impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 58, 59 – STAN
GETZ
Fotografia de William Claxton
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A popularidade pode ser um anátema, pelo
que persiste alguma dificuldade em apreciar cabalmente a música de Stan Getz,
sendo ela tão redonda e mansa, com um ilusório travo adocicado. Esta aparente
facilidade deu-lhe renome (e riqueza), tanto como o estigmatizou nos círculos
mais “exigentes” do jazz. E no entanto, como é costume descobrir-se, não faltam
negrumes e tormentos no percurso de Stan Getz. Por exemplo o paradoxo de a sua
carreira só ter verdadeiramente começado depois de a darem como acabada.
Na antinomia entre Lester Young e Coleman
Hawkins que desde os anos 40 se impôs ao saxofone tenor, uma dialética mais
conceptual do que vivida, mesmo musicalmente, o jovem Stan Getz irrompeu na
orquestra de Woody Hermann (a “Manada”) e depressa foi ter à asa de Dexter
Gordon, na militância de revelar e asseverar o estilo de Prez como aquele capaz
de abrir outros horizontes do jazz que não os do bebop. A secura do timbre,
cintilante como um cálice de Xerez, a dicção quase silabada e sem vibrato,
dando valor a cada nota, e o “no nonsense” do fraseado conciso, puseram Getz
nas bocas do mundo.
Aquilo a que se pode chamar de “sistema”
aproveitou-se desta limpidez e quis fazer da sua música, ou melhor dele, o
ícone branco de um jazz apaziguador e sem riços. Stan Getz viu-se assim metido
numa camisa-de-onze-varas: não sendo o único músico branco de jazz – sequer o
único de olhos azuis – nem o mais banco dos músicos de jazz, pois não se
encaixava nos planaltos do cool da Costa do Pacífico, ficou encurralado como um
dos músicos mais denegridos como filistino e fariseu graças à alvura da sua
pele. Seria demasiado simplificador, ou seja psicológico, afirmar que as
dilacerações deste dilema levaram Stan Getz a enveredar pelos hábitos que
pareciam imprescindíveis aos jazzmen da época; de modo que acabou por ouvir o
insulto de “poor excuse for a man”
lançado pelo juíz que em 1954 o condenou por ter tentado assaltar uma farmácia
em Seattle, desvairado com a ressaca de morfina. O amor e o exílio talvez
pudessem quebrar o ciclo vicioso: Stan Getz casou com uma escandinava e foi
viver para a Dinamarca. Quando regressou a Nova Iorque um punhado de anos
depois os seus concertos ficavam às moscas – estava acabado.
Getz / Gilberto
1963
(2014)
Verve
- B 002074902
Stan
Getz (saxofone tenor), João Gilberto (gitarra, voz), António Carlos Jobim
(piano), Tommy Williams (contrabaixo).Milton banana (bateria), Astrud Gilberto
(voz).
No início de 1961, numa digressão
meramente alimentar pela América do Sul, com etapa no Rio de Janeiro, Stan Getz
ficou encantado pela música dos jovens locais. O ovo ou a galinha? Teria a
Bossa Nova sido o que foi sem Stan Getz? Teria Stan Getz conquistado assento no
panteão do jazz sem a Bossa Nova? O disco “Jazz Samba”, com um repertório de
temas de Jobim, Baden Powell e Ary Barroso deu o alerta para esta coisa nova.
No trilho dele produziu-se “Getz / Gilberto”, em 1963. Juntar em estúdio o
acanhadíssimo João Gilberto, que acometido pelo medo de palco foi retirado a
ferros do quarto do hotel, e o volúvel Stan Getz, dado a cóleras e caprichos;
pedir à última hora que a dona-de-casa Astrud Gilberto se dispusesse a cantar
pela primeira vez na vida; pedir emprestadas tonalidades e cores alheias à
tradição do jazz, no momento histórico em que descolavam, pediam meças pela
primazia e atraíam todas as atenções o jazz tonal de Miles Davis, o freejazz de
Ornette Coleman e o hard bop de Horace Silver e Sonny Rollins – que melhores
presságios haveria para o desastre?
“Getz / Gilberto” foi um retumbante
sucesso comercial. Aos moços da Bossa Nova elevou-os até à voz do Senhor, ou
seja de Frank Sinatra, e trouxe notoriedade mundial. A Stan Getz ofereceu o
proveito e os avatares do lugar-comum; não havendo que ousasse desmentir o
prodígio musical do disco, o resto da carreira do saxofonista dividiu-se entre o
conforto da fortuna e os riscos da criatividade, com supremacia do primeiro aos
olhos de quem não queria reparar nos segundos.
People Time
1992
Universal
Distribution – 5101342
Stan Getz (saxofone tenor), Kenny Barron (piano).
O final da vida de Stan Getz
ofereceu-lhe uma oportunidade trágica para a redenção absoluta. Como um
gladiador – morituri te salutant –
encarou com impavidez um cancro que sabia fatal, realizando nos primeiros dias
de Março de 1991, uma série de três concertos ao vivo no Clube Montmatre de
Copenhaga, em dueto com Kenny Barron. Morreu exactamente três meses depois. No
ano seguinte a gravação destas sessões foi publicada com o nome “People Time”.
O lirismo não tem que ser confrangedor
ou pungente, a melancolia pode prescindir o lamento, é possível proferir os
derradeiros acordes testamentais aquém do nirvana dos desprendidos e além do
ajuste de contas dos pesarosos. “People Time” não é um hino à vida, nem uma ode
à morte, mas a celebração do preciso momento em que cada tema foi interpretado:
transitivo, precário, irrecuperável. É verdade que ao lado de Stan Getz se
apresenta Kenny Barron – cuja modéstia tem feito dele o mais subestimado
pianista da história do jazz – com quem o instante parece definitivo dado o
rigor das improvisações, a certeza de cada nota, a elegância do desenvolvimento
do arco musical. Mas que outra coisa andou Stan Getz a dizer antes de o
escutarem tão claramente como em “People Time”?
José Navarro de Andrade
Sobre este extraordinário período da musica do mundo e em particularda brasileira aconselho leitura de Ruy Castro:Chega de saudade e A onda que se ergueu do mar.:Essa sessão por exemplo esteve para acabar á batatada .João dizia para o Tom-Ele toca tão alto pô.Getz "topou" e enfim...tudo acbou em bem.Por acaso eu estou de acordo com JGilberto.
ResponderEliminarO seu texto é irretocável.
Muito boa referência. Quanto á sessão dizem as cónicas que Getz interrompia-a para ir à casa de banho tomar mais uma dose, o que para os espíritos híper-melindrosos como os de Jobim e Gil há-de ter caído muito mal. Lendas...
EliminarEste post deixou-me um bocadinho desanimado, tinha quase a certeza de ter o Getz/Gilberto (tenho coisas parecidas) mas este não o consegui encontrar.
ResponderEliminarDo que tenho vou escolher um que já publiquei noutra plataforma com relativo sucesso.
O senhor aqui mencionado é um dos 10 mais.
Mas colocou no Fado Alexandrino o "Focus", elevando a fasquia!
EliminarPerante os comentários de verdadeiros "patrões", sinto-me constrangida ao comentar seja o que for acerca deste Senhor !!! A ignorância é uma coisa tramada!!!
ResponderEliminarConsegui respirar de alívio quando a minha memória reavivou... afinal estes artigos são para leigos e para catívá- los... certo??? Objetivo superado!!!
Parabéns por mais um excelente texto.
Nota mental: Leigos e cépticos, leiam o texto ao som de Stant Getz!!! Pleno!!!
És uma querida.
EliminarSorry.
ResponderEliminarEstou a ter dificuldades com o Mediafire e não sei quando e se voltarei a publicar.
Mau... Olhe que faz aqui muita falta. Não quero perder as conversas consigo.
EliminarParece que de momento consegui voltar a colocar.
EliminarVamos ver no futuro.