«Política
e consciência» foi um texto redigido por Václav Havel em Fevereiro de 1984,
como discurso a ser lido na Universidade de Toulouse, onde lhe foi atribuído o
título de doutor honoris causa. Tendo passado pela prisão e sem
passaporte, Havel não pôde deslocar-se a França. Na cerimónia, realizada em 14
de Maio de 1984 na Universidade de Toulouse-Le Mirail, foi representado pelo
dramaturgo inglês Tom Stoppard. O texto circulou clandestinamente em Praga como
samizdat, sendo publicado pela primeira
vez em língua inglesa na Salisbury Review,
em Janeiro de 1985. Publica-se um extracto desse texto, a partir da versão
publicada in Václav Havel, Open Letters. Selected
Writings, 1965-1990,
org. de Paul Wilson, Nova Iorque, Vintage Books, s.d., pp. 249ss. De
1989 a 1992, Havel foi Presidente da Checoslováquia, o primeiro a ser democraticamente
eleito em 41 anos. Mais tarde, seria Presidente da República Checa, de 1994 a
2003. O escritor, intelectual, dramaturgo e político, um dos artífices da «Revolução de
Veludo», morreu a 18 de Dezembro de 2011.
***
De
vez em quando, tenho oportunidade de falar com intelectuais do Ocidente que
viajam até ao nosso país e decidem incluir no seu itinerário uma visita a um
dissidente – uns por interesse genuíno, desejo de compreender e expressar a sua
solidariedade, outros por mera curiosidade. Além dos monumentos góticos e
barrocos, os dissidentes são aparentemente o único ponto de interesse neste
ambiente tão árido e uniforme. Estas conversas são geralmente instrutivas:
aprendo muito com elas e começo a entender muita coisa. As questões que com
mais frequência me colocam são estas: pensam que podem realmente mudar o que
quer que seja, sendo tão poucos e não tendo qualquer influência? São adversários do socialismo ou, ao invés,
ambicionam melhorá-lo? Condena ou desculpa a instalação de mísseis Pershing II
e de mísseis de cruzeiro na Europa ocidental? O que podemos fazer por vós? O
que é que o leva a agir assim quando da sua atitude só resultam perseguições e
detenções – e nenhum resultado visível? Deseja que o capitalismo seja
reintroduzido no seu país?
Estas
perguntas são bem-intencionadas, e nascem de um genuíno desejo de compreender a
realidade, mostrando que os seus autores se preocupam com o mundo, presente e
futuro.
Ainda
assim, estas questões e outras do mesmo género fazem-me concluir até que ponto
os intelectuais do Ocidente não compreendem – e, em certos aspectos, não são
capazes de compreender – o que aqui se passa, aquilo por que nós, os
dissidentes, lutamos; e, acima de tudo, o significado dessa luta. Tomemos, por
exemplo, a questão: «O que podemos fazer por vós?». Muita coisa, sem dúvida.
Quanto mais apoio, interesse e solidariedade tivermos de pessoas que pensam
livremente pelo mundo fora, menos riscos correremos de sermos presos, e maior
será a esperança de não sermos uma voz a gritar sozinha no deserto. No entanto,
esta questão, na sua essência, parte de uma visão errada. Na verdade, em última
instância o ponto não é ajudar-nos a nós, um punhado de «dissidentes», a
manter-nos fora da prisão durante mais algum tempo. Nem sequer se trata de
ajudar estes povos, os Checos e os Eslovacos, a viver um pouco melhor, um pouco
mais livremente. Estes povos necessitam, antes de mais e acima de tudo, de se
ajudarem a eles próprios. Esperaram vezes demais pela ajuda dos outros,
dependeram dela em excesso, e demasiadas vezes tudo acabou em mágoas e
ressentimentos: ou o apoio prometido falhou no último momento ou teve o efeito
contrário às expectativas. Num sentido mais profundo, há algo diferente que
está em causa – a salvação de todos nós, tanto de mim próprio como do meu
interlocutor. Ou será que tudo isto não diz respeito a todos nós por igual? Não
são as minhas vagas esperanças também as esperanças dos outros? Não é a minha
prisão um ataque aos outros? E os desaires que os outros sofrem não me afectam
também a mim? A opressão de seres humanos em Praga não é uma opressão de todos
os seres humanos? A indiferença ou a ilusão perante o que aqui se passa não contribui
para que noutros lugares possa vir a acontecer o mesmo? Será que o infortúnio
dos outros não pressupõe o nosso próprio infortúnio? A questão não reside no
facto de um dissidente checo, como qualquer pessoa ameaçada, necessitar de
apoio. É fácil fazer cessar essa ameaça, bastando deixar de ser «dissidente». A
questão central é saber o que representam os esforços vãos e a sorte de um
dissidente, o que isso revela da condição, das oportunidades e dos problemas do
mundo, em que medida isso pode servir de alimento ao pensamento dos outros e
para o modo como estes encaram o seu – e, por consequência, o nosso – destino
partilhado; em que medida isto é um aviso, um desafio, um perigo ou uma lição
para aqueles que nos visitam.
Agora
a pergunta sobre o socialismo e o capitalismo! Tenho de dizer que ela me dá a
sensação de estar a emergir das profundezas do século passado. Julgo que estas
categorias, ideológica e semanticamente confusas, passam à margem do ponto
essencial. A questão é completamente distinta, muito mais profunda e, como a
anterior, relevante para todos nós. E a questão consiste em saber até que ponto
queremos, seja por que meios for, restaurar a experiência pessoal dos seres
humanos como medida de todas as coisas, colocando a moralidade acima da
política, a responsabilidade acima dos nossos desejos, dando um sentido à ideia
de comunidade humana, devolvendo significado ao discurso dos homens,
reconstruindo, como centro de toda a acção social, o «Eu» autónomo, integral e
digno. Um «Eu» responsável por todos nós, porque estamos ligados em comunhão a
algo superior, tendo a capacidade de sacrificarmos alguma coisa – e, em caso
extremos, de sacrificarmos todas as coisas – da nossa vida privada, banal e
próspera (da «regra do quotidiano», como Jan Patočka costumava dizer) em nome
daquilo que confere verdadeiro significado à vida.
[…]
Falo
deste modo pois, olhando para o mundo da perspectiva que o destino me deu, não
posso evitar a impressão de que muitas pessoas no Ocidente percebem pouco o que
está em causa no nosso tempo.
Se,
por exemplo, voltarmos a olhar para as duas alternativas políticas entre as
quais oscilam actualmente os intelectuais ocidentais, parece que existem apenas
duas formas de jogar o mesmo jogo, permitidas pelo anonimato do poder. Assim,
mais não há do que duas formas distintas de caminhar rumo ao mesmo destino, o
totalitarismo global.
[…]
Indubitavelmente,
na perspectiva da defesa e dos interesses do mundo ocidental, não é bom que
alguém diga «Melhor vermelho do que morto» [«Better red than dead»]. Mas, do
ponto de vista de um poder global e impessoal, que transcende os blocos de
poder e que, na sua omnipresença, representa uma verdadeira tentação diabólica,
nada pode ser mais vantajoso. Esse slogan é um sinal indesmentível de que quem
assim fala abdicou da sua humanidade. Abandonou a sua capacidade pessoal para
defender algo que o transcende e para, in
extremis, sacrificar a própria vida em nome daquilo que dá sentido à vida.
Patočka escreveu um dia que uma vida que não estiver disposta a sacrificar-se
por aquilo que lhe dá sentido é uma vida que não merece ser vivida. É
justamente num mundo povoado por essas vidas e por essa «paz» − um mundo que se
rege pela «regra do quotidiano» − que as guerras deflagram com mais facilidade.
Num mundo assim não existe uma barreira moral contra as guerras, uma barreira
assegurada pela coragem do sacrifício supremo. A porta abrir-se-á, de par em
par, para a irracional «segurança dos nossos interesses». A ausência de heróis
que sabem aquilo por que estão a morrer é o primeiro passo para o amontoado de
cadáveres dos que serão massacrados como gado. O slogan «Better red than dead»
não me irrita enquanto expressão de rendição à União Soviética; aterroriza-me
enquanto expressão da renúncia dos povos do Ocidente a qualquer ambição de uma
vida com sentido, e à aceitação de um poder total. Na verdade, aquilo que o
slogan realmente diz é que não existe nada pelo qual valha a pena dar a vida.
Ora, sem o horizonte do sacrifício supremo todo e qualquer sacrifício deixa de
fazer sentido. Então, nada vale nada. Nada significa nada. O resultado é uma
filosofia que nega abruptamente a nossa humanidade. No caso do totalitarismo
soviético, essa filosofia mais não faz do que auxiliar os seus interesses. No
caso do totalitarismo ocidental, é essa filosofia que o constitui e lhe dá
corpo, directa e primordialmente.
Em
suma, não consigo ultrapassar a minha convicção de que a cultura do Ocidente é
muito mais ameaçada por ela própria do que pelos mísseis SS-20. Quando um
estudante francês de esquerda me disse, com um brilho de sinceridade nos olhos,
que o Gulag era o imposto a pagar pelos ideais do socialismo e que Soljenitsine
era apenas um homem amargurado, deixou-me num estado de profunda tristeza. A
Europa é incapaz de aprender com a sua própria história? Será que aquele jovem
amável é incapaz de perceber que mesmo o mais promissor projecto de «bem-estar
geral» está condenado a ser desumano a partir do momento em que pressupõe uma
só morte involuntária – isto é, uma morte que não corresponde ao sacrifício da
vida em nome do sentido da vida? Será ele incapaz de compreender tudo isso até
ao dia em que se veja encarcerado numa prisão de estilo soviético nos arredores
de Toulouse? Será que a novilíngua do nosso mundo penetrou de tal forma no
discurso humano que duas pessoas deixaram de ser capazes de comunicar até sobre
uma realidade tão simples?
Tradução de António Araújo
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