I
(…). Também admirei a
obra de Jorge de Sena (1919-1978), tanto o romancista, sobretudo no seu
admirável Sinais de Fogo (póst.,
1979) como o ensaísta, dramaturgo e poeta, igualmente forçado a um longo exílio
político nos E.U.A. até ao final dos seus dias. Uma grande obra romanesca fora
escrita por este escritor que escolhera também o exílio americano, Sinais de Fogo (póstumo,1981). Romance
histórico autobiográfico inacabado, situado no verão de 1936, na Figueira da
Foz e em Lisboa, este extraordinário Bildungsroman
permite narrar não só o impacto entre nós do início da guerra civil de
Espanha mas ainda a fascização do nosso regime, com a criação da Legião
Portuguesa, atentamente descrita, ao mesmo tempo que vai narrando a evolução
dum jovem através da sua experiência pessoal, íntima, humana, política e
amorosa – esta obra é, aliás, uma das mais ousadas na descrição da sexualidade
da relação entre Jorge e Mercedes - em colisão com a sua família de burgueses
acomodados à “Situação” (termo que então se usava como sinónimo do regime
salazarista), ao mesmo tempo que esse adolescente se prepara para vir a ser o
poeta, ensaísta e o romancista de enorme craveira em que ele mesmo depois se
transformaria. Creio que a minha opção cultural e até profissional como
historiador seria em larga medida responsável pela valorização que dou a estas
duas obras maiores que acabo de referir, mas a verdade é que raros livros
cimeiros da nossa cultura poderão ser apresentados como a-históricos –
porquanto até o Menina e Moça tem, na
filigrana etérea da sua escrita, toda uma história vivida subjacente, neste
caso compreensivelmente camuflada e simbolizada de maneira aparentemente
trans-histórica, dada a condição de cristão-novo de Bernardim Ribeiro. Devo
ainda mencionar uma importante obra de Sena que referi nos meus estudos sobre o
Sebastianismo, o seu O Indesejado (António Rei).[1]
II
Foi nas páginas da Vértice que sairia, em 1970, graças a
generosidade do poeta neo-realista Joaquim Namorado (1916-1986), comunista
convicto e meu amigo dedicado, embora exasperado pela minha não-adesão ao PCP -
uma parte do meu primeiro romance A Ilha
está Cheia de Vozes, logo editado como uma pequena novela em livro pela
Atlântida em 1971 e, sete anos mais tarde, republicado pela Arcádia, num texto
bastante revisto e ampliado, agora com o título completo de A Ilha está Cheia de Vozes ou Robinson na
ilha dos Autómatos. Sob uma forma desinibida, este livro era uma parábola
algo surrealizante do Portugal do marcelismo em luta contra a insurreição dos
povos africanos mantidos sob nosso domínio, escrita sob a forma dum diário
íntimo dum novo Robinson, náufrago também inglês, a tentar educar um jovem
discípulo negro que ele queria tornar seu delfim político naquela ínsula onde
só havia dois seres humanos e inúmeros animais, todos devidamente recenseados e
dotados de nome. Esse rebelde Sexta-Feira escrevia poesia em francês e, à força
de intensas leituras impostas por um pedagogo louco, acabaria por se revoltar
contra o seu amo europeu e toda a sua cosmovisão cristã ocidental. No final da
narrativa, Sexta-Feira desafiava o seu mestre e senhor, de modo que, depois de
ter espalhado cartazes por toda a paisagem insular com dizeres contestatários,
tais como “We shall overcome!”, “Le monde va changer de base!”, acabaria por
partir num barco, fugindo de vez da ilha e da pedagogia ditatorial de Robinson,
a cantarolar o hino italiano Bandiera
rossa. O livrinho terminava com um anexo de sete breves fábulas chamadas
“histórias plausíveis”, quase todas de cenário árabe, cheias de alusões
metafóricas ao despotismo interno e ultramarino do regime ditatorial luso.
Ao reeditá-lo em 1978, decidi tornar mais
explícitas as intenções críticas políticas subjacentes ao texto inicial. Na
contra-capa da sua segunda edição ampliada explicava-se que o livro era “uma
sátira feroz contra o ocidente cristão e a sua cultura”, revoltando-se o negro
Sexta-Feira “contra a tirania política e pedagógica do seu mestre”, pelo que se
tratava de uma “narrativa «blasfema» e «subversiva»”. Na capa reproduzia-se
parcialmente a célebre gravura anticatólica de Théodore de Bry mostrando o
encontro inicial de Colombo com os índios do Novo Mundo, que ofereciam presentes
ao Descobridor europeu, mostrando-se submissos e desnudos, enquanto o genovês
estava soberbamente vestido, com um belo chapéu com pluma, uma espada à cinta e
uma lança na mão esquerda. A crítica portuguesa da altura ignorou quase
completamente esta minha estreia romanesca – uma excepção foi a revista jesuíta
Brotéria, à qual eu enviara da
Alsácia, por correio, um exemplar endereçado ao meu antigo professor Pe.Manuel
Antunes - e a outra foi Jorge de Sena, que me mandou dos Estados Unidos uma
carta elogiando o meu livrinho. A Brotéria
publicou em Janeiro de 1976 uma curta recensão assinada M. Simões (seria o
próprio Manuel Antunes que a teria feito?), oscilando entre uma certa admiração
e uma evidente reticência religiosa: depois de afirmar que as coisas que de
outro modo pareceriam “blasfemas, malcriadas, contraditórias, utópicas ou
simplesmente ridículas, admitem-se e ganham sentido e até adequada moralidade
no reino da fábula”, já que esta novela seria “uma espécie de libérrima fábula
filosófica ou meditação existencialista sobre a barafunda que no processo
histórico nos coube viver”, acrescentando ainda que, talvez ajudasse a
compreensão do livro “saber que este foi escrito em Estrasburgo, enquanto o
«exilado» autor preparava o seu doutoramento em Sociologia, depois do
conturbado Maio-68” .
Quanto ao acima citado Jorge de Sena, enviou-me ele, dos Estados Unidos, uma
carta simpática sobre o meu livrinho, na qual me elogiava a imaginação e o
pendor satírico. Ei-la:
“Jorge de Sena
939, Randolph Road
Santa Barbara, Cal, 93111, USA
Meu caro João Medina:
24 de Fevereiro de 1972
Recebi a sua carta e
muito lhe agradeço a sua «Ilha», e não quero deixar de escrever-lhe antes de
partir para a Europa celebrar o Camões em Paris(…) – não passarei porém por
Aix, ou iria bater-lhe à porta. Desculpe pois a pressa de algumas palavras que
não queria retardar. Deliciei-me com o seu Robinson e as numerosas alusões por
todos os lados, que por lá pululam (será que muita crítica portuguesa entenderá as ironias e de muitos dos seus
nomes próprios?). Está escrito com uma desenvoltura cultural que é sem dúvida
rara na nossa literatura de pés de bois, ainda com muito do ranço eclesiástico
como dizia o Eça. Dos três contos finais, o dos gatos é excelente. [2] E o
pequeno interlúdio dos dois papas é uma delícia (agora mesmo, folheando o
volume, me tornou a saltar aos olhos). O Sexta-Feira é talvez a melhor criação
satírica do livro, que creio superior ao próprio ao seu Robinson. Não sei
porquê, senti que talvez tivesse sido melhor que o seu Robinson não fosse tão
declaradamente um Robinson britânico mais ou menos – mas sem ele ser isso, como
podia o preto ser Sexta-Feira?). Não gosto de fazer profecias e menos dar
conselhos, mas suponho que, de futuro, terá V. que contrariar a sua excelente
exuberância e o evidente prazer com que brinca com as alusões literárias e
outras – precisamente para as suas qualidades de satírico e de moralista (no
ínclito sentido da palavra) ressaltarem mais, mas V. apoia-se demasiado
naquelas. Fico, creia, extremamente curioso de ver o que V. fará no futuro, se
prosseguir neste caminho de ironizar tanto que precisa de ser desmitificado. V.
é muito jovem (menos 20 anos do que eu, que inveja) para ter assistido ao uso e
abuso desta palavra que os profetas do neo-realismo nascente nos 30 ou 40
fizeram ad nauseam – e escapa-lhe de
experiência vivida, pois o peso que a palavra tem para mim no sentido mais
positivo, o que é preciso tomem mesmo a sério, para serem mais sérias – e
quando alguns agora brincam de ser desenvoltos só de analfabetismo para baixo,
bem necessários são os escritores como V., usando da cultura para rir-se da
pedantaria ( que é a forma letrada do
analfabetismo).
Como
vê, não faltei à minha palavra, e só tenho pena de que o nosso encontro em casa
do Machado da Rosa, em Sintra, tenha sido tão rápido. Outra vez será. E receba
as mãos cordiais saudações do sempre ao su dispor
Jorge de Sena.”
Respondi-lhe prontamente,
numa carta, escrita de Aix, em 27-III-1972, agradecendo-lhe a generosidade dos seus
simpáticos elogios ao meu livro, assim como compreendia a afirmação de Sena ao
dizer que Robinson talvez ganhasse em não ser inglês, explicando eu porque não
o imaginei como um colono moçambicano ou angolano, lembrando ainda que, apesar de eu ser natural
de Moçambique e filho dum português de Cabo Verde, além de ter vivido parte da
minha infância em Joanesburgo, no meio de uma cultura calvinista e inglesa,
preferi manter britânico o herói tirado de Defoe, já que dar-lhe a cidadania
lusa suscitaria a imediata desconfiança e represália previsível da
Censura. Sublinhei que o meu livro era
intencionalmente “uma paródia da Cultura cristã escrita sob a forte impressão
de Maio-68 (eu estava lá e participei em alguns «desmandos»”). Sena
respondeu-me então num curto cartão, datado de 7-IV-1974, onde dizia que eu não
tinha que lhe agradecer o seu interesse pelo meu livrinho pois, pois “se ele
não me tivesse interessado não o teria escrito.” Embora eu o tivesse convidado
para um novo encontro, na região de Sintra, nesse verão de 72, dando-lhe a
minha morada em Galamares, onde vinha passar as férias de verão, nunca mais
tive oportunidade de o voltar a ver ou trocar mensagens com esta grande figura
cultural que tive o privilégio de conhecer, ainda que de modo tão breve mas
relevante. Reeditei, em 1978,
A Ilha… numa versão ampliada e muito
revista, poucos meses depois de Sena ter falecido na Califórnia. Fui, pouco
tempo depois, um dos primeiros e mais entusiastas leitores do seu póstumo Sinais de Fogo (1979), obra que durante
anos recomendei aos meus alunos na Faculdade de Letras, chamando-lhes a atenção
para o facto de este ser, como o Milagre
segundo Salomé, de Miguéis, um dos maiores romances históricos portugueses.
Excertos referentes a
Jorge de Sena no meu livro
Memórias de um
Estrangeirado, obra inédita
João Medina
[1] Vide o nosso estudo “Sebastianismo: exame crítico dum
mito português”, na nossa História de
Portugal, Amadora, Ediclube, 1993 (citamos a primeira edição, vol.VI,
pp.251-326, onde mencionamos O Indesejado
(António Rei) de J. Sena, isto é, D.António I, oposto ao mítico Desejado,
D. Sebastião, referido na p.257; na p.
266 citamos um poema seu ridicularizando o nosso país de escravos, funcionários
e prostitutas, todos “de cu para o ar ouvindo / Ranger no nevoeiro a nau do
encoberto”(ver uma nota sobre este poema, na p.373); veja-se ainda, no Dicionário de Literatura portuguesa,
org. por Álvaro Manuel Machado (Lisboa, Presença, 1996), o nosso estudo
“Sebastianismo”, pp.556-560. Por fim,
falando do mito sebastiânico, no nosso livro Portuguesismo(s) (Lisboa, Centro de História da Universidade de
Lisboa, 2006), referimos a peça de teatro de Sena, O Indesejado, nas pp.65-66 (utilizámos a reedição desta peça
publicada em 1951, em Lisboa, Paisagem
Editora, 1974).
[2] Sena refere-se ao conto “Um gato é um gato”, parábola
sobre a censura num regime despótico oriental, narrando a decisão que o sultão
de Ogubul tomara de mandar matar todos os gatos e ainda proibindo que nos livros se mencionasse a
palavra “gato ” porque os demónios se tinham refugiado nos corpos de felinos,
donde resultava que a língua desse país se foi tornando cada vez mais confusa e
equívoca, o que contaminaria a vida de
todos os dias; falecendo o sultão de apoplexia, os gatos foram soltos e a
linguagem restabeleceu-se sem anomalias proibitivas (cf. A Ilha…, 1ª edição, Coimbra, Atlântida Editora, 1971, pp. 99-102).
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