O nome de George Bell nada nos dizia
até há poucos dias. Até ao dia em que o New
York Times fez uma extensa reportagem sobre ele. Porque morreu, não mais do
que isso. Uma reportagem grande, cara de fazer, sobre a sua vida mas em especial sobre a sua morte. É estranho que alguém seja notícia só porque morreu.
Obituários há muitos, mas de gente que teve uma vida digna de ser lembrada. Não
merecerá a biografia de Bell sequer uma recordação? Pelos vistos, não. Trabalhou
em transportes e mudanças, reformou-se em 1996, um acidente laboral. Fora
isso, pouco a registar. George só foi notícia por morrer em casa sozinho, num
apartamento de Nova Iorque pejado de lixo. Morreu só, como milhares de
nova-iorquinos (e não só). Cinquenta mil por ano, dizem as estatísticas. Na
vida solitária de Gorge Bell houve um dia – de manhã ou de tarde – em ele que
escreveu o seu nome na porta de casa, para que soubessem que morava ali. E
houve dias em que gravou cassetes com músicas, e colocou uma fita a indicar o
nome dos músicos que fizeram ou cantaram essas músicas, ainda que não saibamos
se George Bell as ouviu, ou não. Dele pouco sabemos, mesmo numa reportagem extensa
do New York Times. Sabemos que
morreu só, pouco mais. No funeral não apareceu ninguém. A cremação foi
acompanhada pelos funcionários municipais que tratam destes assuntos lutuosos.
Uma cremação demora, dizem, cerca de três horas. Onde apareceu muita gente,
uma multidão de gente, foi no leilão do seu carro, um Toyota de 2005. É
estranho pensar que apareceu mais gente para lhe comprar o carro do que no seu
funeral.
George, ao que parece, era muito apegado aos seus pais, de ascendência escocesa. Uma
fotografia mostra-o novinho, ao lado do pai, no Natal de 1956, com árvore enfeitada e TV de sala. O pai morreu cedo. À
medida que foi envelhecendo, a mãe começou a sofrer de artrite. George tratou
dela com carinho e desvelo, levando-lhe comida, dando-lhe banho até morrer.
Com George as coisas não se passaram assim. Não casou nem teve filhos. Chegou a
estar noivo, mas rompeu o noivado por não aceitar as exigências contratuais da
futura sogra. A noiva casou com outro homem, que morreu há anos, em 2002. No
entanto, George e Eleanore, assim se chamava ela, continuaram a trocar cartas
ao longo de muitos anos. No último cartão que lhe mandou, no Dia dos Namorados,
Eleanore disse-lhe que pensava muitas vezes nele, ademais com amor. Eleanore também
vivia sozinha, carregada de dívidas, e morreu em casa de ataque cardíaco. Foi
cremada, George nem soube do óbito. Mas incluiu-a no seu testamento. É estúpido tentar
saber se George Bell foi um homem feliz. E talvez seja indigno destapar a sua
intimidade apenas porque morreu sozinho. Muito possivelmente, a sua vida foi
demasiado solitária e triste. Mas quem sabe, quem pode dizê-lo ao certo? No
meio de tudo isto, só há uma certeza. Ou melhor, duas. A primeira é que, um dia, todos
partilharemos o destino de George, sozinhos ou em
companhia. A outra certeza é esta: quem comprou o Toyota pensou ter feito um
bom negócio. Senão, não o comprava, diz a lógica material da vida. Morreu
George, ficou o Toyota. E um relógio de pulso, da marca Relic. Um desempregado
arrematou-o por três dólares, triplicando a base de licitação.
George M. Bell, Jr., 1942-2014, assim diz a placa minúscula no depósito das suas cinzas. E agora, contada a história, ninguém se atreva a dizer que esta vida foi triste ou vivida em vão. Milhares de pessoas sabem hoje quem foi George Bell, o da fama póstuma, que teve direito a extensa reportagem do New York Times. Apenas por ter morrido, é certo. Mas morrer é pouco? Olhem, fiquem com esta: do pouco que dele sei, George Bell foi um homem melhor do que muitos que por aí conheço.
George M. Bell, Jr., 1942-2014, assim diz a placa minúscula no depósito das suas cinzas. E agora, contada a história, ninguém se atreva a dizer que esta vida foi triste ou vivida em vão. Milhares de pessoas sabem hoje quem foi George Bell, o da fama póstuma, que teve direito a extensa reportagem do New York Times. Apenas por ter morrido, é certo. Mas morrer é pouco? Olhem, fiquem com esta: do pouco que dele sei, George Bell foi um homem melhor do que muitos que por aí conheço.
António Araújo
e fica-se sem palavras.
ResponderEliminarPoderei ter entendido mal, mas julgo que o número de mortes (50 mil) citado refere-se ao número total de mortes por ano em Nova Iorque, e não ao número de pessoas que morrem sozinhas em Nova Iorque todos os anos.
ResponderEliminarSim, refere-se ao número toral de mortes. Peço desculpas por o texto não ser claro sobre esse ponto.
EliminarCordialmente,
António Araújo
Exemplar, este texto ...pela forma ...pelo conteúdo...
ResponderEliminarParabéns!
Alimento um blog - muito mais pobre, infelizmente; será que posso replicar nele (identificando a paternidade, naturalmente) esta preciosidade?
Exemplar, este texto ...pela forma ...pelo conteúdo...
ResponderEliminarParabéns!
Alimento um blog - muito mais pobre, infelizmente; será que posso replicar nele (identificando a paternidade, naturalmente) esta preciosidade?
Com todo o gosto, permitindo-me apenas notar, sem falsa modéstia, que mais não fiz do que adaptar e resumir uma reportagem do NY Times.
EliminarCordialmente,
António Araújo