impulso!
100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !
# 77 - ALBERT AYLER
Fotografia de Jacques Bisceglia
|
Ninguém sabe o que se terá passado entre
a noite em que Albert Ayler atirou o saxofone contra a televisão e desarvorou
de casa, e o momento, vinte dias depois, em que foi reconhecido no cadáver
pescado nas águas do East River de Nova Iorque. O relatório da autópsia conclui
em morte por afogamento, mas como é deste estofo que são rendilhadas as lendas,
de Novembro de 1970 até hoje persiste a especulação e a intriga. Que o seu
corpo acusava 19 facadas, segredam uns, ou que tinha um buraco de bala na nuca,
asseveram outros, ambos hesitando se foi a polícia ou o FBI, urdindo contra o
que chamavam de “radicalismo negro”. Que, na verdade, o encontraram amarrado ao
lastro de uma jukebox, e os culpados tanto podiam ser os Black Panthers, porque
Ayler se desviara da paixão revolucionária, como a Mafia, porque se recusara a
tocar música ligeira. Que estava deprimido, não só com o esgotamento nervoso do
seu irmão Donald, mas também porque a mãe o culpava, por tê-lo atraído para os
demónios do jazz. “Drogas”, alvitrou Gary Peacock numa entrevista em 1998.
Como de costume a explicação mais
prosaica arrisca ser a mais provável – Albert Ayler suicidou-se. Chegado aos 34
anos, após a consagração em 1964 com “Spiritual Unity”, que o descomprometia com
a tradição do jazz de forma ainda mais completa do que os paladinos do free, a
inflexão de Ayler rumo a uma música simples e primitiva, além de não o ter
popularizado, alienou os seus admiradores e levou a etiqueta Impulse! a
cancelar-lhe o contrato. Ter-se-á atirado borda fora do ferry para a Estátua da
Liberdade, lastimou em 1983 Mary Parks, que fora namorada, talvez musa, poeta e
cantora em várias obras de Albert Ayler.
Esta morte ignóbil, e mistificada pelo
véu da controvérsia e da incompreensão, corresponde em absoluto à vida musical
de Ayler. Pode-se mesmo considera-lo a grande figura trágica do jazz, género
musical que sempre teve tanto de dramático como escasseou notoriamente em
tragédia, no sentido que ela tem de predestinação, onde o herói na própria
tentativa de escapar à morte se aproxima dela, e em que as acções e os feitos prenunciam
essa fatalidade.
Em meia-hora, “Spiritual Unity”, com um
trio de saxofone tenor sem piano – isto já é um manifesto – depõe o que ainda
restava de escalas, compassos, acordes e pautas, num jazz que se queria “free”
destas coibições. Tempo suficiente para Albert Ayler cometer uma revolta sem
quartel e de 180º. Num flanco repudiava as esgotadas derivações do bebop,
abdicando da progressão harmónica, que era a sua matriz. Noutra trincheira,
contraditava os mandarins da música contemporânea de índole europeia, que do
alto do seu ascendente, como é típico das vanguardas, aquiesciam um ouvido
esmolar e complacente ao jazz. O poeta Philip Larkin, jazzófilo convicto, que embora
saudoso do swing era capaz de ouvir e perscrutar o que não gostava, apesar de
lhe atribuir uma originalidade gótica, comparou a acústica de Albert Ayler à de
um violoncelo raspado por uma galocha húmida; e mesmo ao ponderado crítico Gary
Giddins ela lembra-lhe guinchos de almas penadas.
Love Cry
1967
(2011)
Impulse!
/ Verve – 5334699
Albert
Ayler (saxofone tenor e alto, voz), Donald Ayler (trompete), Alan Silva
(contrabaixo), Milford Graves (bateria), Call Cobbs (harpsicórdio)
[A Impulse! tem editado
“Love Cry” em conjunto com “The Last Album”. Pelo preço de um, fica-se com
dois.]
O que para estes foi um nadir, outros
entenderam como um apogeu, equiparando Ayler a Cecil Taylor, Ornette Coleman e
Archie Shepp. Mas “Spiritual Unity” é muito do seu tempo. Escutado 50 anos
depois, o disco reúne condições para ser sobretudo o símbolo de uma época, das suas
contradições, pulsões, empolamentos e ambiguidades, do que para prevalecer como
um clássico, o qual, por natureza, é intemporal.
“Love
Cry”, editado em 1967, foi bastante menos celebrado pelos críticos coevos e
pelos adeptos geracionais, que esperavam encontrar Albert Ayler num quadrante
musical e foram topá-lo noutro. A decepção tem diversas causas: a música do
saxofonista era agora menos explosiva e mais (muito!) repetitiva, e este
decréscimo de ferocidade parece expô-lo como um instrumentista de técnica
rudimentar. É um equívoco habitual: a rudeza é aceitável se vier envolvida nas
labaredas do arrebatamento, senão dir-se-á dela que é falha de sofisticação.
Todavia Albert Ayler oferece as suas ideias com maior sinceridade, coerência e,
até, clareza em “Love Cry”. Despejado o jazz das concepções musicais, ou a “tralha
conceptual” segundo os rebeldes; despido das camadas harmónicas que a tradição
nele foi envernizando; revolvidas as suas pedras melódicas basilares – sobra o
quê? Sobra aquilo que Ayler quis retomar desde a fonte original as raízes
fundas e compridas, como as do eucalipto, da música negra americana, no que
tinham de primevo, primário, bruto e mesmo telúrico: os blues do delta do
Mississippi, a soul da pobreza urbana e o gospel espiritual, palavra que Ayler
estimava acima de todas.
Este propósito de “Love Cry”, que na
essência é incompleto, ficou deveras inacabado com a interrupção da vida de
Albert Ayler – foi o destino.
José Navarro de Andrade
Este é demais para mim.Não consigo seguir este cherne.Problema meu.
ResponderEliminar