quarta-feira, 14 de outubro de 2015




impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

# 3 - “JELLY ROLL” MORTON

 

 
 
Fotografia de Frank Driggs
 
 
Se Louis Armstrong era o negro que a “high society” poderia convidar para entreter os seus salões, já o crioulo “Jelly Roll” Morton deslustraria qualquer convívio mundano. Ele estaria para o jazz como aquele tio debochado e delituoso, cujas inconveniências recordam à família, que porfiou pela respeitabilidade, as suas origens torpes.
Nado e criado em Nova Orleães, cidade particularmente pecaminosa na transição para o século XX, Ferdinand Joseph LaMothe exerceu todos os biscates disponíveis nos bas fonds: proxeneta, jogador de bilhar, corrector de apostas clandestinas, homem de mão… Conforme a estas lides era atreito a tratar as raparigas à estalada e não se pode excluir que nalguma rixa tenha enfiado uma ou outra navalha em costados inimigos. Presunçoso e aperaltado, o seu aspecto seria ridículo se não fosse alarmante, ostentando uma dentadura dourada cravejada de diamantes. E como não lhe faltava o sentido de humor dos insolentes adoptou de bom grado o nome de guerra “Jelly Roll” Morton, guardando-se de revelar que “torta de geleia” significava “vagina” no rasquíssimo calão dos lupanares de Storyville.
Mas assim como o vento sopra onde quer, também o génio toca quem lhe apetece, sem cuidar de méritos morais ou espirituais. Não foi, porém, só no ofício de pianista, primeiro de bordel e depois de vaudeville, que “Jelly Roll” Morton auferiu assento na História, dado que sobretudo a sua mestria na composição e na orquestração se revelou uma pedra de toque na implantação daquilo que começava a chamar-se de jazz. De todos os “primitivos” que deram feição ao género no início da década de 20, ele terá sido aquele que trazia mais bagagem ao desembarcar em Chicago. Se Louis Armstrong era praticamente um donzel quando lá chegou (do ponto de vista musical, claro…), ciente apenas das sonoridades de Nova Orleães, “Jelly Roll” Morton trazia no bornal quase 20 anos de périplo e tarimba pelo Sul dos Estados Unidos, da costa do Golfo ao Pacífico, calcorreado até às neves de Vancouver, durante os quais enxertou no seu estilo nativo toda a sorte de influência que foi encontrando pelo caminho, algumas bem adventícias: operetas, quadrilhas francesas, tango e rumba, marchas militares, cançonetas populares vendidas em folhetos, espirituais e hinos religiosos, blues, ragtime sincopado – e o que mais houvesse.
 
 
Birth of the Hot - the Classic Chicago "Red Hot Peppers" Sessions 1926-27
1995
Bluebird / RCA - 66641
“Jelly Roll” Morton (piano, voz), Kid Ory (trombone), Johnny Dodds (clarinete), Darnell Howard (clarinete), Gerald Reeves (trombone), Stump Evans (saxophone alto), George Mitchell (cornete), Omer Simeon (clarinete, clarinet baixo), Quinn Wilson (tuba), Johnny St. Cyr (banjo, guitarra, voz), John Lindsay (contrabaixo), Bud Scott (guitarrra) J. Wright Smith (violino), Clarence Black (violin), Andrew Hilaire (bateria), Babby Dodds (bateria).
 
 
[Quem desejar descer às profundezas da música de “Jelly Roll” Morton, poderá adquirir a recolha produzida pelo etnógrafo e musicólogo Alan Lomax para a Library of the Congress. No decurso de várias tardes de 1939, bem lubrificado com bourbon, Morton foi longamente entrevistado por Lomax e discorreu a sua auto-biografia, entrecortando o rosário de histórias com interpretações ao piano das suas composições, analisando-as e dissertando sobre a sua origem e técnica. Um monumento.]
 
 
O que dimanou deste guisado de ingredientes heteróclitos, que às mãos de outro teria resultado numa mixórdia, pode ouvir-se na música dos “Red Hot Peppers”, grupo que “Jelly Roll” Morton manteve entre 1926 e 1930, primeiro em Chicago depois em Nova Iorque. Quase nada se perde e tudo se transforma fazendo prova cabal de que o jazz, desde o seu embrião, nunca terá sido uma música imaculadamente negra, nem demarcadamente originária de Nova Orleães, mas um palimpsesto, pelo menos tão mestiço como o seu criador.
Reivindicar a invenção do jazz contra a suposta paternidade de W. C. Handy, foi o que pleiteou “Jelly Roll” Morton numa azeda polémica nas páginas da revista Downbeat em 1938.
À época tomaram-no como um mistificador e um ressentido, pois já o haviam praticamente olvidado; o seu molde harmónico e melódico, empobrecera no asséptico e frívolo dixieland e o swing, ao qual nunca se adaptara, convertera-se na música popular americana.
Mas hoje, dando desconto ao egocentrismo de “Jelly Roll” Morton, terá que se levar a sua reclamação na conta de exagerada em vez de mentirosa – não lhe dando título de paternidade do jazz, conceda-se-lhe, no mínimo, o de padrinho.
 
 
José Navarro de Andrade

2 comentários:

  1. Tinha que acontecer.
    Deste não tenho nada.
    Talvez do próximo.

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  2. Vale muito a pena comprar a antologia do Lomax a um preço conveniente no iTunes.

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