quarta-feira, 4 de maio de 2016

Eça e os judeus (1).


 
 
Os judeus e a questão judaica na obra de Eça de Queiroz
 





1.     Eça e os judeus
 
Embora na vida do próprio romancista quase não tenha havido contactos pessoais com judeus − exceptuando o único judeu luso que participou nas escandalosas conferências do Casino em 1871, ou seja, Salomão Sáraga (Lisboa, 1842 - idem, 19-III-1900) e o financeiro Carlos Lima Mayer [1] − nem se lhe conheçam outras relações com quaisquer meios hebraicos numa fase em que, na capital lusa, essa comunidade começava a tomar existência jurídica institucional.[2] Também na sua longa vida de expatriado profissional como cônsul em Cuba, Inglaterra e França se lhe conhecem especiais relações com figuras judias, durante os 27 anos que passaria no estrangeiro por via da sua carreira diplomática, dos quais 13 na Inglaterra e 12 em França, onde morreria. Em suma, este “estrangeirado”[3] (Fialho chamar-lhe-ia mesmo um “estrangeiro”, falando do seu “despaisamento”, considerando até que o autor d’O Crime do Padre Amaro seria “um escritor europeu, não um escritor nacional”), voltando de férias a Portugal por curtos períodos de férias de dois, três ou quatro meses. Nada disto torna secundário o seu interesse por questões acerca do judaísmo e a sua especial e crescente preocupação quanto à vaga de anti-semitismo, sobretudo na Alemanha do século XIX, a partir dos anos 80, quando vive, desde 1874, como cônsul na Inglaterra, país no qual uma das figuras de maior relevo na vida política fora o judeu Benjamin Disraeli, cuja obra romanesca examinaria numa extensa crónica, relacionando a sua existência literária com a destacada figura política deste “extraordinário judeu” que foi “um homem de estado que fez romances”, embora fosse, paradoxalmente, “a personificação, a encarnação de tudo quanto é contrário ao temperamento, às maneiras, ao gosto inglês”, tendo sido de facto ele quem fez da Inglaterra “a potência dominante do mundo, uma espécie de Império Romano” que tomou o nome de imperialismo, essa “ideia querida a todo o inglês”.[4]



A Cidadela de David, 1898
 


 Eça teve um conhecimento directo de Terra Santa, graças à sua peregrinação turística de 23 de Outubro de 1869 a 3 de Janeiro de1870, em companhia do futuro cunhado Luís de Castro, conde de Resende, para assistir à inauguração do canal de Suez, viagem que lhe permitiria conhecer o Cairo, Port-Said, Jafa e Jerusalém –, publicando algumas crónicas no Diário de Notícias, experiência de que se serviria, vários anos mais tarde, para compor um dos seus melhores e mais originais romances, A Relíquia (1887), no qual o Egipto[5] e a Palestina seriam cenários da acção das suas personagens, obra cuja atitude irreverente em relação ao relato da paixão e morte de Jesus Cristo lhe valeu não ser premiado no concurso literário da Academia das Ciências.[6]
 
Esboço de mapa da Palestina desenhado por Eça de Queiroz

 
 
 

2. Eça na Terra Santa
 
O jovem Eça da peregrinação ao Médio Oriente árabe e judeu traduziu-se, como se disse, em crónicas jornalísticas no Diário de Notícias e, mais tarde, na edição póstuma de um volume, o Egipto. Notas de Viagem (1926) e ainda dos apontamentos manuscritos durante o circuito palestiano-hebraico intitulado Notas soltas (1966), tudo isto numa fase histórica na qual o povo da Aliança ainda não aderira ao sionismo que Theodor Herzl lançaria como ideal do regresso dos judeus à sua terra de origem, o Eretz Israel, e que culminaria, em 1948, na fundação do Estado de Israel.[7] O Eça, desembarcado em Jaffa em 1869 para ir visitar Jerusalém, estava ainda impregnado de alguns estereótipos negativos sobre os judeus, como se pode constatar folheando o referido apanhado de notas de viagem intitulado Notas soltas (1966), no qual evoca, não a esplêndida cidade do longínquo passado judeu, mas a degradada e miserável cidade de então, tão suja e indigente como a veria o próprio Theodor Herzl, em 1898, autor do Estado dos Judeus (1896), propondo ao povo errante o fim da Diáspora e o regresso ao seu território inicial, restaurando o estado milenarmente perdido, e que lançara em Basileia, em 1897, o seu primeiro congresso sionista. Quando o novo Moisés do seu povo judeu visitou Jerusalém pela primeira vez, em 1898, o austríaco descreveu-a num texto do seu diário que pouco diverge dos que mostraram os mais célebres viajantes europeus do século XIX, desde Chateaubriand ao romancista d´A Relíquia.[8] Eis como Eça a descreve Jerusalém nos seus apontamento manuscritos de 1869:
“As ruas são estreitas, lajeadas de pedras, cheias de lama, escorregadias, inclinadas, sujas, miseráveis.
É a miséria da população, o desleixo oriental, a s contradições violentas do clima. Daí a melancolia de Jerusalém. (…) Tudo o que se vende ali está numa promiscuidade miserável. E as ruas são as mais povoadas, ordinariamente. Nas grandes ruas abertas, há um silêncio, uma solidão de cidade saqueada,. (…) O bairro judeu é o mais miserável. Nada tão imundo, tão devastado, tão cheio de negrura. Parece incrível que homens com sensações e princípios possam voluntariamente viver naquela imundície.
É todavia o bairro mais curioso, mais vivo, mais cheio de multidão. Mas só nalgumas ruas principais onde se encontra a verdadeira confusão das raças. É primeiramente o Judeu. São belas pela energia e pureza das linhas aquelas fisionomias. Pálidos, direitos, de traços duramente aquilinos. Expressão sombria, concentrada, grandes barbas, com ódio nos seus agudos olhos negros.(…)
Avareza, ódio, astúcia, fanatismo, orgulho, as figuras têm alguns destes poderosos e activos elementos da vida moral.” (Notas soltas)[9]




Túmulo de Absalão, 1898


 
Menos de vinte anos depois, ao fazer a sua personagem Teodorico Raposo, o “Raposão”, chegar a Jerusalém, Eça descreve deste jeito o olhar desiludido do visitante luso ao divisar, da janela do quarto que partilha com o erudito alemão no Hotel do Mediterrâneo, a  “cidade do senhor”  sob uma chuva miudinha:
“(…) era uma vastidão infindável de telhados em terraço, lúgubres e cor de lodo, com uma cupulazinha de tijolo em forma de forno, e longas varas para secar farrapos, desmantelados, misérrimos, pareciam desfazer-se na água lenta que os alagava. Do outro elevava-se uma encosta atulhada de casebres sórdidos, com verduras de quintal, esfumadas, arrepiadas na névoa húmida; por entre eles, torcia-se uma viela esgalgada, em escadinhas, onde constantemente se cruzavam fardes de alpercatas sob os seus guarda-chuvas, sombrios judeus de melenas caídas, ou algum vagaroso beduíno arregaçando o seu albornoz…Por cima pesava o céu pardacento. E assim da minha janela me aparecia a velha Sião, a bem edificada, brilhante de claridade, alegria da térrea, e formosa entre as cidades.
-Isto é um horror, Topsius! Bem dizia o Alpedrinha! Isto é pior do que Braga, Topsius! E nem um passeio, nem um bilhar, nem um teatro! Nada! Olha que cidade para viver Nosso Senhor!”[10]
 

 
 

3. Raposão refaz a viagem de Eça à Terra Santa
 
Na obra A Relíquia (1887), Eça recorreria às recordações da sua própria viagem ao oriente em 1869-70, servindo-se como narrador de Teodorico Raposo, o “Raposão”, jovem pícaro e recalcado erótico que vive em Lisboa uma falsa vida de devoção religiosa toda hipócrita, para agradar à sua beatíssima tia, D. Patrocínio das Neves, “hedionda velha” e “medonha senhora”, ressequida viúva do comendador Godinho, rodeada de três sacerdotes que lhe cobiçam os bens, inventando o seu sobrinho uma peregrinação à Terra Santa com o alegado fito de lá trazer uma santa relíquia para aquela parente, de modo a poder “regalar a carne” e “fartar o bandulho”. O recalcado Raposão embora só em parte conseguisse o seu libidinoso intento mediante uma ardente aventura vivida com uma inglesa, luveira em Alexandria, no Egipto, trazendo da peregrinação pelas terras nazarenas um relíquia feita de espinhos, alegadamente a mesma com que Jesus fora cingido no pretório romano e que ele, de volta a Lisboa, entregaria à “titi”, cometendo porém o catastrófico e freudiano lapso de exibir solenemente, no oratório do palácio do campo de Santana, a camisa de dormir da loira Mary, sendo expulso e deserdado pela parente, tão gravemente ofendida por esta horrível confissão das “relaxações”(termo recorrente de D. Patrocínio) praticadas pelo sobrinho na Terra Santa. Se este gag da troca cruel arruína a vida do Raposão,[11] o facto é que ele, na sua peregrinação religiosa, habitando oniricamente e por algumas horas a lendária Sião dos tempos de Pilatos e Herodes, pudera assistir presencialmente à paixão de Jesus no tempo do imperador Tibério, na companhia do erudito professor da Universidade de Bona, o que leva Eça a contrapor à degradada, mísera e suja cidade que ele mesmo visitara sub specie temporis, em 1869, com aquela longínqua urbe na qual ocorreu a crucificação do nazareno, se bem que nem Teodorico nem Topsius  tivessem assistido ao momento da morte deste na cruz. E é aqui, neste sonho que permite viajar no tempo, que Raposão, o “Evangelista” que fuma cigarros nos descreve a outra Jerusalém, a Ariel imortal de David e Salomão, na qual Jesus padeceu e foi crucificado, enterrado e, por fim, graças a um grupo de mulheres, alegadamente ressurrecto dum túmulo que fora encontrado vazio. O que Teodorico Raposão divisa no seu sonho é o esplêndido “velho burgo de David”:
“Era um tropel de casas cerradas, caiadas de fresco sobre o azul, descendo como um rebanho de cabras brancas para um vale ainda em sombra, onde uma praça monumental se abria em arcarias; depois trepava, fendido em ruas tortuosas, a espalhar-se sobre a colina fronteira e Acra, rica, com palácios e cisternas redondas que luziam à semelhantes a broquéis de aço. Mais longe ainda, para além dos velhos muros derrocados, era o bairro novo de Bezeta, em construção; o circo de Herodes arredondava as suas arcarias; e os jardins de Antipas estiravam-se por um último outeiro, até junto ao túmulo de Helena, assoalhados frescos regados pelas águas doces de Enrogel.
-Ah, Topsius, que cidade! – murmurei maravilhado.
-Rabi Eleazer diz que não viu jamais cidade bela, quem não viu Jerusalém!”
E as turbas que correrem para assistir à celebração do Pessach na cidade, gritavam:
“-Meus passos vão todos para ti, ó Jerusalém! Tu és perfeita Quem te ama conhece a abundância
E eu bradava também, transportado:
-Tu és o palácio do Senhor, ó Jerusalém, e repouso do meu coração.
 (…). Alguns permaneciam imóveis, assombrados, ante os esplendores de Sião e quentes lágrimas de fé, de amor piedoso, rolavam sobre barbas incultas e feras. (…) a alma inteira de Judá abismava-se no esplendor do santuário; e braços magros erguiam-se freneticamente para estreitar Jeová.” A esta evocação da esplêndida cidade de David e Salomão, Eça acrescenta a passagem pela antiga Jerusalém, uma vez mais em contraste total com a velha cidade que o peregrino luso encontrara no dia da sua chegada. E logo em seguida, Raposão e Topsius ouvem a multidão judia gritar que o rabi Jeshua foi preso, o que dá início à longa cena do seu julgamento, dos ultrajes feitos ao nazareno e sua crucificação no Gólgota, o que fará do sobrinho da Titi do Campo de Santana “uma testemunha inédita da Paixão”: ou seja, como o observa o próprio Raposão, ele converte-se em “S. Teodorico Evangelista” – detalhe que escandalizara Pinheiro Chagas, deplorando, nas colunas do Repórter, em resposta dirigida ao romancista não-galardoado, que este tivesse feito de “um personagem burlesco e imbecil, o evocador absurdo do drama evangélico, transformando a estranheza que esse disparate me inspirara no desejo que me atribui der querer uma ópera pândega em vez de um grande drama histórico.”
Após o julgamento de Jesus no pretório de Pilatos, Eça inclui uma curta cena, a de compra de um cesto de figos a um mercador judeu, o que permite que Raposão, depois dos salamaleques entre ele e o mercador, lhe brade irritado: “− Irra, ladrão!”, já que aquele lhe pedira por cada figo um tostão da moeda real lusitana, o que não deixa de lembrar a cena de Carlos da Maia indignado com o preço que o comerciante tio Abraão lhe pede por um quadro no bric-à-brac da rua da Alegria, como adiante veremos. Uma visita de Teodorico e Topsius ao Templo evita que os dois europeus assistam à crucificação de Jesus no Calvário, pois quando chegam a esta  colina já “o homem da Galileia, incomparável amigo dos homens, arrefecia na sua cruz e para sempre se apagava aquela pura voz do amor e da espiritualidade”, vítima do sinédrio por ordem do Templo, interpretação que constitui uma das chaves da atitude do romancista em relação à responsabilidade essencial pela morte do nazareno: “ali ficava o templo que o matava, rutilante e triunfal, com o balar dos seus gados, o estridor dos seus sofismas, a usura sob os pórticos, o sangue sob as aras, a iniquidade do seu duro orgulho, a importunidade do seu perene incenso… Então, com os dentes cerrados, mostrei o punho a Jeová e à sua cidade, e bradei:
-Arrasados sejais!”
Noutro local Teodorico explica quem são os responsáveis por aquela morte: “os padres, os patrícios e os ricos crucificaram-no!” A visita ao túmulo vazio e a apregoada ressurreição de Jesus feita pelas mulheres que o veneravam encerra o ciclo desta obra sobre o enigma da morte de Jesus, esse sonho  sobre Cristo, que ocupa 115 páginas duma obra de 349 páginas, ou seja, um terço do romance. “E assim o amor de uma mulher (Maria de Magdala) muda a face do mundo, e dá uma religião mais à humanidade!” Resta a Topsius e Teodorico regressarem ao seu século, pondo fim a este sonho sonhado pelo Raposão. Diz-lhe Topsius: “-Teodorico, a noite termina, vamos partir de Jerusalém!...A nossa jornada ao passado acabou…A lenda inicial do cristianismo está feita, vai findar o mundo antigo!” E partem então os dois, regressados ao seu positivista século XIX, a caminho da Galileia e Nazaré, voltando ainda a Jerusalém, encontrando de novos seus franciscanos de alpergatas e os judeus magros de suas melenas, fazendo a moderna Sião lembrar “uma pobre coberta de piolhos, que para morrer se embrulha a um canto nos farrapos do seu mantéu”, nessa Palestina dominada pelos otomanos, na qual o pícaro luso, com  a ajuda do douto historiador alemão, que cobre a relíquia com a garantia do seu saber,  conseguiria a santa relíquia, composta a partir de oito galhos duma “árvore medonha” e “repelente”  − fora com um galho igual, arranjado em forma de coroa, que um centurião romano coroara por sarcasmo ultrajante a cabeça de Jesus[12] -, assim como atafulha num caixote umas tantas outras reliquiarias, com as quais intentaria garantir a herança da Titi, a seca viúva Dona Patrocínio, vivendo no seu palácio no nº 47 do Campo de Santana, em Lisboa, assediada por um trio de sinistros padres fariseus, Negrão,  Pinheiro e Justino. Restava tomar o vapor para o Egipto e dali para Lisboa, até que o perigoso embrulho com a camisa de Mary traria com ele a terrível anagnosiris desta tragicomédia de enganos,  a evidência dos pecados do Raposão durante aquela libidinosa peregrinação à Terra Santa e o dano da sua fortuna de embusteiro.
 
Cemitério Judeu no Monte das Oliveiras, 1898



 




[1] Veja-se o nosso estudo/antologia As Conferências do Casino e o Socialismo em Portugal, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1984, maxime pp.83-84 (biografia de Sáraga), pp.81-85 (intervenções de S. Sáraga contra ao decreto do governo proibindo a continuação das conferências), pp.316-330 (discursos de M. Pinheiro Chagas no parlamento, justificando a medida censória do governo de Ávila e Bolama), p.329 (texto da portaria do marquês de Ávila, de 26-VI-1871, interditando a continuação das conferências do Casino Lisbonense. Pertencendo a uma família hebraica estabelecida em Portugal no século XIX, Sáraga viveu algum tempo em Paris, ensinando português, travando relações com Renan (1823-1892) e fundando ali uma revista portuguesa ilustrada, Os Dois Mundos (1877-1881), onde colaboraram Antero, Oliveira Martins, J.Batalha Reis, Júlio César Machado, Paul Féval, Teixeira de Queiroz, Daudet, Ramalho Ortigão, Zola, Bulhão Pato, etc., sendo também proprietário da obra A Europa Pitoresca. Traduziu diversas obras francesas, como a Astronomia popular de Camille Flammarion e César Cascabel de J.Verne. Eça nunca trocou cartas com este curiosa figura do judaísmo luso. Outro membro da comunidade judia lusa, oriunda de Nancy (Lorena), foi o médico Carlos Lima Mayer (Lisboa, 1846 – idem, 1910), colega de Antero e Eça  na Universidade de Coimbra, onde estudara Medicina, embora acabasse por concluir o seu curso em na Bélgica e em Paris, vindo a trocar a carreira médica pela gestão de empresas financeiras em Moçambique, Angola e Açores. Participou no grupo jantante dos “Vencidos da Vida”, suicidando-se em 28-II-1910. Eça enviou-lhe, em 1897, uma divertida carta toda em verso, escrita em francês, na qual menciona os seus grandes negócios: “Tu files encore des jours profitables et gais/ Façonnant Mozambique, achetant des cartels,/ Revassant d’Infini et des fonds portugais…” (Eça, Correspondência, Porto, Lello & Irmão Editores, 1923, pp.249-51, p.251). Mayer visitava amiúde a família Eça quando esta morava em Paris, na av. du Roule.


[2] Só em 18-V-19044 se inauguraria um edifício público do culto judaico, junto da rua Alexandre Herculano, em Lisboa, a sinagoga Shaaré Tikvah, risco do arquitecto Miguel Ventura Terra.


[3] Veja-se o capítulo “Eça, o estrangeirado”, no nosso livro Eça de Queiroz e o seu Tempo, Lisboa, Livros Horizonte,1972, pp.104-6.


[4] Veja-se Eça, Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres, 2ª ed., Lisboa, Livros do Brasil, s.d., pp.85-104.


[5] O volume O Egipto. Notas de Viagem, seria publicado em 1926, com uma apresentação de José Maria,  filho do romancista, na Livraria Chardron, de Lello & Irmão, Porto. Veja-se a sua recente reedição, com prefácio (pp.7-11) e notas de Alfredo Campos Matos, além da primitiva apresentação do filho do romancista (pp.13-20), O Egipto, Colares, Feitoria dos Livros, 2015, ilustrado com fotos e gravuras; há uma foto de Eça ao lado do conde de Resende, nessa viagem ao Oriente, p.194. Na obra ilustrada Eça de Queiroz – Fotobiografia, de A. Campos Matos, Lisboa, Caminho, 2007, há um mapa dessa vagem de 1869-70, p.83.


[6] Veja-se o capítulo “A Relíquia e o «divertido caso» do concurso D. Luís” no nosso Eça de Queiroz e o seu Tempo, pp.197-9. Veja-se ainda o verbete “Academia”, de A. Campos Matos, no seu Dicionário de Eça de Queiroz, Lisboa, Caminho, 2ªed., 1993, pp.31-36. O Prémio D. Luís da Academia foi dado em 1887 à medíocre peça O Duque de Viseu, do poeta Henrique Lopes de Mendonça, escritor menor, hoje apenas recordado como autor da letra do Hino nacional -, graças sobretudo ao veto do “brigadeiro” Pinheiro Chagas, um dos alvos predilectos dos sarcasmos lançados pelos jovens estudantes na querela do Bom Senso e do Bom Gosto, anunciadora da irrupção duma nova geração literária coimbrã, reunida depois em Lisboa no Cenáculo presidido por Antero e nas referidas conferências no Chiado lisboeta, que seriam interrompidas pelo governo d Ávila de Bolama desde o incómodo anúncio de uma conferência de Salomão Sáraga, cuja judeidade e o facto de se atrever a referir Renan incomodavam os poderes. Os historiadores críticos de Jesus, se chamava esta conferência que cheirava a enxofre herético aos políticos do nosso regime constitucional, servindo de pretexto para o nosso establishment governamental mandar cessar aquelas palestras de jovens dissidentes, ainda por cima suspeitos de estarem ligados a famigerada I Internacional, cuja fundação ocorrera, em 1864, em Londres, sob os patrocínios antagónicos de Marx e Bakunine, estando alguns dos setentistas em vias de criarem entre nós uma delegação da primeira Associação Internacional dos Trabalhadores.


[7] Veja-se a excelente biografia de Herzl por Ernst Pawel, The Labyrinth of Exile. A Life of Theodor Herzl, N. Iorque, Farrar, Straus & Giroux, 1989, maxime p. 376 e ss (Th.H. visita a Palestina em Outubro de 1898, encontrando-se com Guilherme II perto de Jaffa e, depois, em Jerusalém, procurando convencer o imperador alemão a criar um protectorado alemão judaico na Palestina, em território otomano, ideia com a qual o Kaiser simpatizava.


[8] Veja-se a antologia de Jean-Claude Berchet, Le Voyage en Orient. Anthologie des Voyagers français dans le Levant au XIXe siècle, Paris, Laffont, col. Bouquins, 1985 (Chateaubriand: pp.589-610, excerto do seu livro Itinéraire de Paris à Jérusalem; sobre esta cidade: pp.607-10).


[9] Eça, Folhas soltas. Palestina, Alta Síria, Sir Galahad, Os Santos, Porto, Lello & Irmão Editores, 1966, pp.33 e 35-36


[10] Eça, A Relíquia. Sobre a Nudez forte da Verdade – o Manto diáfano da Fantasia, Porto, Lello & Irmão, s.d., p.114. Sobre este romance veja-se o nosso “Eros contra Cristo: de Lisboa a Jerusalém e volta. Estudo sobre A Relíquia de Eça de Queiroz” in  Eça, Antero e Victor Hugo. Estudos sobre a cultura portuguesa dos séc. XIX, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2001, pp.11-49. O que Herzl escreveria, em 1898, no seu diário, sobre a miséria e sujidade da degradada cidade quase nada difere do retrato que Eça deixou nas suas notas de turista:  “Quando eu me lembrar de ti nos dias a virem, ó Jerusalém, não será com prazer. O escuro sedimento de dois milénios cheios de intolerância desumana e sujidade infesta as avenidas com o desagradável mau cheiro dos seus casebres.(…). Se alguma vez obtivermos Jerusalém e se na altura eu ainda estiver capaz de fazer alguma coisa por isso, a primeira coisa que faria seria limpá-la. Eu limparia tudo o que não se possa qualificar de sagrado, construiria casa para os trabalhadores fora da cidade, eliminando os casebres, arrasando-os, queimando todas as ruínas não-sagradas e transferindo para outro local os seus bazares. Então, retendo embora o velho estilo arquitectónico na medida do possível, erigiria uma cidade confortável, arejada com esgotos próprios em redor dos locais sacros.(…). Estou convencido de que uma magnífica Nova Jerusalém podia ser criada fora das velhas muralhas da cidade. A velha Jerusalém ficaria Lourdes e Meca e Yerushaleim. Uma cidade muito bela e elegante seria então uma possibilidade real.”[10] Quem conhece a actual cidade de Jerusalém, sobretudo depois da sua israelização integral em 1967, sabe que esta fervorosa profecia do fundador do sionismo se havia de realizar, tornando-se, de facto, a cidade de Salomão uma urbe airosa, belíssima e de uma extrema limpeza.


[11] Escorraçado do Campo de Santana, levando apenas consigo algumas reliquiarias trazidas da Terra Santa, Teodorico, instalado agora numa casa de hóspedes, sobrevive vendendo frasquinhos de água do Jordão, pedacinhos da billha com que Nossa Senhora ia à fonte, ferraduras do burrinho em que fugira a Santa Família, palhinhas do presépio, tabuinhas aplainadas por São José, raminhos secos de flores de Nazaré, pedaços da túnica da Virgem Maria, cordéis das sandálias de São Pedro. pregos que tinham sido usados na crucificação, etc. Saturado o mercado deste negócio das relíquias, Teodorico, sem pão, encontra um dia Crispim, antigo colega da faculdade, dono duma fábrica de fiação na Pampulha, que o socorre, lhe dá emprego, acabando o Raposão por casar com a zarolha Jesuína, irmã do amigo. Foi então pai, teve carruagem, recebeu a comenda de Cristo e comprou uma das propriedades que fora da Titti. E só lamentava que, no oratório da medonha senhora sua tia, não tivera a coragem de afirmar, ao exibir a camisa de dormir de Mary, que esta era a camisa de Santa Maria Madalena, que ela lhe dera no deserto,  e que o papel com a dedicatória “Ao meu portuguesinho valente, pelo muito que gozámos. M.M.” significava apenas o muito que o peregrino gozara em mandar à santa as suas orações para o céu e o muito que a santa gozara no céu em receber aquelas orações, em suma, Raposão errara por lhe ter faltado “esse descarado heroísmo em afirmar que, batendo na Terra com pé forte, ou palidamente elevando os olhos ao Céu – cria, através da universal ilusão, ciências e religiões”(Relíquia, itálico do original). Sublinhemos que neste romance, o decisivo diálogo que Teodorico tem com Jesus, representado numa imagem encaixilhada, no quarto alugado na travessa da Palha, na qual o tunante acusa o crucificado de ser o responsável pelas suas desditas, e a imagem lhe reponde que todo o seu desastre resultara apenas das mentiras do incrédulo e devasso Raposão que se fingira devoto para receber os bens da titi Patrocínio, fingimento e hipocrisia farisaicas que se revelaram afinal inúteis, acrescentando que a figura daquela imagem não é Jesus da Nazaré, “nem outro Deus criado pelos homens…Sou anterior aos deuses transitórios: eles, dentro de mim nascem, dentro em mim se dissolvem, e eternamente permaneço em torno deles e superior a eles, concebendo-os e desfazendo-os, no perpétuo esforço de realizar fora de mim o Deus absoluto que em mim sinto. Chamo-me consciência: sou neste momento a tua própria consciência reflectida fora de ti, no ar  e na luz, e tomando ante teus olhos a forma familiar sob a qual tu, mal educado e pouco filosófico, estás habituado a compreender-me..” Em suma, o pseudo-Jesus da litografia com a qual Raposão dialoga fora apenas a voz da Consciência universal de que Teodorico seria, de algum modo, um reflexo, sob a forma de autoconsciência moral e ética. Veja-se, sobre este importante episódio, o que dizemos no nosso citado estudo “Eros contra Cristo”, pp.22-3.

[12] A cena do fabrico da relíquia de espinhos com galhos secos duma árvore “medonha” e “repelente árvore”, com uma casca oleosa de pele negra, com a qual Teodoro dialoga, sem que ela lhe responda, ocupa várias páginas importantes sobre a simbólica da coroa que Raposão confecciona para a oferecer à Titi, sobretudo se tivermos em conta o cruel lapso da sua troca final com a camisa de dormir da luveira Mary.
 
 
 
(continua)
 
 
João Medina


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