Maria de Fátima da Silva Patriarca nasceu no Monte do Sol Posto, no Couço, concelho de Coruche, em 19 de Janeiro de 1944, e morreu em Lisboa, no Hospital da CUF, na manhã do dia 11 de Março de 2016.
A
sua família era natural de Manteigas, nas faldas da Serra da Estrela, e Fátima
Patriarca nasceu naquela freguesia rural ribatejana por uma circunstância
fortuita: o seu pai, que estudara no Seminário da Congregação dos Espiritanos, trabalhava
no Monte do Sol Posto como contabilista da casa agrícola dos Ribeiro Telles e
professor dos filhos dos trabalhadores da herdade. A mãe, que não frequentara a
escola, empregara-se desde muito nova numa das muitas fábricas de lanifícios de
Manteigas, até migrar com o marido para o Ribatejo. A mais velha de três
irmãos, manteve sempre uma profunda ligação às raízes serranas da sua família.
Evocava com emoção o inconformismo da sua mãe, Ana Cruz Silva, que tudo fez
para que prosseguisse os estudos, tendo um papel determinante no seu destino de
investigadora. Recordava igualmente a figura do seu pai – Joaquim Craveiro
Patriarca, um homem austero e conservador – como modelo exemplar de dignidade e
rigor ético, valores que Maria de Fátima Patriarca cultivou com afincado
escrúpulo em todos os instantes da sua vida.
No
final dos anos quarenta – mais precisamente, em 1949 – a família partiu para
Benguela, em Angola, onde Fátima Patriarca passou a infância e os primeiros
tempos de juventude. Aí fez a escola primária e, aos 14 anos, concluiu o curso
comercial no Colégio Nun’Álvares, onde mais tarde terminou também o liceu, após
o que, graças a uma bolsa do Governo-Geral de Angola, veio estudar Germânicas na
Universidade de Lisboa. Tendo ingressado na Faculdade de Letras em plena crise
académica de 1961, foi aluna do padre Manuel Antunes, de Luís Filipe Lindley
Cintra, de Jacinto do Prado Coelho, de David Mourão-Ferreira, mas duas
reprovações inesperadas – a Inglês e a Alemão – deram-lhe pretexto para
abandonar um curso que não a motivava, indo ao encontro do seu interesse pelos
problemas sociais. Assim, transferiu-se em 1963 para o Instituto Superior de
Serviço Social de Lisboa, onde se diplomou, com 17 valores, em 1967. Em
Novembro desse ano, participou nas acções de socorro e apoio às vítimas das
cheias que devastaram diversas localidades da Grande Lisboa, provocando
centenas de mortos. Maria de Fátima Patriarca, que fora dirigente diocesana da
Juventude Universitária Católica e da Juventude Católica Portuguesa, tinha sido
destacada para as zonas sinistradas de Algés e da Póvoa de Santo Adrião pelos
Serviços Sociais da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Recordaria para
sempre o cenário dantesco com que se deparou nesses dias, um momento decisivo
na formação cívica e política de muitos jovens da sua geração.
Entre
1968 e 1973, foi técnica de Serviço Social na Direcção-Geral de Previdência e
Habitações Económicas do Ministério das Corporações e Previdência Social. Era
então ministro José João Gonçalves de Proença que, curiosamente, Fátima
Patriarca entrevistará muitos anos depois, no âmbito das investigações que
desenvolveu sobre a política social do marcelismo. A actividade como técnica de
serviço social permitiu-lhe enriquecer o seu já profundo – e directo –
conhecimento da realidade do país, sendo um factor determinante da sua carreira
académica e da obra que produziu enquanto historiadora dos conflitos e
movimentos sociais do século XX português.
Tendo
decidido ir para Paris em 1969, Fátima Patriarca foi, entre 1970 e 1972,
bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, equiparada ao Instituto de Alta
Cultura. Nessa qualidade, frequentou o 1º e o 2º ano do Troisième Cycle em
Sociologia, na École Pratique des Hautes Études, VIe Section, onde obteve o
Diplôme d’Études Approfondies en Sciences Sociales (DEASS). A permanência em
Paris e a rede de sociabilidades que aí construiu representaram um natural, mais
do que óbvio, alargamento de horizontes. Foi então que assistiu ao seminário de
Alain Touraine, influência fundamental nos trabalhos de uma historiadora do
período contemporâneo que, curiosamente, tinha como fonte de inspiração um
livro sobre a Idade Média: Les rois
thaumaturges, de Marc Bloch. O seu universo de referências, na verdade,
sempre esteve mais próximo da cultura académica francesa e italiana do que da
anglo-saxónica, sem que, todavia, Fátima Patriarca jamais exibisse a passagem
pelo estrangeiro como uma marca distintiva da sua trajectória intelectual ou
biográfica. Aí participou em grupos e movimentos que floresceram naquela época,
com destaque para o Mouvement de Libération des Femmes (MLF).
Válega, anos 1970
fotografia de Ricardo Lima |
Após
regressar de França em finais de 1972, reassumiu funções na Direcção-Geral de
Previdência e Habitações Económicas e, em simultâneo, colaborou no Grupo de
Sociologia do Gabinete Técnico de Habitação da Câmara Municipal de Lisboa. Em
1973, com a integração daquela Direcção-Geral no Fundo de Fomento da Habitação,
transitou para o Centro de Documentação e Informação deste organismo, onde
permaneceu até 1975. Manteve sempre, de resto, uma ligação profunda a arquivos
e centros de documentação, sendo essa uma das características mais salientes – e
admiráveis – do seu trabalho no campo das ciências sociais e, em particular, do
seu labor historiográfico.
Nas
evocações póstumas de intelectuais e académicos é comum dizer-se que, nas suas
obras, conseguiram aliar teoria e prática, ou vice-versa. Maria de Fátima
Patriarca fê-lo como poucos, mas nunca usou a sua experiência profissional e o
seu conhecimento vivido da realidade social portuguesa como mais-valia
científica para fundamentar as ideias que apresentou nos livros e artigos que
publicava espaçadamente, com a moderação dos tímidos – ou o rigor dos sábios.
Mais do que na sua carreira pretérita, as teses que defendeu apoiavam-se num
exaustivo, quase insano, trabalho de levantamento de fontes primárias,
pertencendo Fátima Patriarca à primeira geração de historiadores que acederam à
vasta documentação do Estado Novo, consultando os arquivos do salazarismo
quando estes ainda se encontravam depositados no Forte de Caxias, à guarda de
militares.
Quando,
em 1974/1975, colaborou, no Gabinete de Investigações Sociais (GIS), na
investigação sobre «Conflitos de trabalho após o 25 de Abril», sob
responsabilidade de Maria de Lourdes Lima dos Santos, Marinús Pires de Lima e
Victor Matias Ferreira, Fátima Patriarca possuía já alguma experiência docente,
pois leccionara entre 1969 e 1970 no Instituto Superior de Serviço Social
(ministrando aulas práticas de Serviço Social de Comunidades, no Bairro de
Santa Cruz em Benfica), funções que retomaria em 1974/1975 (sendo responsável
pela disciplina de Sociologia do Trabalho). Neste ano de 1975 foi assistente do
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, sendo igualmente em
1975 que, equiparada a Técnica de 1ª classe, ingressou no Gabinete de Investigações
Sociais, em regime de tempo parcial. Em finais de 1976, assumiu funções no GIS
em regime de tempo completo. A partir daí, inicia em pleno o seu percurso como
investigadora no domínio das ciências sociais, encerrando-se um ciclo de vida
até então pontuado pelo trabalho como técnica de Serviço Social e por uma
passagem pelo ensino que, além de breve, não terá sido especialmente relevante para
a sua obra posterior. Com efeito, não é como docente mas como investigadora que
Fátima Patriarca se afirmou no campo das ciências sociais em Portugal, sob o
decisivo impulso, que sempre recordará com enorme admiração e respeito, de
Adérito Sedas Nunes.
Em
1980, licencia-se em Sociologia no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e
da Empresa, com a classificação final de 18 valores. A sua área de
especialização – a Sociologia Industrial – levara-a a contactar directamente o
meio fabril português, acompanhando de perto a laboração de empresas como a
Lisnave, a Sidul, a Sorefame, a Setenave e, sobretudo, a Mague. Com a
institucionalização do GIS e a sua integração na Universidade de Lisboa, passa
a Assistente de Investigação no Instituto de Ciências Sociais (ICS), em regime
de dedicação exclusiva. Entre 1989 e 1991, primeiro sob orientação de Maria
Filomena Mónica e Manuel de Lucena e, depois, de Adérito Sedas Nunes,
desenvolve o projecto de investigação «O processo de instauração do
corporativismo, no domínio das relações entre o capital e o trabalho
(1930-1947)», o qual culmina na sua dissertação, entregue em Outubro de 1990,
mas que, devido à doença e posterior morte de Sedas Nunes, só viria a ser
defendida, em provas públicas, em Janeiro de 1992.
Antes
desse trabalho de grande fôlego, Maria de Fátima Patriarca estivera envolvida
noutros projectos: entre 1975 e 1978, em co-autoria com Marinús Pires de Lima e
José David Miranda, «A acção operária nas empresas após o 25 de Abril –
significado do movimento conflitual e grevista»; em 1978, num trabalho
financiado pela Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica e intitulado
«O trabalho e a acção operária na indústria metalomecânica pesada»; e, entre
1983 e 1986, «Sindicatos, contratação colectiva e greve: o caso dos
metalúrgicos portugueses (1968-1972)», o qual, após um longo e aturado labor de
investigação nos arquivos, sofreu uma alteração estrutural, com vista ao seu alargamento
a outros grupos sociais, sendo, do mesmo passo, restringido quanto ao seu
âmbito temporal, passando a concentrar-se no período do marcelismo. Mesmo após
a sua jubilação, continuaria a trabalhar nesse projecto, a que dera o título
«Sindicatos e lutas sociais nos últimos anos do regime corporativo». Não tendo
chegado a concluí-lo, publicou, ainda assim, textos essenciais sobre o Estado
social no consulado marcelista, que avançam a tese – surpreendente e
originalíssima – de que muito do que seria a legislação social do governo de
Marcelo Caetano já se encontrava na forja no tempo do seu antecessor. «O Estado
social: a caixa de Pandora», publicado em 2004 na obra colectiva Marcelo Caetano – A Transição Falhada,
coordenada por Fernando Rosas, é um dos mais importantes trabalhos alguma vez
vindos a lume sobre a «questão social» nos derradeiros anos do Estado Novo.
Em Janeiro de 1992, perante um júri composto
por Manuel Villaverde Cabral, Francisco Pereira de Moura, João Freire, Fernando
Rosas, Maria Filomena Mónica e Manuel Braga da Cruz, concluiu as provas da
carreira de investigação no ICS, com a classificação «Aprovada com distinção e
louvor». Para o efeito, apresentou a dissertação «Processo de Implantação e
Lógica e Dinâmica de Funcionamento do Corporativismo em Portugal – os Primeiros
Anos do Salazarismo», volumoso trabalho de 741 páginas, mais tarde publicado em
livro, em dois tomos, com o título A
Questão Social no Salazarismo, 1930-1947 (Lisboa, Imprensa Nacional – Casa
da Moeda, 1995). A obra, não por acaso, é dedicada a Adérito Sedas Nunes, a
quem a investigadora agradece «uma total liberdade e uma crítica implacável,
condições indispensáveis ao trabalho e maturidade intelectuais». Além desse
agradecimento, Fátima Patriarca manifesta a sua gratidão a diversos colegas:
Ana Nunes de Almeida, António Costa Pinto, Edgar Rocha, João Martins Pereira,
José Carlos Ferreira de Almeida, Luís Filipe Salgado de Matos, Manuel Braga da
Cruz e Valentim Alexandre. Destaca, porém, dois nomes: Maria Filomena Mónica,
com quem colaborou durante anos sobre as «questões operárias», e Manuel de
Lucena, que apelida de «pioneiro nos estudos sobre o corporativismo», e ao qual
agradece o estímulo e, em particular, as críticas e as sugestões nascidas de
uma «leitura atenta e rigorosa» da versão original do texto, traço que é fácil
reconhecer por todos quantos beneficiaram da argúcia do olhar e do entusiasmo
juvenil com que Manuel de Lucena generosamente lia escritos alheios.
Além da dissertação, prestou provas
complementares, tendo apresentado então o trabalho «Projecto de investigação:
Sindicatos e Luta Social no Regime Corporativo – dos anos 50 a 1974». Tratava-se
de um projecto que desenvolvera especialmente entre 1986 e 1989 e que, como
atrás se disse, prosseguiu mesmo após a sua jubilação, ocorrida em Outubro de
2005. Ao jubilar-se, Fátima Patriarca concluía uma carreira previsivelmente consistente, que a
fizera percorrer, com provas dadas, todos os passos de um exigente caminho: ingressara
em 1992 no quadro do ICS como Investigadora Auxiliar, passando em 1999, e após
concurso público, a Investigadora Principal daquele Instituto.
Sem desvios ou dispersões, Maria de Fátima
Patriarca concentrou praticamente toda a sua actividade no Instituto de
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Foi aí que, em conjunto com Maria
Filomena Mónica, criou em 1979 o Arquivo Histórico das Classes Trabalhadoras,
mais tarde designado Arquivo de História Social do ICS. No GIS e, depois, no
ICS, exerceu diversas funções: vogal eleita do Conselho de Gestão do GIS
(1979-1980); vogal eleita do Conselho Científico do GIS (1982-1987); membro do
Conselho de Redacção do Boletim de
Estudos Operários, publicação bianual do ICS (1982-1987); representante
eleita dos investigadores do ICS à Assembleia Constituinte da Universidade de
Lisboa (1989); responsável científica pelo Arquivo de História Social do ICS,
cargo que desempenhou durante quinze anos, de 1990 a 2005; membro do Grupo de
Trabalho «Instalações do ICS» (1992-2000); membro eleito da Comissão Permanente
do Conselho Científico do ICS (1993-1999); membro do Conselho de Redacção da
revista Análise Social e da Imprensa
de Ciências Sociais (1999-2003); presidente da Assembleia de Representantes do
ICS (2001-2004).
A constância da presença no ICS, aliada
ao reconhecimento dos seus méritos como cientista social e da integridade do
seu carácter, fizeram com que fosse chamada a desenvolver trabalhos ou a emitir
parecer sobre questões relacionadas com o ensino superior e a investigação
científica. Entre 1991 e 1993, participou na pesquisa dirigida por José Mariano
Gago sob o título «Papel das Investigações Científicas e Tecnológicas e do
Ensino Superior no Planeamento Estratégico de Lisboa». Logo a seguir, entre
1993 e 1994, foi membro do «Grupo de Trabalho – Inquéritos», no quadro da
avaliação da Universidade de Lisboa. Sendo muito vasta a sua acção nestes domínios,
seria fastidioso recordar cada um dos momentos em que Fátima Patriarca neles
teve intervenção a título pessoal ou institucional, bastando recordar a sua participação,
em 2004 – e a convite de António Barreto –, no Painel de Avaliação de Projectos
de Investigação apresentados à Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e ao
Ministério da Segurança Social.
É certo que, como atrás se referiu, a
sua obra como investigadora se destaca em face da actividade docente. No
entanto, além da investigação propriamente dita, Fátima Patriarca ministrou
cursos e palestras, organizou conferências e, sobretudo, mobilizou e integrou várias
equipas de cientistas sociais. Neste contexto, entre 1974 e 1976 leccionou no
ISCTE o «Seminário sobre a sociedade portuguesa – Área de conflitos de
trabalho». Em paralelo, de 1975 a 1983 iria, em conjunto com Marinús Pires e
Lima e Maria Filomena Mónica, promover a realização de palestras e seminários
de investigadores estrangeiros, trazendo a Portugal nomes como Alain Touraine,
Michelle Perrot, Claude Durand, Jean-Daniel Reynaud ou Patrick Friedenson,
docentes em instituições francesas, ou seja, situados na órbita francófila de
que sempre foi próxima. A proximidade afectuosa era, aliás, um dos traços mais
marcantes do seu carácter: sem distinguir origens sociais ou atributos de
classe, desdenhando diferenças de idade ou divergências de ideias e de opiniões,
Maria de Fátima Patriarca relacionava-se de igual para igual com todos os seus
semelhantes, do funcionário da empresa de segurança da Torre do Tombo – o
Senhor Francisco – ao director dessa instituição vetusta – Silvestre Lacerda,
um dos seus grandes amigos. Na «Torre», como lhe chamava, era capaz de
despender uma tarde inteira a ajudar uma qualquer investigadora estrangeira,
que mal conhecia, a decifrar a caligrafia agreste do doutor Oliveira Salazar. Abundam
exemplos da sua generosidade sem limites, que distribuía seja entre os seus
pares, seja entre os investigadores mais novos, com quem sempre manteve uma
relação de igualdade e respeito mútuo, sem quaisquer laivos de sobranceria distante
ou pretensões de patronnage
intelectual. Interrompia as suas caminhadas no areal de Porto Santo para ir aos
Correios da povoação colocar num envelope, com destino a Lisboa, as páginas da
tese que um aluno de mestrado, jovem e de boina basca, lhe pedira para ler enquanto
gozava férias. A este espírito generoso aliava uma humildade extrema, que
raiava o absurdo para todos quantos reconheciam nela um dos nomes pioneiros da
historiografia portuguesa contemporânea, autora de textos de uma solidez
inquebrantável, porque apoiados em fontes documentais lidas e interpretadas com
total independência e absoluto rigor. Não surpreende, por isso, que fosse
regularmente convidada a proferir conferências ou leccionar aulas em seminários
de pós-graduação ou cursos de mestrado. Nos mais variados lugares – Escola
Nacional de Saúde Pública, Centro de Estudos de História Contemporânea do
ISCTE, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa,
Instituto de Ciências Sociais – e a convite de diversas personalidades: José
Carlos Ferreira de Almeida, Karin Wall, Miriam Halpern Pereira, Fernando Rosas,
Ana Nunes de Almeida, Valentim Alexandre, Maria de Fátima Bonifácio, António
Costa Pinto. Foi, todavia, em colaboração com Maria Filomena Mónica que mais
frequentemente trabalhou, seja nas iniciativas atrás citadas, seja na
organização, em 1981, do colóquio «O Movimento Operário em Portugal» e da
exposição que, pela mesma altura, se realizou na Biblioteca Nacional sobre o
acervo documental de Pinto Quartin, seja, enfim, na coordenação do seminário
«Fontes e arquivos com importância para o estudo do movimento operário», de
1984.
A sua inexplicável modéstia fazia-a,
porém, afastar-se do primeiro plano, recusando liminarmente o protagonismo
mediático que, dada a área em que se especializara – os conflitos laborais –,
facilmente lhe teria sido concedido. Aos holofotes televisivos ou a colunas de
opinião nos jornais sempre preferiu o discretíssimo recato do trabalho feito em
redor de papéis velhos, delidos pelo tempo; para escrever um artigo na Análise Social, sobre o trabalho
operário na metalomecânica pesada, realizou cerca de cem entrevistas e examinou
todo o arquivo de uma grande fábrica de Alverca. Do seu currículo constam
apenas duas deslocações ao estrangeiro: em 1981, a França; em 1983, à Alemanha,
onde proferiu uma intervenção sobre as reivindicações dos metalúrgicos
portugueses num colóquio realizado em Bad Homburg. Este facto, aparentemente de
somenos, atesta a singularidade ímpar de Maria de Fátima Patriarca no panorama
das ciências sociais portuguesas. Estudara em Paris, lia apaixonadamente textos
de autores estrangeiros na língua original (como os livros de Renzo de Felice
ou Emilio Gentile), participou em inúmeros encontros científicos e académicos,
mas não cultivava a «internacionalização» universitária com o frenesi dos
nossos dias. A contemporaneidade, aliás, causava-lhe alguma inquietude, quando
não doloroso tormento. O ruído e as multidões incomodavam-na sobremaneira, mais
do que tudo o resto. Desengane-se, porém, quem tomar a sua repulsa pelo turismo
académico como sintoma de provincianismo. Fátima Patriarca era capaz de ir ao estrangeiro
– e até bem longe. Em 2004 foi aos Estados Unidos e em 2008 deslocou-se a Quioto, no Japão, no culto de outro dos seus interesses, as artes marciais ou Budo. Foi
co-fundadora da Saya No Uchi – Associação de Budo, que, sob os auspícios de
João Tinoco, muito justamente a homenageou numa cerimónia realizada poucos dias
depois da sua morte.
Fotografia de Sofia Macedo |
Além do Budo, cultivava outras artes, igualmente marciais. Entre elas, a maior de todas, a amizade. Por leal amizade, tomou entre mãos e chamou a si tarefas que a obrigaram a abandonar a sua «zona de conforto», como agora se diz, mergulhando a fundo, por exemplo, na coordenação científica da exposição «1936 – Tarrafal – Guerra Civil de Espanha», inaugurada na Torre do Tombo em Outubro de 2006. Antes disso, e durante dois anos, entre 2001 e 2003, recolhera apoios financeiros e institucionais para a elaboração, a que procedeu, de um fac-símile do Álbum Fontoura, composto por 549 fotografias daquela antiga colónia portuguesa e depositado no Arquivo de História Social do ICS, o qual foi oferecido, em versão fac-similada, aos Arquivos de Timor. Mais tarde, a amizade de décadas com Manuel de Lucena levá-la-ia, sob coordenação deste e em colaboração com Rita Almeida de Carvalho, a acompanhar a transcrição e disponibilização online de fontes escritas e orais preciosas sobre a descolonização portuguesa. Não seria este o último gesto de amizade que teria para com Manuel de Lucena, cuja morte inesperada a abalou profundamente. Dedicou-se, com alguns colegas, à organização da obra colectiva Estados, Regimes e Revoluções. Estudos em Homenagem a Manuel de Lucena (2012), para a qual contribuiu com um texto sobre «A batalha de Pomigliano d’Arco», que só aparentemente representa um desvio em relação ao núcleo essencial dos seus interesses.
Estes sempre se centraram em Portugal,
sem dúvida. E, mais precisamente, nos movimentos e conflitos sociais portugueses
do século XX. Porventura sem se aperceber disso, Fátima Patriarca foi tecendo, ao
longo dos anos, uma delicada teia que, no final, acaba por cobrir uma parte
significativa desse século, desde os alvores do corporativismo salazarista até
ao período subsequente ao 25 de Abril de 1974. O seu trabalho sobre o
marcelismo teria sido, muito provavelmente, o fecho da abóboda de um edifício
que abrange um amplo espectro temporal, movendo-se Fátima Patriarca com
admirável à-vontade em etapas muito distintas da nossa História contemporânea.
Quando ainda se encontrava a trabalhar nesse projecto de grande alcance sobre
os tempos do marcelismo, os seus interesses sofrem uma súbita inflexão,
levando-a até ao 18 de Janeiro de 1934, num livro de que adiante se falará. Por
ora, interessa tão-só salientar que a coerência da sua obra decorre, acima de
tudo, do seu interesse pelo mundo do trabalho e em especial pelos seus
protagonistas, gente com rosto e com nome. Assumia, sem complexos, a humildade
das suas origens. Pertencendo a uma elite restrita, a dos intelectuais de
prestígio inquestionado, Fátima Patriarca sentia-se próxima do povo, irmanada com
os que com ela partilhavam a mesma e uma só condição, a humana. Possuía um
genuíno interesse pelos outros, a quem acompanhava nas suas dúvidas, nos seus anseios,
nas dificuldades quotidianas. Tomava os problemas alheios como se fossem seus
e, quando solicitada por familiares ou amigos, aconselhava-os suavemente, com lúcida
sensatez, delicadeza, prudência. Aparentemente frágil, era de uma solidez
granítica. Corajosa, independente, nunca hesitou em afirmar, com áspera mas
leal frontalidade, os seus princípios e convicções.
Ao longo da sua carreira, publicou dois
livros. Um, já citado, sobre a questão social no salazarismo. O outro chama-se Sindicatos contra Salazar. A Revolta do 18
de Janeiro de 1934, e foi dado à estampa pela Imprensa de Ciências Sociais
em 2000. Além disso, cerca de uma vintena de artigos de revista, textos breves,
entradas de dicionários. Tratou com desvelo um dos mais importantes documentos
que se conhecem sobre a génese do Estado Novo: o «Diário» do chefe de gabinete
de Salazar, Antero Leal Marques, que, graças à generosidade da família, deu
entrada no Arquivo de História Social e daí saiu impecavelmente transcrito,
anotado e apresentado por Fátima Patriarca nas páginas da Análise Social. Realizou o seu último trabalho – a revisão
científica de Cronologias de Portugal
Contemporâneo (1960-2015) – com paciência
beneditina, de forma tremendamente séria, com a minúcia e o perfeccionismo que
decorriam do profundo sentido de responsabilidade que colocava em tudo quanto
fez em vida, na academia e fora dela.
Ao
evocar a sua obra, num texto notável lido por ocasião da oportuna homenagem que
em 2015 o ICS prestou aos seus historiadores, Álvaro Garrido observou, muito
acertadamente, sobre Fátima Patriarca: «Publicou sempre textos amadurecidos
e só publicou quando entendeu que tinha coisas importantes a dizer porque entendeu
submeter resultados de investigação ao escrutínio dos pares.»
Como também sublinhou
Álvaro Garrido, Sindicatos contra Salazar.
A Revolta do 18 de Janeiro de 1934 é uma «obra sofisticada, de grande
maturidade e de culto pela micro-história à Carlo Ginzburg.» A autora, aliás,
menciona Ginzburg logo nas primeiras páginas, que ilustram exemplarmente a sua
honestidade intelectual. Intrigada pelo 18 de Janeiro como um dos mitos
fundadores da imagem revolucionária do proletariado português, Fátima Patriarca
enfrenta-o como um mistério da memória, deslinda-o com a exasperante minúcia de
um médico legista ou de um detective de romance. Alerta para os perigos de
promiscuidade entre o trabalho de construção da memória e o da produção historiográfica
– lição que bem merecia ser escutada por muitos dos seus colegas de ofício.
Depois, com característica humildade, e o seu eterno receio de magoar os
outros, escreve: «Terei sido aparentemente impiedosa em relação a alguns
colegas e amigos. Nada de pessoal me move contra eles, e tudo é reversível
contra mim. O que está em jogo são as próprias regras da investigação, que
envolvem não só a exigência de rigor, como o pôr em causa verdades
estabelecidas. E também, de certo modo, o ir contra a corrente que manda que os
investigadores sejam corporativamente cúmplices e se citem, quase por sistema,
no registo de confirmação, o que exclui a saudável polémica.»
Avessa aos desconcertos do mundo, Fátima
Patriarca nunca buscou a polémica, ainda que neste seu livro haja desmantelado,
pedra a pedra, mitos quase sacrais e crenças bem arreigadas sobre o «soviete da
Marinha Grande». O livro não despertou querelas, por uma razão simples: ninguém seria capaz de contrariar – ou
igualar – as conclusões da investigação levada a cabo por Maria
de Fátima da Silva Patriarca. A dado passo da Introdução, a autora fornece-nos
uma pálida imagem do que foi a dimensão do seu esforço: além de uma cronologia
ao minuto de tudo o que se passou em Portugal no dia 18 de Janeiro de 1934, a
pesquisa envolveu a elaboração de um ficheiro onomástico de perto de 400
pessoas referenciadas pela imprensa. Com o livro praticamente terminado, abriu
à consulta pública o arquivo da PIDE-DGS. «A primeira reacção foi esquecer tão
inoportuna abertura. Mas era temerário ignorar tão importante fundo documental
e mais difícil ainda justificar a displicência. Não tive outro remédio senão
meter mãos à obra. (…) Depois de algum tempo de espera, seguiram-se onze meses
na Torre do Tombo em que me senti um misto de perdigueiro e de copista. De
perdigueiro, porque, através dos processos pedidos, fui encontrando pistas que
me conduziram a outros tão ou mais importantes do que aqueles que inicialmente
tinha requisitado. De copista, porque a documentação policial, formada em
grande medida pelos autos das declarações dos presos, não era compatível com
uma simples consulta dos autos e o clássico tomar notas numa sala de leitura.
Estes exigiam, pela sua própria natureza, a transcrição integral, que teve de
ser feita à mão.»
O comum dos mortais terá dificuldade em
perceber como é que uma investigadora prestigiada e em idade adulta, à beira da
jubilação e sem mais provas a dar, passou meses a fio farejando pistas e
copiando fichas policiais dos anos 1930. Era esse o encanto de Fátima Patriarca,
o seu indecifrável fascínio. Lançou-se àquela empreitada por puro deleite, pelo
supremo gozo de descobrir a limpidez da verdade entre as brumas de uma memória ensombrada
pelas mistificações da propaganda. Não proclamou a «sua» verdade como última ou
absoluta, mas tão-só como a conclusão a que chegara após um trabalho árduo, a
que muito poucos seriam capazes de se entregar com idêntica paixão. Imaginar o
prazer que teve em cada minuto passado na Torre do Tombo serve-nos de lenitivo
para a sua perda. Adivinhamos o seu entusiasmo sempre que descobria um nome
perdido numa ficha da polícia ou um pequeníssimo facto escondido num recorte de
jornal. A forma como se entregou a essa tarefa só é explicável – uma vez mais –
por um profundo amor aos outros. Por vezes, dialogar com ela sobre este e
outros temas não era fácil, pois tratava os operários da Marinha Grande, mortos
há dezenas de anos, com familiaridade íntima. Conhecia-os pelos nomes, um a um,
sabia o que fizeram, minuto a minuto, no dia 18 de Janeiro de 1934. Falava
deles como se fossem seus vizinhos na Rua Ribeiro Sanches, ou clientes habituais
do restaurante Caldo Verde, onde almoçava regularmente, servida por dois
amigos, a Gilberta e o Jorge. Achava mais do que natural que o seu interlocutor
soubesse quem era Tomás Guerreiro, um barbeiro de Sines, ou João Gomes Jacinto,
pedreiro de Coimbra, ambos presos em Janeiro de 1934. Não admira pois que, quando
chegou o momento de designar os que participaram no movimento, não hesitasse em
chamá-los pelos nomes. Fê-lo – diz na Introdução do livro – por uma razão
política mas sobretudo ética. «Escamotear ou iludir a identificação destes
dirigentes e militantes, que tiveram rosto, nome, paixões, ódios, que
combateram, que sofreram – e alguns até morreram durante o período de
encarceramento –, reduzindo-os a assépticos e anódinos pseudónimos, era como se
estivesse a traí-los de uma outra maneira».
Escrevendo no dia da sua morte, num
texto publicado no Observador, a sua
grande amiga Maria de Fátima Bonifácio disse, sagazmente, que «muita gente tem dificuldade em convencer os outros; a
maior dificuldade da Fátima Patriarca era convencer-se a si mesma.» A humildade
extrema era, sem dúvida, um dos traços mais vincados do seu carácter. Mas,
paradoxalmente ou não, foi dessa humildade – ou talvez insegurança – que nasceu
a enorme solidez da sua obra, de uma consistência a toda a prova. Nada ousava
dizer – e, menos ainda, escrever – sem a certeza absoluta de que as suas
afirmações eram apoiadas em dados certos, indesmentíveis. Tinha, aliás, a
consciência plena de que, trabalhando com arquivos, estes nem sempre são
fiáveis. Deixou essa advertência bem expressa num dos seus raros escritos sobre
a metodologia da História – ou, mais precisamente, sobre as cautelas ter na
consulta dos arquivos policiais. Daí a sua preocupação obsessiva em confirmar
nomes e datas, cruzar fontes esparsas, garantir a fidedignidade das informações
reunidas. A sua insegurança revelou-se, afinal, a maior qualidade de uma
historiadora incapaz de distorcer os factos em favor de teses preconcebidas ou
orientações político-ideológicas. Eis um exemplo acabado de como fazer
das fraquezas forças, seguindo os ensinamentos dos grandes mestres do aikido. Nunca
nos devemos esquecer de que, para ela, a dedicação ao Budo era tão importante
como o culto que rendia a Clio. Entregou-se, durante quase 50 anos, à prática
das artes marciais. Convém lembrá-lo, aos mais incautos: falamos de uma
socióloga industrial e de uma historiadora da classe operária que era cinto
negro, terceiro dan, de aikido, e primeiro dan de iaido (sabre). Também aqui
tinha um enorme gozo em ajudar os outros, ensinando-lhes os rudimentos de uma arte
exigentíssima, explicando-lhes a posição certa para alcançar o correcto
equilíbrio do corpo e do espírito. Que o digam o António e a Maria do Mar, os
mais jovens e queridos dos seus discípulos.
Costa da Caparica/Fonte da Telha, Março de 2016
Fotografia de Pedro Reis
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Deixou-se para último aquilo que é primeiro. Estas linhas foram escritas porque alguém me fez chegar às mãos o curriculum vitae de Maria de Fátima da Silva Patriarca, nascida no Couço em 1944, falecida em Lisboa na manhã de 11 de Março de 2016. Como os operários rebeldes da Marinha Grande, esse alguém tem um rosto e um nome: Jorge Almeida Fernandes, jornalista. Casaram em 1965, na Igreja de São João de Brito, Lisboa. Estiveram juntos, portanto, mais de cinco décadas. Num sábado de tempo incerto, lançou-lhe as cinzas ao mar – e, com elas, um pouco de todos nós.
António Araújo
(uma
versão mais reduzida deste texto irá brevemente ser publicada na revista Análise Social, num texto escrito a convite de José Manuel Sobral, a quem agradeço esse gesto – mais um! – de grande e generosa amizade)
António - Conheci a Fátima Patriarca e gostei imenso do tributo que lhe faz. Sabia a maior parte do CV. Fiquei, contudo, admirada de ela se ter licenciado em Sociologia no ISCTE no mesmo ano que eu - o primeiro curso de Sociologia em Portugal. Sempre a considerei uma professora. Embora a história do movimento operário e industrial não me interessasse particularmente. A sua humildade e bondade eram excepcionais num meio onde impera o narcisismo.
ResponderEliminarMaria Teresa Mónica
Belo texto, bela homenagem, António.
ResponderEliminarGrande Historiadora! Grande Mulher!
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