Sá Carneiro e o general Spínola
Foi em
1979, logo a seguir ao seu grande triunfo político e pessoal, ou seja, a seguir
à formação da AD (Aliança Democrática) ou coligação entre o PSD (ou PPD, como
antes se chamava) , o CDS e o PPM.
Numa viagem
aos Estados Unidos, o Dr. Francisco de Sá Carneiro passou dois dias em casa do
Dr. Adriano Seabra Veiga, médico e cônsul honorário de Portugal no estado de
Connecticut, aproveitando a ocasião para estabelecer contactos com a comunidade
luso-americana.
No decorrer
de um jantar, contou-nos uma série de episódios relacionados com a sua vida
política.
Dois desses
episódios ficaram-me gravados na memória, pela sua peculiaridade e pelo que
ambos revelam sobre a ingenuidade e a incompetência do General António de Spínola,
como político.
Na sua
qualidade de ministro sem pasta, no primeiro governo pós-25 de Abril, chefiado
pelo advogado Palma Carlos, um dia Spínola, Presidente da República, ao dar-se
conta de que o poder lhe começava a fugir das mãos, a grande velocidade, mandou
chamar o Dr. Sá Carneiro e pediu-lhe que lhe pusesse na secretária, dentro de
duas horas, uma proposta de lei que conferisse ao Presidente da República mais
poderes do que o Programa do MFA lhe reconhecia.
Perante um
pedido dessa natureza, o Dr. Sá Carneiro esclareceu o General que duas horas
não eram suficientes para elaborar essa proposta de lei. Que precisava de pelo
menos um dia. Que não senhor - retorquiu o General. Que dentro de duas horas se
realizaria uma reunião da Direcção do MFA e que ele queria submeter essa
proposta de lei à consideração desse órgão político nessa mesma reunião
E perante a
insistência do General, o Dr. Sá Carneiro entrou imediatamente em contacto com
o Doutor Jorge Miranda, professor de Direito Constitucional, e pediu-lhe que
lhe fizesse esse favor, com a urgência que o caso requeria. (E,
parenteticamente, o Dr. Sá Carneiro explicava-nos que nesse tempo o Prof. Jorge
Miranda ainda era aliado político do PPD ou PSD.)
O Professor
Jorge Miranda lá alinhavou como pôde a proposta de lei em tempo record.
E o que
sucedeu a essa proposta de lei todos o sabem. Foi pura e simplesmente chumbada
pela Direcção do MFA, ao mesmo tempo que se alertavam os militares que
constituíam essa Direcção para as ambições políticas do General Spínola, vindo
a ter como resultado a posterior renúncia do General Spínola ao cargo de
Presidente Provisório da República Portuguesa, no dia 30 de Setembro de 1974, e
abrindo assim o caminho para a entrega da presidência da república a um general
mais sintonizado com o verdadeiro programa político do MFA: o General Costa
Gomes.
Aliás, que
isso viesse a dar-se não constituiu novidade para mim. Encontrando-me com
regularidade com um grupo de escritores, no café Montecarlo, de Lisboa, eu
sabia muito bem, quase desde o início da tomada do poder pelo MFA, em
coordenação com o PCP, que o General Spínola deveria ser utilizado apenas para
legitimar, perante o povo, o novo regime. É que, embora o General Spínola
partilhasse dos ideais democráticos de alguns dos membros do Conselho Directivo
do MFA, não partilhava das intenções daqueles que queriam transformar Portugal
num país comunista. E foi assim que eu comecei a ouvir escritores, como José
Gomes Ferreira, Carlos de Oliveira, José Cardoso Pires, Pinheiro Torres, Carlos
Coutinho (que passou a associar-se ao grupo só depois do 25 de Abril), a dizer
que o General Spínola já não interessava ao Movimento e, o que era mais
importante, já começava a tornar-se pernicioso para o Movimento, com as suas
visitas aos quartéis e as suas frequentes intervenções públicas, na imprensa,
na rádio e na televisão. Que a solução para implantar um regime “democrático”
em Portugal era substituir o General Spínola pelo General Costa Gomes.
E volta e
meia, à mesa do café, um desses escritores encontrava um pretexto para censurar
o feitio autoritário e a propensão para ditador do General Spínola e para
enaltecer os dotes e as virtudes do General Costa Gomes. Que era indivíduo de
convicções mais democráticas que o General Spínola e que, naturalmente, era
muito mais culto, mais atento à literatura moderna, de cariz neo-realista e
militante e progressista, e melhor apreciador da arte moderna e da arte do povo.
E, para exemplo, informava Carlos de Oliveira que o vira mais de uma vez a
visitar, com grande interesse e a máxima atenção, exposições de artes plásticas
organizadas por artistas boicotados pelo regime salazarista.
Claro que
só a posteriori, ingénuo como era, e
como sou, vim eu a saber que praticamente todos esses e outros escritores que
frequentavam o Montecarlo eram, não só simpatizantes do Partido Comunista
Português, mas até seus membros. E foi assim que vim a compreender a atitude
deles quando eu propunha que se elegesse, por meio de sufrágio universal, sem
mais delongas, uma assembleia constituinte e se fizesse uma constituição, a fim
de Portugal começar a ser governado por representantes eleitos directamente
pelo povo e não por mandatários do MFA. E quando eu fazia propostas dessa
natureza, era-me dito imediatamente que o povo português não estava preparado
para votar, devido às mais de quatro décadas da ditadura salazarista. E
replicava eu que esse tinha sido sempre o argumento do regime salazarista. E
replicavam eles, dizendo que, a realizarem-se eleições populares, um pouco por
toda a parte, e principalmente por todas essas aldeias do interior de Portugal,
as pessoas iriam votar em quem os párocos – todos reaccionários, conservadores,
fascistas, salazaristas, segundo eles – as mandassem votar.
E as horas
passavam e a noite caía e as pessoas dispersavam-se e cada um continuava
agarrado às suas ideias.
António Cirurgião