“Como é que uma pessoa
se transforma em Espinosa?, pergunto-me. Ou, por outras palavras, como é
possível explicar a sua estranheza? Eis aqui um homem que discordou firmemente
com o filósofo mais conhecido do seu tempo, que batalhou contra a religião organizada
e foi expulso da sua própria religião, que rejeitou o modo de vida dos seus
contemporâneos e estabeleceu critérios para a sua própria vida que mais
lembravam os da vida dum santo, ou a vida de um tolo, para outros.
Será que Espinosa era,
de facto, uma aberração social?”
António Damásio, Ao
Encontro de Espinosa, Lisboa, 2003.
“Não houve filósofo
mais digno, mas também não o houve mais injuriado e odiado.
Para compreender a
razão disso (…) não basta tornar manifesto como se combinam o panteísmo e
o ateísmo nesta tese, ao negar a existência de um Deus moral, criador e
transcendente. É preciso partir das teses práticas que fizeram do espinosismo
um objecto de escândalo.”
Gilles Deleuze, La
Philosophie pratique de Spinoza, Paris, 1981.
“Espinosa
conscientemente preferiu a aposta na cidadania moderna
à «Eleição» dos seus
pais.”
Daniel Lindenberg, Destins
marranes (2004).
“As mãos e o espaço de
jacinto
Que empalidece os
confins do Ghetto
Quase não existem para
o homem quieto
Que está a sonhar um
calado labirinto.
(…)
Livre da metáfora e do
mito
Lavra um árduo
cristal: o infinito
Mapa de Aquele que é
todas as suas estrelas.”
Jorge Luís Borges, Espinosa
1.Breve biografia dum pensador controverso
Benedictus, Benedito,
Baruch ou, por fim – na versão portuguesa do seu nome próprio, aquela que
figurava nos seus documentos de identidade –, Bento de Espinosa (1632-1677) −
nasceu numa família de negociantes judeus portugueses, isto é, oriundos de
Portugal e que tinham partido para França quando a Inquisição se estabeleceu em
Évora.[1] O seu avô paterno chamava-se Isaac Rodrigues
Espinosa de Nantes (aliás Pero Rodrigues Espinosa), casado na Vidigueira e
estabelecido em Nantes, donde partiria para a Holanda, em 1615, onde nasceram
Fernando, Miguel de Espinosa (aliás Gabriel Álvares), que faleceria em
1654, em Amesterdão – pai do filósofo Baruch de Espinosa – e da sua mulher
Maria Clara. Miguel, este último mercador com presença activa na comunidade da
“Nação” portuguesa de Amesterdão, na rua Hougracht – onde também era figura de
relevo o seu tio Abraão –, tendo tido vários filhos: Miriam,
Bento/Baruch, Rebeca e ainda Gabriel. Casara-se seu pai Miguel em 1628 com
Raquel, depois com Hannah Débora (falecida em 1638), que morreria em 1654,
voltando a consorciar-se de novo com Ester, em 1641. Esta última viera
directamente de Lisboa para a Holanda. Os seus parentes maternais e paternais,
assim como as suas madrastas, vinham todos de Portugal, de Lisboa, Porto,
Vidigueira e Portalegre.[2] Em suma, Bento de Espinosa
perdia a mãe aos 6 anos e o pai aos 22.
Expulso em 26-VII-1656
pelo mahamd, o conselho judaico da sinagoga de Amesterdão, Bento
acabaria por se afastar do meio familiar, deixando a cidade natal e fixando-se
em Rijnsburg (1660), depois em Vorburgo (1663), aldeiazinha a poucos
quilómetros de Leiden, editando um estudo sobre Descartes, sendo esta a única
obra que assinaria com o seu nome, recebendo de Johan De Witte uma bolsa de 200
florins, morrendo em Haia a 21-II-1677. Em 1674-5 terminara de
redigir a Ethica, que seria publicada após a sua morte. Em
Novembro de1676 fora visitado por Leibniz, o filósofo e cientista
católico alemão que o quis conhecer e que, desde 1671,lhe escrevera sobre
assuntos de óptica.[3]
Nunca se casou, nem
teve casa própria, vivendo em habitações alugadas, não exerceu qualquer
profissão pública, subsistindo graças a um modesto mester de polidor de lentes
para lupas, microscópios e telescópios. Era um judeu banido da comunidade de
fiéis, escorraçado da “linhagem de Israel”, um solteirão impenitente e um
filósofo não académico, tendo recusado o convite para leccionar na universidade
alemã de Heidelberg – ao recusar o convite que lhe a carta na qual o professor
desta famosa universidade lhe enviara em 16-II-1673, em, nome do Eleitor
Palatino, Espinosa confessava que levava “uma vida privada e solitária” -, um
pária excomungado pelos seus, que o seu amigo e correspondente Henry Oldenburg
definiu como “um estranho filósofo que vive na Holanda mas não é holandês”.[4] O filósofo assistiria a três epidemias de peste em
Amesterdão, em 1635, 1655 e 1663 e desde a infância este marrano de tez
olivácea e carão comprido, tipicamente ibérico, nunca gozaria de boa saúde
durante toda a sua existência, sofrendo de tuberculose pulmonar, que por fim o
levaria quando tinha 44 anos, sendo a sua vida de solteirão confortada por um
único vício, o cachimbo.[5] Um dos seus biógrafos
ingleses, Stuart Hampshire, sublinha que Bento Espinosa “apagou deliberadamente
a sua própria personalidade e quis que a sua filosofia subsistisse sozinha. De
modo que possuímos apenas um simples resumo de factos confiáveis, mas que nos
bastam para explicar que a sua vida e modos de ser impressionaram tanto os seus
amigos como inimigos.”[6]
2. Espinosa e a língua portuguesa: exame da sua biblioteca[7]
O inventário da
biblioteca de Espinosa [8] foi feito por ocasião do seu
falecimento; a sua consulta revela que não havia naquela autores portugueses,
exceptuando dois judeus lusos (Leão Hebreu e Menasseh Ben Israel), embora
houvesse alia várias obras em castelhano, a começar por gramáticas de espanhol,
uma bíblia cristã em espanhol e ainda algumas obras de Cervantes (as Novelas
exemplares), uma Bíblia em espanhol, um Tesoro da Lengua castellana (Madrid,
1611), uma edição da Institución de la Religion christiana, de Calvino
(trad. de Cypriano de Valera, em 1597), uma obra de Quevedo, as obras completas
de Gongora (Madrid, 1633), uma peça teatral de Pérez de Montalvan, a Comedia
famosa, um vocabulário italiano e espanhol (Roma, 1637), as obras de
Antonio Pérez (o político espanhol que desertara a Espanha e se refugiara
na Grã-Bretanha, denunciando as malfeitorias de Filipe II de Espanha em obras
que ajudaram a construir a lenda negra anti-espanhola), o Comentário
de Daniel do espanhol Bento Pereira, o poema do judeu espanhol Juan Pinto
Delgado, o Poema de la Reyna Ester ( editado em Rouen em 1627), a Esperança
de Israel de Menasseh Ben Israel (Amesterdão, 1650), a Voyage d’Espagne
de Mme Daunnoy (1666), a Corona gothica, castellana y austriaca de
Diego de Saavedra Fajardo, os Dialogos de Amor (trad. esp.) de Leon
Abrabanel, filho de Isaac Abrabanel, conhecido como Leão Hebreu (Veneza,1568).
Entre os filósofos, há nesta biblioteca obras de Maquiavel (5 vols., 1555),
Aristóteles, Séneca, Epicteto, Maimónides (Guia dos Perplexos), várias
obras de Descartes, Thomas More (Utopia), Grotius, Hobbes (Elementha
philosophica sive De Cive, Paris, 1642), Francis Bacon. Nenhuma obra de
Platão se inclui na biblioteca de Espinosa.
Esta continha ainda
diversas obras de anatomia, medicina, matemática, álgebra, astronomia, óptica,
relojoaria (como o famoso tratado de Christiaan Huygens sobre o relógio
oscilatório), farmácia, política holandesa, além de várias edições bíblicas,
hebraicas e cristãs, traduções da bíblia em latim, além da História dos
Judeus de Flavius Josephus, léxicos talmudistas (v.g., o dicionário
rabínico de H.C.Rogge, Amesterdão, 1640), e uma obra do judeu francês Isaac de
la Peyrère sobre os Pré-Adamitas (Paris,1655), tema que interessou Espinosa.
Petrarca figura também nesta lista de livros, com o Vita solitaria.
Quanto aos autores antigos, há obras de Tácito, Homero, Júlio César, Virgílio,
Ovídio, Tito Lívio, Salústio, Luciano, Aristóteles, Justiniano e Epicteto,
embora Platão, como se viu, não figure neste rol.
António Damásio
admira-se de que não houvesse Os Lusíadas entre os livros que Espinosa
tinha na sua biblioteca, salientando que ali também não constavam autores como
Shakespeare ou Marlowe, pondo a hipótese de que talvez o filósofo não se
quisesse recordar de Portugal, sublinhando ainda que entre os seus livros não
constavam nenhuns sobre música e pintura, concluindo, muito acertadamente, que
seria “arriscado julgar os hábitos de leitura dos homens pelo tamanho e
conteúdo da sua biblioteca”, além de que esta colecção de livros revela um
certo “minimalismo que parece excessivo”.[9] Embora
falasse português em sua casa, quando vivia com os pais e os irmãos, era
natural que o jovem Bento não se sentisse atraído ou minimamente interessado
pela épica nacional lusa, esse poema canónico da gesta marítima portuguesa e da
ufania que celebrava “o peito ilustre lusitano”, além dos feitos históricos
duma nação cristã que edificara um “novo reino” na sequência da viagem marítima
de Vasco da Gama à Índia, na mesma altura em que D. Manuel expulsava de forma
rudemente implacável os judeus do reino (édito de expulsão em 5-XII-1496,
determinando a sua partida até Outubro de 1497), como o tinham feito algum
tempo antes (1492) os monarcas espanhóis, como nos seus Ensaios
Montaigne não deixaria de sublinhar[10] – sendo este
autor uma das lacunas mais incompreensíveis na sua colecção de obras.
De qualquer modo, a
questão da língua portuguesa de Espinosa, levantada por A. Damásio, e o facto
intrigante da biblioteca de Espinosa quase não contar com livros nessa língua
foi acertadamente sumarizado por Pierre-François Moreau, reputado especialista
do espinosismo, ao dizer que a comunidade judia de Amesterdão usava tanto o
espanhol como o português, o primeiro como língua de cultura, o último para a
vida quotidiana.[11]
3. A Holanda de Espinosa
A escolha de
Amesterdão, essa “Jerusalém batávia”, como local de expatriação destes judeus
portugueses tinha muito a ver com a natureza deste país protestante que era,
sem dúvida, o mais tolerante na Europa de então e o refúgio natural das
perseguições religiosas que sofriam nas suas terras de origem, estando desse
modo a capital holandesa cheia de faces judias como aquelas que Rembrandt
(1606-1669) abundantemente reproduzira na sua pintura e gravuras. A Holanda
calvinista, porto de abrigo onde se acolhiam tantos refugiados marranos da
Ibéria, era um país que combatera pertinazmente a ocupação espanhola e
escolhera em dada altura a forma republicana de Estado, as Províncias Unidas do
Norte reconhecidas pelo Tratado
de Utreque de 1579 como uma república independente, continuando todavia os
espanhóis na posse de algumas cidades no sul dos Países Baixos, até que em 1648
reconheceriam a independência das sete províncias neerlandesas. Esse país
calvinista era um espaço de tolerância assinalável e excepcional na Europa
monárquica do tempo, sendo as Províncias Unidas soberanas do Norte dirigidas
por um governador (stadhouder). A Holanda independente tornara-se um
país governada por uma burguesia mercantil de “regentes”, conhecendo então, no
séc. XVII, uma fase de esplendor artístico, um verdadeiro “século de oiro”
(Franz Hals, Rembandt, Vermeer, etc.) e científico, associado a uma riqueza que
se acentuara com a expansão seiscentista marítima e o comércio no Oriente, onde
os holandeses fora tomando as antigas possessões lusas e espanholas, o que os
levaria ainda às Américas, onde criaram em 1623 a Nova Amesterdão (Nova
Iorque), Curaçao nas Antilhas e até uma colónia no Brasil português/espanhol
(Pernambuco) – durante a qual muitos judeus refugiados na Holanda participaram
na ocupação do parte do território luso no Brasil, em Pernambuco, em 1637,
erguendo no Recife uma sinagoga sefardita, a primeira no Novo Mundo americano.[12]
Foi nessa Holanda
tolerante das Províncias Unidas do Norte, onde se criara uma estrutura
capitalista, as companhias das Índias Orientais (1624) e Ocidentais (1602),
gerindo através de sociedades por acções esse novo império colonial holandês
que se foi estendendo até às Américas e Batávia (hoje Jacarta, Indonésia), que
Descartes decidira viver desde 1629 e depressa o seu ensinamento era comentado
nas universidades holandesas, como em Utreque, tendo discípulos em Leiden, só
abandonando a Holanda em 1649, convidado pela rainha Cristina da Suécia a ir para
a corte sueca, onde faleceu pouco tempo volvido (1650). Em suma, foi nesta
acolhedora – e durante algum tempo republicana – Holanda do séc. XVII,[13] quando os Países Baixos se tornavam um dos centros
mais importantes da civilização ocidental, que Espinosa produziu a sua obra
filosófica, de algum modo estimulado por um francês seu vizinho, que ele
só conhecia pelos livros, trinta e seis anos mais velho do que o marrano
português e um dos grandes fundadores da filosofia moderna. [14]
Quando o tio de Miguel
Espinosa, Abraão, faleceu, em 1627, o seu cadáver foi trazido de Roterdão para
o cemitério judeu de Amesterdão, ficando enterrado ao lado de Sara, a primeira
mulher do pai de Bento Espinosa. Miguel seria, entretanto, feito parnas (intendente),
um dos membros dirigentes da sinagoga portuguesa, aquela mesma onde conheceria
o rabino Menasseh Ben Israel, que lhe dedicaria a edição em português de Esperança
de Israel, o famoso tratado messiânico. Mercador de sucesso, embora não
sendo rico, Miguel faria algumas doações para os fundos da sinagoga portuguesa,
falecendo em 1654, ou seja, dois anos antes de Bento ser excomungado pela
templo no qual seu pai era um dos parnassim. Note-se que alguns judeus
eram sócios da companhia das Índias Orientais, como foi o caso de Isaac Aboab
de Fonseca. O pequeno Bento perderia a mãe Hana Débora (1638) antes de fazer
seis anos, sendo esta enterrada em Beth Haim, o cemitério judeu de Ouderdek.
Miguel esposara sucessivamente três mulheres, primeiro Raquel, depois Hanna
Débora e, por fim, Ester. A única irmã da mesma linha materna seria Miriam, já
que os demais meio-irmãos provinham das outras duas esposas de Miguel. A
infância de Bento passou-se largamente em torno das sinagogas portuguesas, Beth
Jacob e Beth Israel, e, a partir de 1638, da sinagoga unida de Talmud Torah,
que o futuro filósofo frequentava em companhia de Miguel e do seu tio Isaac.
Esta última era ainda visitada por curiosos da vida judaica na Holanda, sendo
os ofícios do Shabbath uma mistura de liturgias orientais e hispânicas, onde
havia também elementos do médio oriente, soltando brados e meneando
ritmicamente as cabeças. Aquele era um meio no qual os judeus de origem
portuguesa se consideravam a si mesmos como uma elite superior, com sangue de
David. Um depoimento da época refere que os portugueses da Aliança garantiam
que o Messias viria duma tribo que falava português, convicção difundida já no
séc. XVI pelo místico Isaac Luria (1524/34–1572), o grande mestre cabalista de
Safed. Se nos templos cristãos a música era proibida e os órgãos só tocavam
depois da cerimónia religiosa terminar, já nas sinagogas ela estava fortemente
presente, desde as guitarras da Renascença aos cantos ritmados, dum lirismo e
dramatismo muito hispânicos, além de que na festa do Purim, em honra da rainha
Ester, esta era tratada por “santa” e alguns aspectos do carnaval ibérico
emergiam na celebração, como o uso de máscaras grotescas.
Tinha Bento oito anos
quando se deu o deplorável caso de Uriel da Costa (ou Acosta ou D’Acosta ou
ainda Gabriel da Costa, vivendo em Portugal como marrano), que acabaria
expulso da sinagoga por alegadamente a ter insultado, fugindo então para
Hamburgo, donde voltaria, aceitando desculpar-se, lendo a confissão dos seus
erros e sendo flagelado com 39 chicotadas no templo judaico, após o que, mais
tarde, se suicidaria.[15] Esta cena dramática e
degradante deve seguramente ter traumatizado o jovem Espinosa, o qual, como
observa a sua biógrafa Gulan-Whur, percebia que “a comunidade judia era tão
brutal como a holandesa”,[16] ainda que, na sua obra,
não haja uma única referência directa ao caso doloroso do judeu castigado pelo
seus correligionários – ressalve-se, contudo, uma alusão ao farisaísmo de
alguns judeus que instigam Inquisições pondo a lei de Moisés acima da piedade,
a qual não deixa, assim, de ser um eco deste episódio amargo –, ainda que o
fenómeno do suicídio fosse examinado nas suas obras.
A verdade é que, em
vez de prosseguir os estudos de aprofundamento do judaísmo que o poderiam levar
ao rabinato, Espinosa, depois de frequentar a escola judia de Ets Haim e
a yeshiva de Keter Torah, não seguiu a tradição sefardita de se
tornar num hakkam (sábio, rabino), antes frequentou alguns cristãos
dissidentes, estudando a fundo a obra de Descartes – que , como acima se viu,
vivera na Holanda, com algumas curtas interrupções, desde 1629 a 1649, fazendo
diversos discípulos e debatendo naquele país as suas doutrinas -, cuja
doutrina resumiu num opúsculo acima citado, frequentando ou lendo os livros de
alguns espíritos suspeitos de “cepticismo”, “epicurismo”, cartesianismo e
“libertinismo”. A tertúlia intelectual de Espinosa incluía figuras judias como
Menasseh Ben Israel,[17] Saul Morteira – que, contudo,
seria depois um dos juízes mais severos, responsável pelo herem de 1656
– e Juan de Prado, um marrano vindo de Espanha. Bento escolheu, em suma, uma
via diferente do judeu expatriado na Holanda tolerante, interessando-se pela
matemática e pela física, lendo os autores judeo-espanhóis como Maimónides e
Crescas, relacionando-se com o já referido Christiaan Huygens (1629-1693) –
famoso sábio e inventor de instrumentos telescópicos que, além de ter
estabelecido a teoria do pêndulo que usaria para a regulamentação dos relógios,
concebeu um telescópio que lhe permitiu descobrir o anel de Saturno e duma
teoria ondulatória sobre a refracção e a reflexão da luz, bem como de um
tratado completo sobre o cálculo de probabilidades. Espinosa, a optar pela
modesta profissão de polidor de lentes para lupas, microscópios e telescópios,[18] mester relacionado com o seu interesse por óptica e
pela física, tendo ainda gerido, de parceria com o irmão Gabriel, um negócio de
importação-exportação de frutas, período de formação intelectual que ocuparia
os anos de 1643 até ao herem de 1646.
Não sendo fluente em
holandês, Bento estudou na escola o espanhol necessário para ler a literatura
castelhana, o que parece confirmar a sua relativa ignorância dos autores lusos,
embora em casa falasse com os pais e irmãos em português, língua predominante
nas sinagogas lusas de Amesterdão. Na escola de Franciscus (Franz) Van den
Enden[19] − um ex-jesuíta herético de origem
francesa que seria executado em França como conspirador contra a realeza −,
aprenderia o filósofo o latim no qual havia de escrever toda a sua obra
filosófica. É também nesse mesmo período temporal que Espinosa se afasta da lei
da sua nação e se orienta, através da razão e duma mente nada religiosa,
antes adoptando um cogito de cânone matemático-geométrico, influenciado pelo
cartesianismo, cosmovisão que não podia deixar de conduzir à ruptura com o
judaísmo. Como observou o seu citado biógrafo Johan Colerus, ministro luterano
de Haia, que no séc.XVIII publicou uma pequena biografia da sua vida, o autor
da Ethica “tornou-se bastante reservado quanto aos doutores judeus, de
que evitou o comércio tanto quanto lhe foi possível, e que o viram raramente
nas suas sinagogas (…), e que os irritou extremamente contra ele”, acabando por
o excomungar, expulsar e vituperar.[20] Um pintor
polaco oitocentista, Samuel Hirszenberg,[21] deu-nos,
na escassa imagética em torno da vida do nosso filósofo, um raro quadro de
excepcional interesse, pintado em 1907, representando um jovem absorto, de
típico chapéu escuro cobrindo-lhe os cabelos negros, mostra-nos Espinosa
passeando no meio duma rua de Amesterdão, totalmente absorto e alheio, lendo na
rua, um livro que segura na mão direita, observado por diversos judeus
horrorizados: esta imagem representa sem dúvida a solidão dum descrente a
mover-se solitariamente sem se dar conta da hostilidade religiosa que o cerca,
exprimindo com especial realismo o papel representado por Espinosa no episódio
que culminou no herem de 1656.
Em suma, Espinosa foi
um refractário que acabaria por se afastar, ainda jovem, da lei de
Moisés. Daniel Lindenberg chama-lhe “um intelectual absoluto”, “uma figura de déviant”
que no mundo judeu justificava “a assimilação total, assumida como fusão no
Universal, repúdio dos diversos elos tribais” e que “conscientemente preferiu
apostar na cidadania moderna em lugar da «Eleição» dos seus pais. Este
procedimento solitário tornou-se hoje a coisa mais partilhada depois da
Revolução Francesa, a qual realizou, incluso no que diz respeito aos
«Israelitas», o programa do Tratado teológico-político”,[22] o que fez dele alguém que autores destacados como
Mauss, Brunschvicg, Edgar Morin e Lévi-Strauss fariam seu –, um inovador ousado
mas prudente, cujo lema caute (o emblema circular desta divisa
espinosista de prudência incluía, no centro, uma rosa, símbolo do secretismo,
cercada das suas três iniciais, BdS), levaria a evitar-lhe um destino tão
abrasivo como o de Uriel da Costa. No campo teológico, metafísico e político,
recorde-se o seu extraordinário Tratado Teológico-político, livro
publicado anonimamente em latim (só seria traduzida para hebreu, em 1868, em
Viena) − seria a sua grande obra editada em vida, com quatro edições no ano de
em 1670, obra fundadora do pensamento democrático moderno[23]
−, com a qual este filósofo benedictus/maledictus prolongaria uma série
de esboços de “heresia” e de abandono de tradições institucionais da sua Nação
de exilados perpétuos, embora o fizesse numa linha também judaica de
auto-ultrapassagem ideológica e religiosa, constituindo-se como um “judeu
não-judeu” segundo a expressão adequada de Isaac Deutscher [24]
− na qual se podia também detectar o “ódio por si mesmo”(Selbsthass) que
o judeu alemão Theodore Lessing estudou no seu La Haine de soi (1830).[25] Também se poderia recorrer à metáfora de George
Steiner, definindo Espinosa como um desses “meta-rabinos”, tais como Marx,
Freud, Kafka, Schönberg e Wittgenstein.[26]
Túmulo de Espinosa
|
Uma interessante obra
recente, de pesquisa bastante alargada sobre a recepção de Espinosa até aos
nossos dias, o bem documentado estudo de Daniel B. Schwartz, The First
modern Jew (2012), estuda a odisseia póstuma do filósofo, desde Amesterdão
à Palestina/Israel e de novo na Europa, a partir da imagem de herético
solitário na Holanda, expulso da sinagoga até à sua reabilitação como um dos
patronos da identidade judaica, a sua posição de precursor do sionismo e até as
suas mais diversas leituras como pensador nacionalista do judaísmo ou
cosmopolita, reformista, democrata, destacando-se finalmente como um símbolo do
“primeiro judeu moderno” no qual várias gerações de intelectuais judeus –
alemães liberais, maskilim do leste da Europa, sionistas seculares e
escritores iídiches (como o grande autor judeu expatriado nos Estados Unidos,
Isaac Bashevis Singer)[27] – projectaram os seus
próprios dilemas de identidade, remodelando às suas próprias imagens, no
marrano português, de modo que o solitário pensador foi motivo de celeuma, por
alguns séculos, no campo judaico sobretudo quanto à maneira de desenhar as
fronteiras da judeidade e ainda se uma identidade judia secular era possível,
confirmando, através do caleidoscópio de autores em disputa quanto ao
espinosismo, que o autor do Tratado teológico-político continua a ser
uma obsessão para o povo da Aliança.
Nesta sua obra de
grande interesse, Schwartz mostra que Espinosa, de rejeitado olhado como
suspeito pelos próprios judeus, acabaria por se tornar num judeu de novo tipo,
que punha a verdadeira questão a identidade judaica, com a pergunta: “o que é
um judeu?”, ainda mais lancinante depois da criação do Estado judaico em 1948,
na medida em que se, do séc. XVII aos nossos dias, o problema de saber se era
possível “um judaísmo sem judeidade e uma judeidade sem judaísmo”, desde que se
separou etnicidade e religião, tanto mais que o filósofo de Amesterdão
desertara da sua religião sem aderir a nenhuma outra.[28]
Depois, na sua Ethica, terminada em 1675 mas só publicada após da sua
morte, tornava-se patente que a sua ética “não era mais a ética judia, mas a do
homem em geral e o seu Deus não era mais o Deus judeu: intimamente misturado
com a natureza, este perdia a sua identidade divina separada e distinta. Num
sentido, contudo, o Deus e a ética de Espinosa continuavam a ser uma cosmovisão
judia, com a diferença de que se tratava dum monoteísmo levado à sua conclusão
lógica e do Deus universal judeu e pensado até ao fim; e pensado até ao fim,
esse Deus deixava de ser judeu”, observa Deutscher.[29]
Por outro lado, como o
mostrou o grande estudioso da mística judaica Gershom Scholem, no seu
monumental estudo sobre o caso do pseudo-Messias Sabbatai Zevi, o filósofo
tornado um modesto polidor de lentes para melhor levar uma vida apagada e
inteiramente devotada ao cogito, apesar de contemporâneo desse messianismo que
teve extraordinária voga em vários países europeus como a Alemanha, a Polónia e
a Holanda, constituindo um autêntico terramoto místico-religioso que varreu o
mundo desde Jerusalém e Alepo a Hamburgo, Amesterdão e Varsóvia, não mostrou
qualquer interesse por essa epidemia milenarista iniciada pela acção do antigo
rabino de Esmirna, o qual, finalmente seria preso pelos turcos (1666) e posto
ante a opção entre a conversão ao islão ou a morte, preferindo a primeira
hipótese, o que aliás não significaria o termo desse delírio milenarista, uma
vez que muitos sequazes seus continuariam a segui-lo, embora continuassem fiéis
à fé judia, mesmo após a morte do falso Messias em 1676. [30]
João Medina
[1] Veja-se A. Borges Coelho, Inquisição
de Évora, dos Princípios a 1668, vol. I, Lisboa, Caminho, 1987.
[2] Para a linhagem paterna e materna de Espinosa,
veja-se a genealogia feita por Margaret Gullan-Whur, no seu Within Reason. A
Life of Spinoza, Londres, Jonathan Cape, 1998, ilustr., p. XVI (árvore
genealógica) e pp.6-8 (parentescos).
[3] Veja-se na Correspondencia de
Espinosa, ed. e anotada por Atilano Domíguez (Madrid, Alianza Editorial,
1988), as cartas trocadas entre E. e L., pp.296-298.
[4] Apud Atilano Domínguez, na sua
introdução ao cit. volume de Correspondencia de Espinosa, , p.23.
[5] Johan Colerus diz que E. era duma
constituição fraca, malsã, sendo magro e atacado de tísica desde os 20 anos, o
que o obrigou a viver em regime e a ser extremamente sóbrio no seu beber e
comer.”(Vies de S., ed. Allia, p.82).
[6] Stuart Hampshire (1914-2004 ), Spinoza,
Harmondsworth, Penguin Books, 1953, p.227. Sir Stuart Newton Hampshire foi
crítico literário e professor universitário, alistando-se no exército em 1940,
servindo então nos serviços secretos, até 1947, ao lado do historiador Hugh
Trevor-Roper, ensinando depois em Oxford e, de 1947 a 1950, no University
College de Londres, onde sucedeu ao filósofo A. J. Ayer na cátedra de
Filosofia. Em 1970 passou para o Wadham College de Londres, reformando-se em
1984. Foi nobilitado em 1979.
[7] Para a biografia detalhada de Espinosa,
nomeadamente no tocante às suas origens portuguesas e meio lusófono da “Nação”(
como a comunidade judia de origem lusa se chamava a si mesma, e não como
“Nacion”), veja-se a recente e meticulosa obra supracitada de Margaret
Gullan-Whur, Within Reason. A Life of Spinoza; mapa de Amesterdão
e os locais da vida de Espinosa: estampa 1, diante da p.206; família portuguesa
de E.: pp. 1-14; árvore genealógica dos E.: p.XV; E. em Amesterdão:
pp.18-39-38; vida de E. a partir da sua expulsão da sinagoga: pp.39-71; E.
em Rijnsburg: p.97 e ss e em Voorburg: p.128 e ss e 154 e ss. Os dados
biográficos de E. que referimos neste estudo devem-se essencialmente a esta
indispensável e recente obra, na qual se afirma que, até aos anos 30 do séc.
passado, os estudiosos de E. cometiam o erro corrente de o referirem como judeu
“Espanhol” (op. cit., p. 6). Todavia, esta autora insiste no facto de as
referências a Portugal – vinham da Vidigueira, no Alentejo, os seus avós
– na sua obra serem nulas, e, ao contrário, encontram-se na sua
biblioteca muitos autores espanhóis como Francisco Suárez, assim como uma
rara tradução castelhana de Calvino. Esta biógrafa recorda que os judeus
portugueses de Amesterdão, como a família Nunes da Costa – a avó materna de E.,
Maria Nunes da Costa, do Porto, pertencia a esta família – enviaram dinheiro e
armas para D. João VI quando Portugal de libertou do jugo espanhol (op. cit.,
p.9). Uma das primeiras biografias de E. foi a que publicou Jean Colerus,
ministro luterano de Haia, escrita em francês, reeditada na mesma língua na
obra que recolhia a lista dos livros da biblioteca do filósofo, inventário
notarial feito aquando do seu falecimento, Inventaire des Livres
formant la Bibliothèque de Benedict Spinoza (Haia e Paris, 1889, reed. em
facsímil e adiante referida a propósito da dita biblioteca). A obra de Johan
Colerus incluía essa biografia, intitulada Vie de Spinoza (pp.47-108),
na qual o referido autor sublinhava, logo no começo do seu texto, a origem
portuguesa de E.: “os seus pais, Judeus Portugueses, gente honesta e bem
instalada, eram mercadores em Amesterdão” (ed. Vies de Spinoza, de J.
Colerus e Jean Maximilin Lucas, Paris, Editions Allia, 2002, p. 9).
[8] Veja-se a reed. facsimilada do Inventaire
des Livres formant la Bibliothèque de Benedict Spinoza publiée après un
Document inédit, avec les Notes biographiques et bibliographiques et une
Introduction par A.J. Servais Van Rooijean, Haia e Paris, W.C.Tenegler e
Paul Monnerat, 1888, reed. da Kessinger Legacy Reprints, s.l.n.d..
[9] A, Damásio, Ao Encontro de Espinosa,
Mem Martins, Publicações Europa-América, 2003, pp.292-3.
[10] Sobre a posição de Montaigne, pensador
de origem judaica ibérica, em relação à expulsão dos judeus portugueses,
veja-se o nosso estudo “O Segredo judaico de Montaigne (A questão da sua origem
marrana e as fontes portuguesas dos seus Ensaios no tocante às
perseguições dos judeus em Portugal)”, Caderno de Estudos Sefarditas,
Lisboa, nº 9, pp.11-34.
[11] Pierre-François Moreau, Spinoza et
le Spinozisme, 3ª ed., Paris, Presses Universitaires de France, col. Que
Sais-Je?, 2011. Sobre os judeus portugueses e espanhóis, veja-se o capítulo
“Héritages espagnol et portugais”, pp.22-3, sublinhado Moreau que essa
comunidade chamada portuguesa vinha sobretudo de Lisboa, Porto e Coimbra,
trazendo com ela uma rica herança ibérica, uma vez que a suas origens tinha a
ver com a decisão da expulsão dos monarcas espanhóis em 1492 (a que se seguira
a expulsão lusa de 1497).Veja-se ainda, deste mesmo autor, o seu Spinoza,
Paris, Editions du Seuil, 1975, ilustr (com um facsímil do herem).
[12] Veja-se: -Leonardo Dantas Silva, 1630-1654.
Holandeses em Pernambuco, Recife, Instituto Ricardo Brennand,
2005, ilustr., maxime pp.67-75 (cristãos-novos e judeus no Recife, em
Pernambuco) e pp.261-271 (os judeus do Recife, onde existiu a primeira sinagoga
do Novo Mundo, deixam o Brasil e seguem para outras regiões americanas, como a
América do Norte, em Nova Iorque). –Tânia Neumann Kaufman, Passos perdidos,
História recuperada. A presença judaica em Pernambuco - Brasil, 4ªed.,
Recife, Ensol Lda, 2005, ilustr., maxime pp.35-33 (judeus
holandeses no Brasil de Maurício de Nassau.). reja-se ainda o nosso estudo Portuguesismo(s).(Acerca
da Identidade nacional), Lisboa, Centro de História da Universidade de
Lisboa, 2006, no capítulo VI, “O «Povo errante» - Os judeus expulsos,
perseguidos e queimados”(pp.460-526), duas fotos da portuguesa sinagoga Touro
de Newport (Rhode Island), onde se acolheram judeus portugueses vindos da
Holanda no séc. XVIII (1758).
[13] Para conhecimento da vida dos marranos
fugidos da Ibéria para a capital holandesa, veja-se o capítulo “A Jerusalém
holandesa” do estudo de Cecil Roth, Histoire des Marranes, Paris, Liana
Levi, 202, pp.187-198 (Espinosa: maxime pp.195-7; os sabataístas em
Amesterdão: pp.1978). Cecil Roth (1899-1970), historiador judeu inglês, é autor
de vários estudos pioneiros sobre os judeus ibéricos, como The Spanish
Inquisition (1937) e da referida história dos marranos portugueses e
espanhóis (1932), além de uma reputada biografia do judeu madeirense Manuel
Dias Soeiro (Madeira, 1604 – Amesterdão, 1657), mais conhecido como Menasseh
Ben Israel (vide infra), Mennasseh Ben Israel, Rabbi, Printer and Diplomat
(Filadélfia, Jewish Publication Society in America,
1934).
[14] Espinosa publicou em 1663, já tinha
Descartes falecido, o seu estudo Renati Descartes principiorum philosophiae,
editado por Johannes Rieuwerte em Amesterdão, a sua única obra assinada com o seu
nome. Veja-se esta obra, em trad. franc., Les Principes de la Philosophie de
Descartes démontrés selon la Méthode geoméytrique, no vol.I das Oeuvres
de Spinoza, trad. e notas de Ch. Appuhn, Paris, Garnier Frères, 1907,
pp.549-425. Ver ainda Colerus, op. cit., p.113.
[15] Veja-se a edição bilíngue (latim e
esp.) da autobiografia de Uriel da Costa, Espejo de una Vida humana ou
Exemplar humanae Vitae, Madrid, Libros Hiperión, 1985, trad. e notas de G.
Albiac; flagelação: pp..42-45. Consulte-se também I.S.Révah, Uriel da
Costa et les Marranes de Porto, Paris, Centre Culturel Calouste Gulbenkian,
2004, com muitas referências a Bento Espinosa, Miguel E. e Miriam E.). Veja-se
Jean-Pierre Osier, D’Uriel da Costa à Spinoza, Paris, Berg
International, 1983.
[16] M. Gullann-Whur, op. cit., p.38.
[17] Sobre Menasseh Ben Israel (Manuel Dias
Soeiro, seu nome em Portugal, 1604-1657), veja-se o seu retrato na p.484 do
nosso supracitado livro Portuguesismo(s), bem como a sua biografia, idem,
pp.484-5. Quanto a Espinosa, veja-se o seu retrato, gravura do séc. XVII, p.486
e biografia pp.487-91. Cecil Roth publicou uma biografia de referência sobre M.
Ben Israel, acima citada.
[18] A biógrafa Margaret Gullan-Whur põe a
hipótese de a sua actividade no domínio óptico ser um disfarce para Bento poder
contactar com correspondentes e visitantes sem medo de ser censurado por uma
companhia duvidosa (op. cit, p.118). Sobre as relações entre Christiaan
Huygens (1629-1695) e Espinosa, ver op. cit., pp.170-3.O sábio e
inventor holandês iria viver para Paris, para ali ajudar a criar a Academia
Real de Ciências, referindo-se a Espinosa, nas suas cartas ao irmão, como “o
Judeu” ou “o Israelita”.
[19] Sobre a vida de Van den Enden e as suas
relações com Espinosa, bem como a sua conjura contra o rei de França, veja-se a
nutrida atenção que lhe dedica Steven Nadler, Espinosa. Vida e Obra, Mem
Martins, Publicações Europa-América, 2003, pp.114-20
[20] J. Colerus, La Vie de Spinoza,
1706, in Colerus/Lucas, Vies de Spinoza, Paris, Editions Allia, 2002,
pp.14-15 e 17.
[21] O pintor judeu polaco Samuel
Hirszenberg (Lodz, 1865 - Jerusalém, 1908), fez estudos artísticos em Krakov,
Munique (1885-1889) e Paris, regressando à Polónia em 1891, dedicando-se a
temas judaicos (repouso sabático, cemitério hebreu, o Judeu errante, Espinosa e
Uriel da Costa, etc.), expondo sem grande sucesso essa temática em Paris (1900.
Emigrou em 1907 para a Palestina, ali falecendo. Este quadro de Espinosa a ler
na rua é reproduzido a cores, na capa do livro de Daniel B. Schwartz, The
First Modern Jew. Spinoza and the History of an Image, Princeton e
Oxford, Princeton University Press, 2002, e a preto e branco na p.110. O mesmo
artista fez outro quadro, Uriel da Costa e Espinosa, em 1888,
reproduzido também neste livro (p.168), ocupando-se este das relações do caso
Uriel com o nosso filósofo (pp.107-9).
[22] Daniel Lindenberg, Destins marranes.
L’Identité juive en question, Paris, Hachette, 2004, p.185 e 186.
[23] Veja-se Espinosa, Traité théologico-politique,
vol. II de Oeuvres de Spinoza, t.II, trad. de Ch. Appuhn, Paris,
Librairie Garnier Frères, s.d. Vide Etienne Balibar, Spinoza et la
Politique, Paris, Presses Universitaires de France. 1985, maxime
pp.35-62 pp.63-90 (sobre o Tratado teológico-político). Veja-se ainda
Jonathan Israel, A Revolution of the Mind. Radical Enlightenment end the
intellectual Origins of modern Democracy, Princeton e Oxford, Princeton
University Press, 2010, obra à qual damos adiante especial atenção.
[24] Veja-se Isaac Deustcher (1907-1967), Essais
sur le Problème juif, pref. de Tamara Deutscher, Paris, Payot, 1969 (ed.
ingl., The Non Jewish Jew, 1968, pp.35-54). Deutscher começa por
recordar uma passagem dum texto judaico que o impressionara muito, quando ainda
jovem, a história do rabino Meir, grande santo e sábio no meio dos talmudistas
judeus, que recebia lições de teologia dum herético chamado Elishas Ben Abiyud,
dito Akher (o Estrangeiro), e que, num dia de shabbatt, encontrando-se
com o seu mestre, travou com este uma discussão erudita, indo o guru montado
num burro e o seu discípulo a pé, uma vez que não podia montar num animal num
dia santo como aquele. E iam os dois tão absorvidos na discussão religiosa que
não teve Meir consciência de que tinham ultrapassado a fronteira ritual para os
judeus num dia como aquele. O herético virou-se então para o seu aluno ortodoxo
e disse que tinham passado a raia, pelo que tinham de se separar, não podendo o
seu discípulo continuar mais, pelo que lhe pedia que voltasse atrás. O rabi
Meir assim o fez, enquanto o herético, porque o era, continuou o seu caminho e,
desse modo, ultrapassou os limites do judaísmo. Desta história talmúdica
conclui Deutscher que alguns judeus, desde o séc. XVII, tinham, feito como o
herético, i.e, tinham prosseguido a sua viagem para além do perímetro judaico –
Espinosa (pp.38-40. ed. francesa cit.), Heine, Marx (pp.40-1, 43-4), Rosa
Luxemburgo, Trotsky (pp.44-6 e 49-50) e Freud (pp.46-7), examinando cada um
destes casos especiais. Todos eles, nota I.D., eram judeus que viviam no
cruzamento de civilizações, de religiões e de culturas nacionais diversas ou
entre épocas diferentes, e todos eles tinham ido além desses limites, quebrando
com os dogmas do judaísmo, passando a ser “judeus não-judeus”. Quanto a
Espinosa, começando por fazer uma crítica moderna da Bíblia judaica, pondo o
seu dedo sobre a contradição cardial do judaísmo, aquela que opõe um Deus
monoteísta e universal às condições com que Deus se apresenta na religião
judaica, ou seja como o Deus dum povo único, o que separa um povo eleito e um
Deus universal. Foi por isso excomungado pela sinagoga de Amesterdão, mas, ao
contrário de Uriel da Costa, pôde harmonizar as influências rivais e chegar
nessa base a uma concepção mais elevada do mundo e a uma filosofia integrada (op.
cit., pp.39-40). Os demais judeus citados fizeram algo de parecido. O
essencial do caminho de Espinosa foi o de chegar a um Deus que deixava de ser
judaico. O judeu polaco I. Deutscher nasceu em 1907, em Chzanov, na Polónia,
ingressou no clandestino PC polaco, visitou a URSS em 1931, tornou desiludido
ao seu país, criando um partido trotskista, acabando por se exilar na
Inglaterra em Abril de 1939, escrevendo no The Economist e no diário Observer,
encetando após a guerra uma intensa carreira de estudioso do movimento
comunista, nomeadamente as biografias de Estaline (1949) e a grande trilogia
sobre Trotsky (1954-1963), dando ainda aulas em Cambridge, Princeton e na
Columbia University. Faleceu em Roma, em 1967. A sua obra póstuma, The
Non-Jewish Jew and other Essays (N. Iorque, Oxford University Press,
1968) é uma importante reflexão sobre a identidade judaica. Lembremos uma
reflexão central de um dos ensaios desse livro: “Religião? Sou um ateu.
Nacionalismo judeu? Creio no internacionalismo. Portanto, não sou judeu em
nenhum desses dois sentidos. Contudo, sou judeu na sequência da minha
solidariedade incondicional com as pessoas que são perseguidas e exterminadas.
Sou judeu porque sinto a tragédia judia como a minha própria tragédia; porque
tenho debaixo dos dedos o pulso da história judia; porque quereria fazer tudo o
que está no meu poder para assegurar aos judeus uma segurança, um respeito não
falseado.”(trad. franc. cit., p.66).
[25] Theodore Lessing (Hanover, 1873-1933), La
Haine de Soi. Le refus d’être juif, Paris, Berg International, 2010, maxime
pp.50-77. O caso de Espinosa não é referido nesta obra.
[26] G. Steiner apud D. Lindenberg, op.
cit., p. 185.
[27] Daniel B. Schwartz, The First modern
Jew Spinoza and the History of an Image, Princeton e Oxford, Princeton
University Press, 2012. Quanto a “Espinosa redivivus no séc.XX”, vide
pp.189-201; no tocante a E. como “precursor do sionismo”, vide
pp.116-124; no referente ao E. visto pelo grande escritor iídiche polaco expatriado
nos E.U.A., Isaac. B. Singer, vide pp.155-62, 165-8 e 170-6, com
especial interesse nos seus romances A Família Moskat, Sombras
sobre o Hudson e ainda o conto O Espinosa do Mercado público, além
das memórias No Tribunal do meu Pai.
[28] D. Schwartz, op. cit., maxime
pp.1-13 e pp.189-201. Quanto à posição ainda mais radical de Shlomo Sand
(nasc. em Linz, Áustria, em 1946, professor na Universidade de Telaviv desde
1985) no tocante o à questão de “o que é ser judeu?”, vejam-se os seus livros Comment
la Terre d’Israël fut inventée. De la Terre sainte à la Mère Patrie (Paris,
Champs, col. Histoire, 2014, no qual desenvolve a ideia de Israel como um
“miterritório” (mytherritoire, i.e., um “território mito, ver
pp.105-78), e sobre “sionismo versus judaísmo”(pp.261-368) e o provocador Comment
j’ai cesse d’être Juif (Paris, Champs, col. Actuel, 2015, maxime
pp.133-9, onde afirma que se quer “demitir” de ser judeu, rompendo definitivamente
com o “judeocentrismo tribal” e a essa “etnia fictícia de membro de um clube de
eleitos”, pelo que se demitia e cessava de se considerar judeu, tendo “a
consciência de viver numa das sociedades mais racistas do mundo ocidental”,
pp.133-5).
[29] I. Deutscher, Essais sur le Problème
Juif (no original inglês, insistamos, esta obra chamava-se The
Non-Jewish Jew), pp.41-2.
[30] Veja-se Gershom Scholem (Berlim, 1897 -
Jerusalém, 1982), Sabbataï Tsevi. Le Messie mystique, 1626–1676, Paris,
Éditions Verdier, 2008 (maxime pp. 502-528: o sabataísmo em Amesterdão;
pp.526-7 e 528: posição de E.). Numa carta que enviou a Espinosa, de Londres,
em 8-XII-1665, o seu assíduo correspondente cristão Oldenburg diz que corre o
rumor de que “os israelitas na diáspora há mais de dois mil anos, regressam à
sua pátria. Neste país, poucos o crêem mas muitos o desejam”, notícia que, a
ser exacta, “me parece que provocaria uma catástrofe de todas as coisas no
mundo”, pedindo-lhe a sua opinião (Espinosa, Correspondência, ed cit., p.243-44).
Não se sabe se Espinosa lhe terá respondido, Quanto a Scholem, este, lembrando
que no TTP, o filósofo afirmara que, “se algum dia os judeus, quando a
ocasião se apresente,(…), reconstruiriam o seu Estado, e Deus os elegeria de
novo” (TTP, p.133), deplora que a resposta de E. a Oldenburg tenha
desaparecido (Sabbataï Tsevi, p.527). G. Scholem é um dos mais
competentes historiadores da mística hebraica, com obras sobre as grandes
tendências do misticismo judeu, a cabala, o Zohar, a gnose hebraica e o
cit. estudo sobre Sabbatai Zevi, deixando ainda uma notável autobiografia, De
Berlim a Jeriusalém.Memórias da minha Juventude (1977). Foi íntimo amigo de
Walter Benjamin e polemicou com Hannah Arendt por causa do famoso livro desta
sobre Eichmann julgado em Jerusalém. Quanto a Zevi, nasceu este em 1626 na
Turquia governada pelos otomanos, foi rabino de Esmirna, convencendo-se de que
era o Messias esperado pelos seus correligionários, atraindo em seu redor uma
multidão de discípulos fervorosos que percorreram parte da Europa no sentido de
fazerem convergir os judeus em Jerusalém, onde aquele seria aclamado em 1665
como “Ungido do Senhor”. Preso pelos otomanos, que lhe deram a escolher entre
converter-se ao islão ou ser morto. Zevi optou pela primeira solução
(16-IX-1666), assim como muitos sabataístas seguiram a sua apostasia, embora se
mantivessem secretamente judeus, formando uma seita que duraria largo tempo.
Duas obras literárias do séc. XX evocam de modo impressionante a aventura dos
discípulos de Zevi na Europa do Norte: a de Jakob Wassermann (1873-1933), Les
Juifs de Zirndorf, Paris, Pierre Jean Oswald, 1973 (obra publicada em
1897); e a de Isaac Bashevis Singer (Varsóvia, 1904 – Miami, 1991), Satan in
Goray, Londres, Vintage/Random House, 2000. O livro de J.W. descreve o
nascimento, no séc. XVII, da emigração dos judeus da aldeia de Zirndorf,
provocada pelo anúncio da chegada à terra santa do pretenso Messias, Sabbatai
Zevi, êxodo detido pela intervenção armada da polícia de Nuremberga. O romance
de I.B.S. descreve os conflitos violentos entre um grupo de sabataístas num shtetl
polaco, Goray, no qual a comunidade judaica se cinde em duas facções opostas,
uma que pretende convencer os habitantes a deixarem tudo e partirem sem demora
para Jerusalém de modo a assistirem à consagração do anunciado libertador e
outra que não aceita essa impostura. Esta obra, publicada em iídiche, em 1935,
na Polónia, tinha um claro sentido metafórico essencial, já que assimilava o
estalinismo e o nazismo a formas da mesma ficção tirânica e messiânica que
Sabbatai Zevi representara no séc. XVII. Singer partiria nesse mesmo ano para
os Estados Unidos, recebendo em 1978 o prémio Nobel da literatura. Na
supracitada obra de Steven Nadler, Espinosa. Vida e Obra, este autor dá
especial atenção ao fenómeno de Zevi, o pseudo-Messias, no contexto do
milenarismo dos judeus de Amesterdão (op. cit., pp.255-260), observando
que o filósofo deve ter observado o sabataísmo na Holanda, “na melhor das
hipóteses, de uma forma divertida e, possivelmente, com desdém pelo seu
comportamento supersticioso e ridículo, Esta aventura, sem dúvida, veio
confirmar tudo o que pensava e tudo o que escrevera sobre as formas como a
credulidade e as emoções das pessoas vulgares podem ser manipuladas pelas
autoproclamadas autoridades religiosas.” (p. 260).
A "Ética demonstrada a maneira dos geômetra", de Spinoza, é o maior tratado sobre a Alma Humana.
ResponderEliminarAcho que o autor daquele escrito, foi o Cristo, que vinha em sonho para ditar para Spinoza, todas as noites,. só pode ter sido.