Em
10 de Abril de 1945, Henry Kissinger e os seus camaradas da 84ª Divisão
chegaram ao campo de concentração de Ahlem. Durante anos, Kissinger nada diria
sobre o que viu. A sua presença em Ahlem, de resto, só foi conhecida porque um
dos seus companheiros decidiu publicar as fotografias que tirou nesse dia. «Uma
das mais terríveis experiências da minha vida», disse na altura em que se soube
que estivera entre os escombros do Holocausto.
Semanas
depois de ter estado em Ahlem, Kissinger escreveu uma carta de duas páginas
sobre a tragédia que presenciou ao entrar num campo em que, dos 850
prisioneiros aí detidos, apenas 35 sobreviveram. Integrada no acervo de
documentos e papéis que Kissinger doou à Biblioteca do Congresso, a carta só
foi publicada recentemente, na biografia que Nial Ferguson dedicou ao antigo
Secretário de Estado norte-americano. Com o título «O Judeu Eterno», foi
divulgada há pouco nas páginas do Tablet.
O
Judeu Eterno
O campo de
concentração de Ahlem foi construído numa colina sobranceira a Hanôver. Está
cercado por arame farpado. À medida que o nosso jipe andava por ali abaixo,
esqueletos de fatos às riscas aproximavam-se da berma da estrada. Existia um
túnel num dos lados da colina onde os presos trabalhavam vinte horas por dia,
na semiobscuridade.
Parei o jipe. A roupa parecia cair dos corpos, as
cabeças estavam seguras por uma fina vara, que outrora fora um pescoço. Varas
afiladas saíam dos troncos onde antes estavam os braços, e também as pernas
eram como varas. E os olhos do homem enevoaram-se enquanto tirava o chapéu
antecipando uma bofetada. «Folek… Folek Sama.» «Não é preciso tirares o chapéu,
agora és um homem livre.»
Enquanto dizia isto, olhei de relance para o campo. Vi
as barracas, observei os rostos vazios, os olhos mortiços. São livres, agora.
Eu, com o meu uniforme engomado, eu, que vivi entre a imundície e a miséria,
não fui agredido nem pontapeado. Que tipo de liberdade posso oferecer-lhes? Vi
um dos meus camaradas entrar numa das barracas e sair de lá com lágrimas nos
olhos. «Não entres lá. Temos de os empurrar com o pé para sabermos quem está
vivo e quem está morto.»
Isto é a humanidade no século XX. Seres humanos
mergulhados num tal torpor de sofrimento que a vida ou a morte, que mexer-se ou
estar imóvel são coisas idênticas. Quem está vivo e quem está morto? O homem
cujo rosto agonizante me olha esbugalhado no alpendre da barraca ou Folek Sama,
que ergue a cabeça e o corpo emaciado? Quem teve sorte, o homem que desenha
círculos na areia enquanto murmura «estou livre» ou os ossos que estão
enterrados na colina?
Folek Sama, os teus pés foram esmagados, não podes
fugir. O teu rosto é o de um homem de 40 anos, o teu corpo não tem idade, ainda
que na certidão de nascimento se leia que tens 16 anos. E eu fiquei ali, com as
minhas roupas lavadas, e falei-te, a ti e aos teus companheiros.
Folek Sama, toda a humanidade é acusada diante de ti.
Eu, o Joe Smith, a dignidade humana, todos te falhámos. Devias ser preservado
em cimento no alto desta colina para que as gerações futuras te vissem e
meditassem. A dignidade humana, os valores objectivos, tudo se deteve diante
deste arame farpado. O que te distingue a ti, e aos teus companheiros, dos
animais? Porque é que nós, no século XX, permitimos que fosses como és?
Contudo, Folek, tu és ainda um ser humano. Ficaste
defronte de mim enquanto as lágrimas te caíam pela cara abaixo. A seguir, soluçaste
histericamente. Continua, chora, Folek Sama, porque essas lágrimas
testemunham a tua humanidade, porque as tuas lágrimas serão absorvidas por esta
terra maldita, que doravante será sagrada.
Enquanto neste mundo existir a noção de
consciência, irás personificá-la. Nada do que seja feito por ti será
capaz de devolver-te o que foste.
Neste sentido, és eterno.
(tradução
de António Araújo)
obrigada por partilhar.
ResponderEliminarObrigado!
ResponderEliminarConcordo com os que pensam que apesar destas palavras deveria ter sido julgado por crimes de guerra.Aliás como muitos dirigentes judeus responsaveis por atrocidades sem nome contra o povo palestino.Não aprenderam com o passado.
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