impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 3 - “JELLY ROLL” MORTON
Fotografia de Frank Driggs
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Se
Louis Armstrong era o negro que a “high society” poderia convidar para entreter
os seus salões, já o crioulo “Jelly Roll” Morton deslustraria qualquer convívio
mundano. Ele estaria para o jazz como aquele tio debochado e delituoso, cujas
inconveniências recordam à família, que porfiou pela respeitabilidade, as suas
origens torpes.
Nado
e criado em Nova Orleães, cidade particularmente pecaminosa na transição para o
século XX, Ferdinand Joseph LaMothe exerceu todos os biscates disponíveis nos bas fonds: proxeneta, jogador de bilhar,
corrector de apostas clandestinas, homem de mão… Conforme a estas lides era
atreito a tratar as raparigas à estalada e não se pode excluir que nalguma rixa
tenha enfiado uma ou outra navalha em costados inimigos. Presunçoso e
aperaltado, o seu aspecto seria ridículo se não fosse alarmante, ostentando uma
dentadura dourada cravejada de diamantes. E como não lhe faltava o sentido de
humor dos insolentes adoptou de bom grado o nome de guerra “Jelly Roll” Morton,
guardando-se de revelar que “torta de geleia” significava “vagina” no rasquíssimo
calão dos lupanares de Storyville.
Mas
assim como o vento sopra onde quer, também o génio toca quem lhe apetece, sem
cuidar de méritos morais ou espirituais. Não foi, porém, só no ofício de pianista,
primeiro de bordel e depois de vaudeville, que “Jelly Roll” Morton auferiu assento
na História, dado que sobretudo a sua mestria na composição e na orquestração se
revelou uma pedra de toque na implantação daquilo que começava a chamar-se de
jazz. De todos os “primitivos” que deram feição ao género no início da década
de 20, ele terá sido aquele que trazia mais bagagem ao desembarcar em Chicago. Se
Louis Armstrong era praticamente um donzel quando lá chegou (do ponto de vista
musical, claro…), ciente apenas das sonoridades de Nova Orleães, “Jelly Roll”
Morton trazia no bornal quase 20 anos de périplo e tarimba pelo Sul dos Estados
Unidos, da costa do Golfo ao Pacífico, calcorreado até às neves de Vancouver, durante
os quais enxertou no seu estilo nativo toda a sorte de influência que foi
encontrando pelo caminho, algumas bem adventícias: operetas, quadrilhas
francesas, tango e rumba, marchas militares, cançonetas populares vendidas em
folhetos, espirituais e hinos religiosos, blues, ragtime sincopado – e o que
mais houvesse.
Birth of the Hot - the Classic Chicago "Red Hot
Peppers" Sessions 1926-27
1995
Bluebird / RCA - 66641
“Jelly Roll” Morton (piano, voz), Kid Ory (trombone), Johnny Dodds
(clarinete), Darnell Howard (clarinete), Gerald Reeves (trombone), Stump Evans
(saxophone alto), George Mitchell (cornete), Omer Simeon (clarinete, clarinet
baixo), Quinn Wilson (tuba), Johnny St. Cyr (banjo, guitarra, voz), John
Lindsay (contrabaixo), Bud Scott (guitarrra) J. Wright Smith (violino), Clarence
Black (violin), Andrew Hilaire (bateria), Babby Dodds (bateria).
[Quem
desejar descer às profundezas da música de “Jelly Roll” Morton, poderá adquirir
a recolha produzida pelo etnógrafo e musicólogo Alan Lomax para a Library of
the Congress. No decurso de várias tardes de 1939, bem lubrificado com bourbon,
Morton foi longamente entrevistado por Lomax e discorreu a sua auto-biografia,
entrecortando o rosário de histórias com interpretações ao piano das suas
composições, analisando-as e dissertando sobre a sua origem e técnica. Um
monumento.]
O
que dimanou deste guisado de ingredientes heteróclitos, que às mãos de outro
teria resultado numa mixórdia, pode ouvir-se na música dos “Red Hot Peppers”, grupo
que “Jelly Roll” Morton manteve entre 1926 e 1930, primeiro em Chicago depois
em Nova Iorque. Quase nada se perde e tudo se transforma fazendo prova cabal de
que o jazz, desde o seu embrião, nunca terá sido uma música imaculadamente
negra, nem demarcadamente originária de Nova Orleães, mas um palimpsesto, pelo
menos tão mestiço como o seu criador.
Reivindicar
a invenção do jazz contra a suposta paternidade de W. C. Handy, foi o que
pleiteou “Jelly Roll” Morton numa azeda polémica nas páginas da revista
Downbeat em 1938.
À
época tomaram-no como um mistificador e um ressentido, pois já o haviam praticamente
olvidado; o seu molde harmónico e melódico, empobrecera no asséptico e frívolo
dixieland e o swing, ao qual nunca se adaptara, convertera-se na música popular
americana.
Mas
hoje, dando desconto ao egocentrismo de “Jelly Roll” Morton, terá que se levar
a sua reclamação na conta de exagerada em vez de mentirosa – não lhe dando
título de paternidade do jazz, conceda-se-lhe, no mínimo, o de padrinho.
José Navarro de Andrade
Tinha que acontecer.
ResponderEliminarDeste não tenho nada.
Talvez do próximo.
Vale muito a pena comprar a antologia do Lomax a um preço conveniente no iTunes.
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