domingo, 31 de janeiro de 2016

Evocação de Sá Carneiro (1)

 
 
 
 
Sá Carneiro e o general Spínola
 
 
         Foi em 1979, logo a seguir ao seu grande triunfo político e pessoal, ou seja, a seguir à formação da AD (Aliança Democrática) ou coligação entre o PSD (ou PPD, como antes se chamava) , o CDS e o PPM.
         Numa viagem aos Estados Unidos, o Dr. Francisco de Sá Carneiro passou dois dias em casa do Dr. Adriano Seabra Veiga, médico e cônsul honorário de Portugal no estado de Connecticut, aproveitando a ocasião para estabelecer contactos com a comunidade luso-americana.
         No decorrer de um jantar, contou-nos uma série de episódios relacionados com a sua vida política.
         Dois desses episódios ficaram-me gravados na memória, pela sua peculiaridade e pelo que ambos revelam sobre a ingenuidade e a incompetência do General António de Spínola, como político.
         Na sua qualidade de ministro sem pasta, no primeiro governo pós-25 de Abril, chefiado pelo advogado Palma Carlos, um dia Spínola, Presidente da República, ao dar-se conta de que o poder lhe começava a fugir das mãos, a grande velocidade, mandou chamar o Dr. Sá Carneiro e pediu-lhe que lhe pusesse na secretária, dentro de duas horas, uma proposta de lei que conferisse ao Presidente da República mais poderes do que o Programa do MFA lhe reconhecia.
         Perante um pedido dessa natureza, o Dr. Sá Carneiro esclareceu o General que duas horas não eram suficientes para elaborar essa proposta de lei. Que precisava de pelo menos um dia. Que não senhor - retorquiu o General. Que dentro de duas horas se realizaria uma reunião da Direcção do MFA e que ele queria submeter essa proposta de lei à consideração desse órgão político nessa mesma reunião
         E perante a insistência do General, o Dr. Sá Carneiro entrou imediatamente em contacto com o Doutor Jorge Miranda, professor de Direito Constitucional, e pediu-lhe que lhe fizesse esse favor, com a urgência que o caso requeria. (E, parenteticamente, o Dr. Sá Carneiro explicava-nos que nesse tempo o Prof. Jorge Miranda ainda era aliado político do PPD ou PSD.)
         O Professor Jorge Miranda lá alinhavou como pôde a proposta de lei em tempo record.
         E o que sucedeu a essa proposta de lei todos o sabem. Foi pura e simplesmente chumbada pela Direcção do MFA, ao mesmo tempo que se alertavam os militares que constituíam essa Direcção para as ambições políticas do General Spínola, vindo a ter como resultado a posterior renúncia do General Spínola ao cargo de Presidente Provisório da República Portuguesa, no dia 30 de Setembro de 1974, e abrindo assim o caminho para a entrega da presidência da república a um general mais sintonizado com o verdadeiro programa político do MFA: o General Costa Gomes.
         Aliás, que isso viesse a dar-se não constituiu novidade para mim. Encontrando-me com regularidade com um grupo de escritores, no café Montecarlo, de Lisboa, eu sabia muito bem, quase desde o início da tomada do poder pelo MFA, em coordenação com o PCP, que o General Spínola deveria ser utilizado apenas para legitimar, perante o povo, o novo regime. É que, embora o General Spínola partilhasse dos ideais democráticos de alguns dos membros do Conselho Directivo do MFA, não partilhava das intenções daqueles que queriam transformar Portugal num país comunista. E foi assim que eu comecei a ouvir escritores, como José Gomes Ferreira, Carlos de Oliveira, José Cardoso Pires, Pinheiro Torres, Carlos Coutinho (que passou a associar-se ao grupo só depois do 25 de Abril), a dizer que o General Spínola já não interessava ao Movimento e, o que era mais importante, já começava a tornar-se pernicioso para o Movimento, com as suas visitas aos quartéis e as suas frequentes intervenções públicas, na imprensa, na rádio e na televisão. Que a solução para implantar um regime “democrático” em Portugal era substituir o General Spínola pelo General Costa Gomes.
         E volta e meia, à mesa do café, um desses escritores encontrava um pretexto para censurar o feitio autoritário e a propensão para ditador do General Spínola e para enaltecer os dotes e as virtudes do General Costa Gomes. Que era indivíduo de convicções mais democráticas que o General Spínola e que, naturalmente, era muito mais culto, mais atento à literatura moderna, de cariz neo-realista e militante e progressista, e melhor apreciador da arte moderna e da arte do povo. E, para exemplo, informava Carlos de Oliveira que o vira mais de uma vez a visitar, com grande interesse e a máxima atenção, exposições de artes plásticas organizadas por artistas boicotados pelo regime salazarista.
         Claro que só a posteriori, ingénuo como era, e como sou, vim eu a saber que praticamente todos esses e outros escritores que frequentavam o Montecarlo eram, não só simpatizantes do Partido Comunista Português, mas até seus membros. E foi assim que vim a compreender a atitude deles quando eu propunha que se elegesse, por meio de sufrágio universal, sem mais delongas, uma assembleia constituinte e se fizesse uma constituição, a fim de Portugal começar a ser governado por representantes eleitos directamente pelo povo e não por mandatários do MFA. E quando eu fazia propostas dessa natureza, era-me dito imediatamente que o povo português não estava preparado para votar, devido às mais de quatro décadas da ditadura salazarista. E replicava eu que esse tinha sido sempre o argumento do regime salazarista. E replicavam eles, dizendo que, a realizarem-se eleições populares, um pouco por toda a parte, e principalmente por todas essas aldeias do interior de Portugal, as pessoas iriam votar em quem os párocos – todos reaccionários, conservadores, fascistas, salazaristas, segundo eles – as mandassem votar.
         E as horas passavam e a noite caía e as pessoas dispersavam-se e cada um continuava agarrado às suas ideias.
 
 
António Cirurgião
        

Sem comentários:

Enviar um comentário