemão masse por massa,
mas teria sido mais correcta a tradução por multidão.
[3] Sobre a multidão dos mortos e dos inimigos, ver
Canetti, 1995: 42 e 65-72.
[4] France, flag of. (2007). In Encyclopædia Britannica. Visto em 09.08.2007, from Encyclopædia
Britannica Online: http://www.britannica.com/eb/article-9093861
[5] Musée des Beaux-Arts de Rouen, visto em
14.08.2007: http://www.framemuseums.org/jsp/
fiche_oeuvre.jsp?STNAV=&RUBNAV=&CODE=O116152645941161&LANGUE=0&RH=MUSEEsFR&OBJET_PROVENANCE=COLLECTION
[6] Norway e Norway, flag of. Encyclopædia Britannica.
2007. Encyclopædia Britannica Online. Visto em 14.08. 2007 <http://www.britannica.com/eb/article-39321>,
<http://www.britannica.com/eb/article-9093929>.
[7] http://www.nga.gov/collection/gallery/gg70/gg70-30131.0.html, visto em 15.08.2007.
[8] O mesmo sucede noutro quadro de Hassam, Avenue
of the Allies, Great Britain, 1918 (Metropolitan Museum of Art, Nova York),
no qual as bandeiras dos aliados presas em fios ligando os dois prédios de
ambos os lados da avenida ocupam cerca de dois terços da superfície enquanto o
movimento da rua serve de apoio para a composição. Em vez de manifestações,
Hassam pinta a multidão dispersa típica da cidade. O mesmo sucedia noutro seu
quadro, O 14 de Julho na Rua Daunou, 1910 (no mesmo museu), no qual a
unidade entre o movimento de carros e pessoas na rua, os prédios e as bandeiras
é ténue. O fascínio pela bandeira é igualmente acentuado num quadro de outro
pintor norte-americano, Maurice Prendergast, Piazza San Marco, cerca de
1898-9 (também no Met). A perspectiva
elevada da praça veneziana permite-lhe centrar a composição em três
enormes bandeiras, as quais adquirem uma importância total, obliterando os
edifícios e o espaço urbano.
[9] Cit. in http://www.askart.com/AskART/interest/flag_painters_1.aspx?id=31,
visto em 15.08.2007.
[10] Italy." Encyclopædia Britannica. 2007. Encyclopædia Britannica
Online. Visto em 14.08.2007 <http://www.britannica.com/eb/article-258859>.
[11] No mesmo ano de 1915 Balla pintou outras obras de
simbologia semelhante, como Bandeiras no Altar da Terra Natal, (Martin,
2005: 62-3) e Canto Patriótico (visto em 14.08.2007 em http://www.futurism.org.uk/balla/balla_im147.htm).
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