impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 49, # 50 – CHARLES
MINGUS
Fotografia de Guy Le Querrec
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Mingus o temerário, Mingus o
mercurial, Mingus o voraz, Mingus o insatisfeito, por secretamente julgar que
nunca estava à altura das suas próprias ambições – donde a efígie de Mingus o
carrancudo. Tudo isto é fidedigno, tudo isto foi sentido por quem com ele
conviveu, nada disto conta.
Em palco e à vista de todos, donde
era capaz de se dar ao respeito de mandar calar quem na plateia persistisse no
falatório durante a música, Charles Mingus foi a presença maciça que emancipou
o contrabaixo do jazz, tirou-o da casa das máquinas e redefiniu-lhe o estatuto.
Com ele o contrabaixo deixou de ser o tapete voador que sustentava a excursões
rítmicas e harmónicas dos solistas e tornou-se uma espécie de batuta, a criar
ordem no ímpeto dos metais (saxofone, trompete, trombone) que irrompiam
aparentemente à discrição no desenrolar dos temas, ou um êmbolo a impulsionar
os parceiros para que não se distraíssem ou se conformassem. Quer isto dizer
que mais do que um contrabaixista, Charles Mingus foi um supino compositor – há
quem jure ter sido um dos maiores do jazz – e um orquestrador ou arranjador
talvez só inferior a Duke Ellington, seu farol e mapa.
A publicação de “Pithecanthropus
Erectus”, em 1956, arrebitou todas as orelhas da buliçosa e extraordinariamente
competitiva cena do jazz de então. Jogando o jogo da metáfora, com o risco de
empobrecer o enunciado, diga-se que assim como no dramático crescendo da
composição se pode visualizar o primata a erguer-se e a fazer-se humano, também
nessa progressão se representa o percurso de Charles Mingus, que desde o
periférico bairro de Watts em Los Angeles, em que foi criado, chegava agora à
ribalta depois de uma sofrida tarimba, do arqueológico Kid Ory até Charlie
Parker, passando pela orquestra de Lionel Hampton. No ano seguinte, em 1957,
abrindo o disco “The Clown”, Mingus fulgura outro tema de invulgar sofisticação
e originalidade: “Haitian fight song” – mas donde provinha esta música, tão
radical, tão ancestral e tão oxigenada?
Mingus
Ah Um
1959
(2013)
Columbia / Sony Music Entertainment - 6619803
Charles Mingus (contrabaixo), John Handy (saxofone
alto e tenor, clarinete), Booker Erwin (saxofone tenor), Shafi Haidi (saxofone
alto e tenor), Jimmy Knepper, Willie Dennis (trombone), Horace parlan (piano),
Dennie Richmond (bateria)
1959 está para o jazz como 1939 para
o cinema: o ano perfeito e, simultaneamente, o jardim dos caminhos que se
bifurcam. Alguém que oiça só os discos dessa colheita ficará imbuído da
sensação de ter entendido tudo o nele desaguou e estará apetrechado para
depreender tudo o que dele decorreu. E este foi o ano em que Charlie Mingus se firmou
no seu pedestal, com “Mingus Ah Um”, título bizarro que a versão comum explica
como uma mnemónica utilizada pelos alunos de latim – mas bem pode ser um
pigarro, uma interjeição, ou um mantra tibetano entoado de peito…
“Mingus Ah
Um” é o ovo Dogon da obra de Mingus; na sua matéria compacta condensam-se e
desfiam-se todos os elementos da sua música. Contrariando a maneira habitual e
linear, a melhor forma de ouvir o trabalho musical de Mingus não há-de ser como
um trajecto ou percurso. Ele não apontou para lado nenhum, nem veio de algum
lugar específico, ele apareceu numa encruzilhada, imbuído do aluvião de jazz
que ali convergiu, e desenvolveu a sua música sem sair dessa foz de tantas
influências. A obra de Mingus não é um caminho mas um cruzamento; numa altura
em que o bebop se acomodava à sua própria tradição e com o emergente freejazz
disposto a lascar todas as raízes, entre dois dogmatismos, portanto, Mingus
ergueu a sua própria barricada.
À convocatória de “Mingus Ah Um” só
faltou o ecletismo, que seria o expediente mais fácil para organizar tamanha
variedade de processos, efeitos e resultados. Há temas com melodia de assobiar
de cor (será exagero afirmar que “Better Git in Your Soul” ou “Goodbye Pork Pie
Hat” são imortais?); sem medo da estridência, a polifonia dos metais em certos
momentos emana uma atmosfera cinematográfica; a orquestração dos solos tem a
excitação sem embriaguez de uma jam session e as arestas harmónicas muito
“livres”, aguçam sobre um provecto, quase telúrico, colchão rítmico de blues e
gospel. Com “Ah Um” Mingus foi laureado César pela cidade.
Mas depois da vitória, a derrota,
porque a vida dos músicos tem recorrências de Ícaro. Em 1962 Charles Mingus
aventura-se a um concerto no Town Hall de Nova Iorque, compondo com ambições sinfónicas
para uma grande massa orquestral, mas o evento foi mal preparado e pior
administrado, resultando num fiasco absoluto; nem sequer granjeou a glória de
uma derrota épica – apenas uma cuidadosa, e por isso mesmo constrangedora,
indiferença.
The
Black Saint and the Sinner Lady
1963
(2007)
Impulse! - 9600
Charles Mingus (contrabaixo, piano), Rolf Ericson,
Richard Williams (trompete), Quentin Johnson (trombone), Don Butterfield
(tuba), Jerome Richardson (saxofone soprano, barítono, flauta), Dick Hafer
(saxofone tenor), Charles Mariano (saxofone alto), Jackie Bayard (piano), Jay
Berliner (guitarra), Dannie Richmond (bateria).
Que outro exemplo, além de “The Black
Saint and the Sinner Lady”, se conhece de uma obra prefaciada pelo psiquiatra
do artista? Após o desastre de Town Hall a convalescença foi violenta – uma
depressão aguda, um ano abúlico. Porém a fénix renasceria com esta suite, que a
etiqueta Impulse! se propôs editar à condição. Contra a vontade do autor, a
peça não seria publicada como um todo ininterrupto, não só dada a
impossibilidade técnica de a sua duração ser incompatível com os long play (no
mínimo haveria que virar o disco…) como foi decisão do editor separar as
partes, ou “movimentos”, para maior comodidade do ouvinte e dos disc jockeys
radiofónicos.
Ao entrarem no estúdio cada um dos
onze intérpretes não tinha dúvidas sobre o que lhe competia e o que podia
fazer, visto que o ensemble trazia já seis semanas de experiência ao vivo no
Village Vanguard, durante as quais a partitura original foi apurada e alterada
até ao nível de aperfeiçoamento cometido no registo. Este tirocínio revelou-se
capital dado que “The Black Saint and the Sinner Lady”, com a sua estarrecedora
complexidade, legitimou de modo irrevogável as credenciais ellingtoninanas de
Charles Mingus; a dinâmica das secções foi refinada até à filigrana ao mesmo
tempo que a articulação e a totalidade sonora saía robustecida.
A música de Mingus não faz dançar
como o swing, mas agita o corpo; não nos provoca o transe das grandes
palpitações rítmicas, mas possui uma exaltação que não dá um segundo de
sossego; estão sempre a acontecer muitos sons, mas conseguimos distingui-los um
por um; sabemos para onde o classicismo do seu andamento nos leva, mas brotam
as surpresas. E tudo isto continua a colher-nos ao cabo de muitas audições,
assim como no fim, depois e tanto engenho, o sabor que nos fica na memória é
irremediavelmente o travo agridoce e antiquíssimo dos blues.
José Navarro de Andrade
Continuamos nos dinossauros, infelizmente todos já desaparecidos.
ResponderEliminarPodem e vão aparecendo outros, podia ser igual mas não é.
Desde tenho os aqui mencionados e mais alguns.
Vou até ao baú ver o que se pode arranjar.
Até logo.