segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Spínola e as três versões da Lei da Descolonização.




 


0. A eliminação, na noite do “25 de Abril”, do reconhecimento do direito dos Povos à autodeterminação constante do Programa do MFA iria revelar-se um erro estratégico de Spínola. Além do mais, foi a principal causa da paralisia das conversações com o PAIGC e com FRELIMO, iniciadas, respectivamente, a 25 de Maio e a 5 de Junho, pois o mandato da delegação portuguesa restringia-se ao cessar-fogo.
 
Numa conjuntura muito instável, a 9 de Julho de 1974 o Conselho de Estado prosseguiu a reunião que iniciara no dia anterior para apreciação das propostas de alteração constitucional apresentadas pelo Primeiro-Ministro, Adelino da Palma Carlos, que visavam a eleição imediata do Presidente da República (o próprio Spínola) e a aprovação duma Constituição Provisória (que substituiria o Programa do MFA). No seu termo, o porta-voz limitou-se a informar terem sido discutidas a situação política e a questão ultramarina. Mais explícito, o semanário Expresso, de 13/7/1974, publicou um depoimento do general Costa Gomes que, sobre o item “Alterações no problema da descolonização”, informava ter a alínea a) do n.º 8 do Programa do MFA sido «interpretada oficialmente pelo Conselho de Estado, e publicada em diploma». Embora nada tivesse sido entretanto publicado, deduzia-se que, além da rejeição do chamado “Plano Palma Carlos”, o Conselho de Estado também deliberara (legislativamente) sobre o problema ultramarino.

 
Em 18 de Julho, na posse do II Governo Provisório, o novo Primeiro-Ministro, Vasco Gonçalves, confirmou ter o Conselho de Estado aprovado uma lei constitucional, a qual, «completando e esclarecendo o pensamento que presidiu ao Programa do MFA», reconhecia o direito dos povos à autodeterminação, com todas as suas consequências, incluindo o direito à independência.


...Sabe-se hoje que a Lei da Descolonização foi afinal apreciada em várias sessões do Conselho de Estado, entre 8 e 24 de Julho, e teve três versões. Nas duas primeiras identificava-se como Lei (Constitucional) n.º 6/74. Só na terceira e última versão foi publicada como Lei n.º 7/74, de 27 de Julho. Enquanto Presidente da Junta de Salvação Nacional, Presidente da República e Presidente do Conselho de Estado, Spínola dirigiu todo o processo.
 
1. A primeira versão resultou da referida sessão “alargada” do Conselho de Estado de 8 e 9 de Julho. Depois dum curto preâmbulo, atribuindo a sua iniciativa ao MFA «através da Junta de Salvação Nacional e dos seus representantes no Conselho de Estado», continha um único artigo (cuja fonte era o artigo 2.º, n.º 2, do projecto de “Constituição Provisória”, acabado de rejeitar). Dizia essa primeira versão:
 

ARTIGO ÚNICO

O princípio de que a solução das guerras no Ultramar é política e não militar, consagrado no n.º 8, alínea a), do Capítulo B do Programa do Movimento das Forças Armadas, envolve, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito à autodeterminação, com todas as suas consequências, incluindo a independência dos territórios portugueses do Ultramar.
 
 Não há acta dessa sessão, mas as declarações de Spínola, na abertura da posterior sessão de 19 de Julho, são inequívocas. Afirmou então que na «eventualidade de o Estado Português ter de tomar uma decisão concreta sobre a concessão da independência à província da Guiné, deliberou este Conselho na sua última sessão, através da Lei Constitucional n.º 6/74, de 9 de Julho, fazer uma interpretação extensiva do n.º 8 da Capítulo B do Programa do MFA […]». Porém, tal Lei n.º 6/74 não foi promulgada nem publicada, pois Spínola decidiu, entretanto, que o esclarecimento que ela trazia ao Programa do MFA levantava «problemas de fundo», que não poderiam deixar de ser «clara e inequivocamente definidos».
 
Tais problemas eram de duas ordens.
 
Em primeiro lugar, dispondo expressamente o Programa do MFA que a definição da política ultramarina competia à Nação, concluía-se que o Conselho de Estado não era competente para reconhecer o direito à autodeterminação e independência. Segundo Spínola, só a Nação o poderia fazer e, na ausência duma Assembleia Constituinte, a via verdadeiramente legítima seria a consulta à Nação. A alternativa era o Conselho de Estado revogar o referido n.º 8 do Programa do MFA e substituir tal disposição de modo a permitir, por outro caminho, a resolução do problema da Guiné. Em segundo lugar – acrescentou –, haveria que previamente revogar também os artigos 1.º e 2.º da Constituição Política de 1933, relativos à definição e alienação do território nacional.

 
2. No termo da sua exposição, afirmou Spínola que «se este Conselho de Estado verificar, como se torna evidente, a impossibilidade da realização do plebiscito, é a ele – e só a ele – que compete decidir, inequivocamente, sobre a independência de qualquer parcela do Território Nacional, considerando-se insuficiente, para tal efeito, o “esclarecimento” feito pela Lei Constitucional aprovada na última reunião […]». Assim era porque – concluiu – não aceita a responsabilidade de «alienar uma parte do território nacional, sem a confirmação do Conselho de Estado ou da Nação».

 
 O Conselho de Estado entrou em «prolongada discussão», omissa na Acta. No entanto, as notas manuscritas do Conselheiro Almada Contreiras, além de resumirem aquela exposição do Presidente da República, destacam a intervenção do general Costa Gomes (invocando a gravidade da situação militar na Guiné) e enunciam esquematicamente as sucessivas propostas quanto às formulações dos (novos) artigos 1.º e 2.º. 

 
 No final, procedeu-se às votações: primeiro foi votada e rejeitada (por catorze votos contra um) a versão apresentada pelo Conselheiro Freitas do Amaral quanto à redacção do artigo 2.º (que restringiria o reconhecimento como Estados independentes aos territórios ultramarinos que optassem pela independência); de seguida, foi aprovada por unanimidade a proposta apresentada pelo Presidente da República (depois de emendada) no respeitante ao preâmbulo e ao artigo 1.º; finalmente, o artigo 2.º desta mesma proposta foi aprovado por maioria com catorze votos a favor e um contra (Conselheiro Freitas do Amaral). Este último e ainda os Conselheiros Diogo Neto e Jaime Silvério Marques juntaram “declarações de voto”. Só estiveram presentes três dos sete membros representantes do MFA (Conselheiros Vitor Crespo, Almada Contreiras e Pereira Pinto) pois ainda não haviam sido empossados os quatro novos membros (Franco Charais, Canto e Castro, Vasco Lourenço e Pinto Soares) que substituiriam os que passaram a fazer parte do II Governo Provisório. A sessão terminou às 23,05h e não ficou marcada nenhuma reunião.


::::Os dois artigos desta segunda versão da Lei n.º 6/74 dispunham o seguinte:
 

ARTIGO 1.º
 
O princípio de que a solução das guerras no Ultramar é política e não militar, consagrado no n.º 8, alínea a), do Capítulo B do Programa do Movimento das Forças Armadas, implica de acordo com a Carta das Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito à autodeterminação dos povos
 

ARTIGO 2.º
 
O reconhecimento do princípio da autodeterminação, com todas as suas consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos e a correspondente derrogação do artigo 1.º da Constituição Política de 1933.
 
         
Na quarta-feira, 24 de Julho, foi distribuído pela Imprensa Nacional um Suplemento ao Diário do Governo, n.º 167, datado de sexta-feira, 19 de Julho, onde era publicada esta Lei n.º 6/74. Os jornais da tarde davam-lhe o devido relevo. Afinal, por ter sido publicada antes de devidamente promulgada, tratava-se duma “falsa lei”.

 
 


3. Na rectificação vai ser decisiva a intervenção de Almeida Santos, após reunião imediata com Spínola, invocando a sua qualidade de Ministro da Coordenação Interterritorial. Aproveitando a oportunidade, irá então ser discutida e aprovada uma nova versão – a terceira – da Lei da Descolonização. Com efeito, a sessão do Conselho de Estado, de 24 de Julho, teve a seguinte agenda: 1 – “Alterações à lei Constitucional relativa ao Estatuto Político-Administrativo dos Estados de Angola e Moçambique”; 2 – “Exposição pelo Senhor Ministro da Coordenação Interterritorial sobre a lei que esclarece o alcance do n.º 8 do capítulo B do Programa do Movimento das Forças Armadas”. Estiveram presentes todos os 21 membros e o Ministro da Coordenação Interterritorial.

 
Na sua exposição, Almeida Santos referiu-se aos efeitos práticos da forma constante da recém-publicada Lei n.º 6/74 e sugeriu mudanças terminológicas nos artigos 1.º e 2.º bem como o acrescento dum artigo 3.º sobre a competência do Presidente da República.


::::De seguida, Spínola pôs o assunto à discussão. O Conselheiro Diogo Freitas do Amaral propôs um acrescento na redacção do novo artigo 3.º. Intervieram ainda os Conselheiros Azeredo Perdigão, Diogo Neto e Galvão de Melo. Submetido a votação, foi aprovado por unanimidade (21 votos) o texto daquela que passava a ser a Lei Constitucional n.º 7/74, de 27 de Julho:

 
ARTIGO 1º.
O princípio de que a solução das guerras no Ultramar é política e não militar, consagrado no n.º 8, alínea a), do Capítulo B do Programa do Movimento das Forças Armadas, implica de acordo com a Carta das Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito dos povos à autodeterminação.
 
ARTIGO 2º.
O reconhecimento do direito à autodeterminação, com todas as suas consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos e a correspondente derrogação do artigo 1.º da Constituição Política de 1933.
          

ARTIGO 3.º
Compete o Presidente da República, ouvidos a Junta de Salvação Nacional, o Conselho de Estado e o Governo Provisório, [praticar os actos e] concluir os acordos relativos ao exercício do direito reconhecido nos artigos antecedentes.


::::Portanto, nesta terceira versão, além de corrigida a redacção dos artigos 1.º e 2.º, foi acrescentado um novo artigo (de que, por sua vez, a expressão «praticar os actos e», de iniciativa do Conselheiro Freitas do Amaral foi omitida na publicação oficial, pelo que também esta teve de ser rectificada). Segundo Almeida Santos, era precisamente no artigo 3.º que se encontrava «a tónica de novidade» da Lei n.º 7/74 pois criava «um instrumento constitucional dúctil» que habilitava o Presidente da República «a adequar as soluções, no plano prático, aos condicionalismos de cada território» e a tomá-las «sem entorpecentes delongas», isto é, a controlar o processo de descolonização «sem se deixar ultrapassar pelos acontecimentos». Segundo Freitas do Amaral, tal norma tivera «um objectivo político definido: retirar a condução do processo de descolonização ao Primeiro-Ministro da época – Vasco Gonçalves – e transferi-la para o Presidente da República da altura – António de Spínola».


::::A 27 de Julho, a propósito da publicação da Lei n.º 7/74, Spínola fez uma Comunicação ao País, que intitulou “Nações Irmãs do Mundo Lusíada”. A 29 de Julho, os partidos da coligação governamental – PS, PCP, PPD e MDP/CDE – promoveram conjuntamente uma manifestação em frente ao palácio de Belém, onde foi recebida por Spínola ladeado por Costa Gomes e Vasco Gonçalves.

 
 
 
4. A recente publicação das Actas do Conselho de Estado é essencial, como salienta Marcelo Rebelo de Sousa no “Prefácio”; nele enuncia catorze razões de especial atracção do livro e destaca duas ideias-força: a aparente desorganização do funcionamento do Conselho de Estado e a sua “não centralidade” no processo revolucionário. De facto, as Actas comprovam que Spínola, além de ter exigido a intervenção do Conselho de Estado como órgão com poderes constituintes (para ser este a assumir a responsabilidade pela aceitação da independência dos territórios ultramarinos), não só propôs e defendeu a Lei da Descolonização como manteve a competência de condução do processo de descolonização de todos e cada um dos territórios ultramarinos.

 
Porém – ultrapassando tal cuidado –, a aprovação da Lei de Descolonização acarretou a derrota do programa que defendera desde a publicação de Portugal e o Futuro, ou seja, o fracasso da fórmula de descolonização prolongada, federalista e referendária. Rapidamente, Spínola entrou em conflito com todos: com a Junta de Salvação Nacional, com o MFA, com os partidos políticos e demais forças sociais e, até, «consigo mesmo» (na fórmula posterior de Almeida Santos). Os movimentos de libertação não confiavam nele. As suas diligências para obter apoio externo fracassaram. O MFA ia controlando progressivamente o essencial do poder. Tornara-se evidente que a resolução do problema africano passara para as mãos dos movimentos de libertação e do MFA – que o resolverão através de Acordos de Descolonização, no fundo todos iguais na organização de um processo de independência rápida das colónias portuguesas em África.

 


António Duarte Silva

 



(Este resumo baseia-se na documentação publicada por Maria José Tíscar Santiago, O 25 de Abril e o Conselho de Estado – A Questão das Actas, Lisboa, Edições Colibri, 2012)

 

 

 

 

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