Os judeus e a questão judaica na obra de Eça de Queiroz
1. Eça e os judeus
Embora
na vida do próprio romancista quase não tenha havido contactos pessoais com
judeus − exceptuando o único judeu luso que participou nas escandalosas conferências
do Casino em 1871, ou seja, Salomão Sáraga (Lisboa, 1842 - idem, 19-III-1900) e o financeiro Carlos Lima Mayer [1] − nem
se lhe conheçam outras relações com quaisquer meios hebraicos numa fase em que,
na capital lusa, essa comunidade começava a tomar existência jurídica institucional.[2] Também
na sua longa vida de expatriado profissional como cônsul em Cuba, Inglaterra e França
se lhe conhecem especiais relações com figuras judias, durante os 27 anos que
passaria no estrangeiro por via da sua carreira diplomática, dos quais 13 na
Inglaterra e 12 em França, onde morreria. Em suma, este “estrangeirado”[3]
(Fialho chamar-lhe-ia mesmo um “estrangeiro”, falando do seu “despaisamento”,
considerando até que o autor d’O Crime do
Padre Amaro seria “um escritor europeu, não um escritor nacional”), voltando
de férias a Portugal por curtos períodos de férias de dois, três ou quatro
meses. Nada disto torna secundário o seu interesse por questões acerca do
judaísmo e a sua especial e crescente preocupação quanto à vaga de anti-semitismo,
sobretudo na Alemanha do século XIX, a partir dos anos 80, quando vive, desde
1874, como cônsul na Inglaterra, país no qual uma das figuras de maior relevo
na vida política fora o judeu Benjamin Disraeli, cuja obra romanesca examinaria
numa extensa crónica, relacionando a sua existência literária com a destacada
figura política deste “extraordinário judeu” que foi “um homem de estado que
fez romances”, embora fosse, paradoxalmente, “a personificação, a encarnação de
tudo quanto é contrário ao temperamento, às maneiras, ao gosto inglês”, tendo
sido de facto ele quem fez da Inglaterra “a potência dominante do mundo, uma
espécie de Império Romano” que tomou o nome de imperialismo, essa “ideia
querida a todo o inglês”.[4]
Eça teve um conhecimento directo de Terra Santa, graças à sua peregrinação turística de 23 de Outubro de
2. Eça na Terra Santa
O jovem Eça da
peregrinação ao Médio Oriente árabe e judeu traduziu-se, como se disse, em crónicas
jornalísticas no Diário de Notícias e,
mais tarde, na edição póstuma de um volume, o Egipto. Notas de Viagem (1926) e ainda dos apontamentos manuscritos
durante o circuito palestiano-hebraico intitulado Notas soltas (1966), tudo isto numa fase histórica na qual o povo
da Aliança ainda não aderira ao sionismo que Theodor Herzl lançaria como ideal
do regresso dos judeus à sua terra de origem, o Eretz Israel, e que culminaria, em 1948, na fundação do Estado de
Israel.[7] O Eça,
desembarcado em Jaffa em 1869 para ir visitar Jerusalém, estava ainda impregnado
de alguns estereótipos negativos sobre os judeus, como se pode constatar folheando
o referido apanhado de notas de viagem intitulado Notas soltas (1966), no qual evoca, não a esplêndida cidade do longínquo
passado judeu, mas a degradada e miserável cidade de então, tão suja e indigente
como a veria o próprio Theodor Herzl, em 1898, autor do Estado dos Judeus (1896), propondo ao povo errante o fim da
Diáspora e o regresso ao seu território inicial, restaurando o estado
milenarmente perdido, e que lançara em Basileia, em 1897, o seu primeiro
congresso sionista. Quando o novo Moisés do seu povo judeu visitou Jerusalém pela
primeira vez, em 1898, o austríaco descreveu-a num texto do seu diário que pouco
diverge dos que mostraram os mais célebres viajantes europeus do século XIX,
desde Chateaubriand ao romancista d´A
Relíquia.[8] Eis como Eça a descreve Jerusalém
nos seus apontamento manuscritos de 1869:
“As ruas são estreitas,
lajeadas de pedras, cheias de lama, escorregadias, inclinadas, sujas,
miseráveis.
É a miséria da população,
o desleixo oriental, a s contradições violentas do clima. Daí a melancolia de
Jerusalém. (…) Tudo o que se vende ali está numa promiscuidade miserável. E as
ruas são as mais povoadas, ordinariamente. Nas grandes ruas abertas, há um silêncio,
uma solidão de cidade saqueada,. (…) O bairro judeu é o mais miserável. Nada
tão imundo, tão devastado, tão cheio de negrura. Parece incrível que homens com
sensações e princípios possam voluntariamente viver naquela imundície.
É todavia o bairro mais
curioso, mais vivo, mais cheio de multidão. Mas só nalgumas ruas principais
onde se encontra a verdadeira confusão das raças. É primeiramente o Judeu. São
belas pela energia e pureza das linhas aquelas fisionomias. Pálidos, direitos,
de traços duramente aquilinos. Expressão sombria, concentrada, grandes barbas, com
ódio nos seus agudos olhos negros.(…)
Avareza, ódio, astúcia,
fanatismo, orgulho, as figuras têm alguns destes poderosos e activos elementos
da vida moral.” (Notas soltas)[9]
Menos de vinte anos
depois, ao fazer a sua personagem Teodorico Raposo, o “Raposão”, chegar a
Jerusalém, Eça descreve deste jeito o olhar desiludido do visitante luso ao divisar,
da janela do quarto que partilha com o erudito alemão no Hotel do Mediterrâneo,
a “cidade do senhor” sob uma chuva miudinha:
“(…) era uma vastidão infindável
de telhados em terraço, lúgubres e cor de lodo, com uma cupulazinha de tijolo
em forma de forno, e longas varas para secar farrapos, desmantelados,
misérrimos, pareciam desfazer-se na água lenta que os alagava. Do outro
elevava-se uma encosta atulhada de casebres sórdidos, com verduras de quintal,
esfumadas, arrepiadas na névoa húmida; por entre eles, torcia-se uma viela
esgalgada, em escadinhas, onde constantemente se cruzavam fardes de alpercatas
sob os seus guarda-chuvas, sombrios judeus de melenas caídas, ou algum vagaroso
beduíno arregaçando o seu albornoz…Por cima pesava o céu pardacento. E assim da
minha janela me aparecia a velha Sião, a bem edificada, brilhante de claridade,
alegria da térrea, e formosa entre as cidades.
-Isto é um horror, Topsius!
Bem dizia o Alpedrinha! Isto é pior do que Braga, Topsius! E nem um passeio,
nem um bilhar, nem um teatro! Nada! Olha que cidade para viver Nosso Senhor!”[10]
3. Raposão refaz a viagem de Eça à Terra Santa
Na obra A Relíquia (1887), Eça recorreria às
recordações da sua própria viagem ao oriente em 1869-70, servindo-se como
narrador de Teodorico Raposo, o “Raposão”, jovem pícaro e recalcado erótico que
vive em Lisboa uma falsa vida de devoção religiosa toda hipócrita, para agradar
à sua beatíssima tia, D. Patrocínio das Neves, “hedionda velha” e “medonha
senhora”, ressequida viúva do comendador Godinho, rodeada de três sacerdotes
que lhe cobiçam os bens, inventando o seu sobrinho uma peregrinação à Terra Santa
com o alegado fito de lá trazer uma santa relíquia para aquela parente, de modo
a poder “regalar a carne” e “fartar o bandulho”. O recalcado Raposão embora só
em parte conseguisse o seu libidinoso intento mediante uma ardente aventura
vivida com uma inglesa, luveira em Alexandria, no Egipto, trazendo da
peregrinação pelas terras nazarenas um relíquia feita de espinhos, alegadamente
a mesma com que Jesus fora cingido no pretório romano e que ele, de volta a
Lisboa, entregaria à “titi”, cometendo porém o catastrófico e freudiano lapso
de exibir solenemente, no oratório do palácio do campo de Santana, a camisa de
dormir da loira Mary, sendo expulso e deserdado pela parente, tão gravemente
ofendida por esta horrível confissão das “relaxações”(termo recorrente de D. Patrocínio)
praticadas pelo sobrinho na Terra Santa. Se este gag da troca cruel arruína a vida do Raposão,[11] o
facto é que ele, na sua peregrinação religiosa, habitando oniricamente e por
algumas horas a lendária Sião dos tempos de Pilatos e Herodes, pudera assistir presencialmente
à paixão de Jesus no tempo do imperador Tibério, na companhia do erudito
professor da Universidade de Bona, o que leva Eça a contrapor à degradada, mísera
e suja cidade que ele mesmo visitara sub
specie temporis, em 1869, com aquela longínqua urbe na qual ocorreu a crucificação
do nazareno, se bem que nem Teodorico nem Topsius tivessem assistido ao momento da morte deste na
cruz. E é aqui, neste sonho que permite viajar no tempo, que Raposão, o
“Evangelista” que fuma cigarros nos descreve a outra Jerusalém, a Ariel imortal
de David e Salomão, na qual Jesus padeceu e foi crucificado, enterrado e, por fim,
graças a um grupo de mulheres, alegadamente ressurrecto dum túmulo que fora
encontrado vazio. O que Teodorico Raposão divisa no seu sonho é o esplêndido “velho
burgo de David”:
“Era um tropel de casas
cerradas, caiadas de fresco sobre o azul, descendo como um rebanho de cabras
brancas para um vale ainda em sombra, onde uma praça monumental se abria em
arcarias; depois trepava, fendido em ruas tortuosas, a espalhar-se sobre a
colina fronteira e Acra, rica, com palácios e cisternas redondas que luziam à semelhantes
a broquéis de aço. Mais longe ainda, para além dos velhos muros derrocados, era
o bairro novo de Bezeta, em construção; o circo de Herodes arredondava as suas
arcarias; e os jardins de Antipas estiravam-se por um último outeiro, até junto
ao túmulo de Helena, assoalhados frescos regados pelas águas doces de Enrogel.
-Ah, Topsius, que cidade!
– murmurei maravilhado.
-Rabi Eleazer diz que não
viu jamais cidade bela, quem não viu Jerusalém!”
E as turbas que correrem
para assistir à celebração do Pessach na cidade, gritavam:
“-Meus passos vão todos
para ti, ó Jerusalém! Tu és perfeita Quem te ama conhece a abundância
E eu bradava também,
transportado:
-Tu és o palácio do
Senhor, ó Jerusalém, e repouso do meu coração.
(…). Alguns permaneciam imóveis, assombrados,
ante os esplendores de Sião e quentes lágrimas de fé, de amor piedoso, rolavam
sobre barbas incultas e feras. (…) a alma inteira de Judá abismava-se no
esplendor do santuário; e braços magros erguiam-se freneticamente para
estreitar Jeová.” A esta evocação da esplêndida cidade de David e Salomão, Eça
acrescenta a passagem pela antiga Jerusalém, uma vez mais em contraste total
com a velha cidade que o peregrino luso encontrara no dia da sua chegada. E
logo em seguida, Raposão e Topsius ouvem a multidão judia gritar que o rabi
Jeshua foi preso, o que dá início à longa cena do seu julgamento, dos ultrajes
feitos ao nazareno e sua crucificação no Gólgota, o que fará do sobrinho da
Titi do Campo de Santana “uma testemunha inédita da Paixão”: ou seja, como o
observa o próprio Raposão, ele converte-se em “S. Teodorico Evangelista” –
detalhe que escandalizara Pinheiro Chagas, deplorando, nas colunas do Repórter, em resposta dirigida ao romancista
não-galardoado, que este tivesse feito de “um personagem burlesco e imbecil, o
evocador absurdo do drama evangélico, transformando a estranheza que esse disparate
me inspirara no desejo que me atribui der querer uma ópera pândega em vez de um
grande drama histórico.”
Após o julgamento de Jesus
no pretório de Pilatos, Eça inclui uma curta cena, a de compra de um cesto de
figos a um mercador judeu, o que permite que Raposão, depois dos salamaleques
entre ele e o mercador, lhe brade irritado: “− Irra, ladrão!”, já que aquele
lhe pedira por cada figo um tostão da moeda real lusitana, o que não deixa de
lembrar a cena de Carlos da Maia indignado com o preço que o comerciante tio
Abraão lhe pede por um quadro no bric-à-brac
da rua da Alegria, como adiante veremos. Uma visita de Teodorico e Topsius ao
Templo evita que os dois europeus assistam à crucificação de Jesus no Calvário,
pois quando chegam a esta colina já “o
homem da Galileia, incomparável amigo dos homens, arrefecia na sua cruz e para
sempre se apagava aquela pura voz do amor e da espiritualidade”, vítima do sinédrio
por ordem do Templo, interpretação que constitui uma das chaves da atitude do
romancista em relação à responsabilidade essencial pela morte do nazareno: “ali
ficava o templo que o matava, rutilante e triunfal, com o balar dos seus gados,
o estridor dos seus sofismas, a usura sob os pórticos, o sangue sob as aras, a
iniquidade do seu duro orgulho, a importunidade do seu perene incenso… Então,
com os dentes cerrados, mostrei o punho a Jeová e à sua cidade, e bradei:
-Arrasados sejais!”
Noutro local Teodorico
explica quem são os responsáveis por aquela morte: “os padres, os patrícios e
os ricos crucificaram-no!” A visita ao túmulo vazio e a apregoada ressurreição
de Jesus feita pelas mulheres que o veneravam encerra o ciclo desta obra sobre
o enigma da morte de Jesus, esse sonho
sobre Cristo, que ocupa 115 páginas duma obra de 349 páginas, ou seja,
um terço do romance. “E assim o amor de uma mulher (Maria de Magdala) muda a
face do mundo, e dá uma religião mais à humanidade!” Resta a Topsius e Teodorico
regressarem ao seu século, pondo fim a este sonho sonhado pelo Raposão. Diz-lhe
Topsius: “-Teodorico, a noite termina, vamos partir de Jerusalém!...A nossa
jornada ao passado acabou…A lenda inicial do cristianismo está feita, vai
findar o mundo antigo!” E partem então os dois, regressados ao seu positivista
século XIX, a caminho da Galileia e Nazaré, voltando ainda a Jerusalém,
encontrando de novos seus franciscanos de alpergatas e os judeus magros de suas
melenas, fazendo a moderna Sião lembrar “uma pobre coberta de piolhos, que para
morrer se embrulha a um canto nos farrapos do seu mantéu”, nessa Palestina
dominada pelos otomanos, na qual o pícaro luso, com a ajuda do douto historiador alemão, que
cobre a relíquia com a garantia do seu saber, conseguiria a santa relíquia, composta a
partir de oito galhos duma “árvore medonha” e “repelente” − fora com um galho igual, arranjado em forma
de coroa, que um centurião romano coroara por sarcasmo ultrajante a cabeça de
Jesus[12] -, assim
como atafulha num caixote umas tantas outras reliquiarias, com as quais
intentaria garantir a herança da Titi, a seca viúva Dona Patrocínio, vivendo no
seu palácio no nº 47 do Campo de Santana, em Lisboa, assediada por um trio de
sinistros padres fariseus, Negrão, Pinheiro
e Justino. Restava tomar o vapor para o Egipto e dali para Lisboa, até que o
perigoso embrulho com a camisa de Mary traria com ele a terrível anagnosiris desta tragicomédia de
enganos, a evidência dos pecados do
Raposão durante aquela libidinosa peregrinação à Terra Santa e o dano da sua
fortuna de embusteiro.
[1] Veja-se o nosso estudo/antologia As Conferências do Casino e o Socialismo em Portugal, Lisboa, Publicações
Dom Quixote, 1984, maxime pp.83-84
(biografia de Sáraga), pp.81-85 (intervenções de S. Sáraga contra ao decreto do
governo proibindo a continuação das conferências), pp.316-330 (discursos de M.
Pinheiro Chagas no parlamento, justificando a medida censória do governo de
Ávila e Bolama), p.329 (texto da portaria do marquês de Ávila, de 26-VI-1871,
interditando a continuação das conferências do Casino Lisbonense. Pertencendo a
uma família hebraica estabelecida em Portugal no século XIX, Sáraga viveu algum
tempo em Paris, ensinando português, travando relações com Renan (1823-1892) e
fundando ali uma revista portuguesa ilustrada, Os Dois Mundos (1877-1881), onde colaboraram Antero, Oliveira
Martins, J.Batalha Reis, Júlio César Machado, Paul Féval, Teixeira de Queiroz,
Daudet, Ramalho Ortigão, Zola, Bulhão Pato, etc., sendo também proprietário da
obra A Europa Pitoresca. Traduziu
diversas obras francesas, como a Astronomia
popular de Camille Flammarion e César
Cascabel de J.Verne. Eça nunca trocou cartas com este curiosa figura do
judaísmo luso. Outro membro da comunidade judia lusa, oriunda de Nancy
(Lorena), foi o médico Carlos Lima Mayer (Lisboa, 1846 – idem, 1910), colega de Antero e Eça
na Universidade de Coimbra, onde estudara Medicina, embora acabasse por
concluir o seu curso em na
Bélgica e em Paris, vindo a trocar a carreira médica pela
gestão de empresas financeiras em Moçambique, Angola e Açores. Participou no
grupo jantante dos “Vencidos da Vida”, suicidando-se em 28-II-1910. Eça
enviou-lhe, em 1897, uma divertida carta toda em verso, escrita em francês, na
qual menciona os seus grandes negócios: “Tu files encore des jours profitables
et gais/ Façonnant Mozambique, achetant des cartels,/ Revassant d’Infini et des
fonds portugais…” (Eça, Correspondência,
Porto, Lello & Irmão Editores, 1923, pp.249-51, p.251). Mayer visitava
amiúde a família Eça quando esta morava em Paris, na av. du Roule.
[2] Só em 18-V-19044 se inauguraria um edifício público
do culto judaico, junto da rua Alexandre Herculano, em Lisboa, a sinagoga
Shaaré Tikvah, risco do arquitecto Miguel Ventura Terra.
[3] Veja-se o capítulo “Eça, o estrangeirado”, no nosso
livro Eça de Queiroz e o seu Tempo,
Lisboa, Livros Horizonte,1972, pp.104-6.
[4] Veja-se Eça, Cartas
de Inglaterra e Crónicas de Londres, 2ª ed., Lisboa, Livros do Brasil,
s.d., pp.85-104.
[5] O volume O
Egipto. Notas de Viagem, seria publicado em 1926, com uma apresentação de
José Maria, filho do romancista, na
Livraria Chardron, de Lello & Irmão, Porto. Veja-se a sua recente reedição,
com prefácio (pp.7-11) e notas de Alfredo Campos Matos, além da primitiva
apresentação do filho do romancista (pp.13-20), O Egipto, Colares, Feitoria dos Livros, 2015, ilustrado com fotos e
gravuras; há uma foto de Eça ao lado do conde de Resende, nessa viagem ao
Oriente, p.194. Na obra ilustrada Eça de
Queiroz – Fotobiografia, de A. Campos Matos, Lisboa, Caminho, 2007, há um
mapa dessa vagem de 1869-70, p.83.
[6] Veja-se
o capítulo “A Relíquia e o «divertido
caso» do concurso D. Luís” no nosso Eça
de Queiroz e o seu Tempo, pp.197-9. Veja-se ainda o verbete “Academia”, de
A. Campos Matos, no seu Dicionário de Eça
de Queiroz, Lisboa, Caminho, 2ªed., 1993, pp.31-36. O Prémio D. Luís da
Academia foi dado em 1887 à medíocre peça O
Duque de Viseu, do poeta Henrique Lopes de Mendonça, escritor menor, hoje
apenas recordado como autor da letra do Hino nacional -, graças sobretudo ao
veto do “brigadeiro” Pinheiro Chagas, um dos alvos predilectos dos sarcasmos
lançados pelos jovens estudantes na querela do Bom Senso e do Bom Gosto,
anunciadora da irrupção duma nova geração literária coimbrã, reunida depois em
Lisboa no Cenáculo presidido por Antero e nas referidas conferências no Chiado
lisboeta, que seriam interrompidas pelo governo d Ávila de Bolama desde o
incómodo anúncio de uma conferência de Salomão Sáraga, cuja judeidade e o facto
de se atrever a referir Renan incomodavam os poderes. Os historiadores críticos de Jesus, se chamava esta conferência que
cheirava a enxofre herético aos políticos do nosso regime constitucional,
servindo de pretexto para o nosso establishment
governamental mandar cessar aquelas palestras de jovens dissidentes, ainda por
cima suspeitos de estarem ligados a famigerada I Internacional, cuja fundação
ocorrera, em 1864, em Londres, sob os patrocínios antagónicos de Marx e
Bakunine, estando alguns dos setentistas em vias de criarem entre nós uma
delegação da primeira Associação Internacional dos Trabalhadores.
[7] Veja-se a excelente biografia de Herzl por Ernst
Pawel, The Labyrinth of Exile. A Life of
Theodor Herzl, N. Iorque, Farrar, Straus & Giroux, 1989, maxime p. 376 e ss (Th.H. visita a
Palestina em Outubro de 1898, encontrando-se com Guilherme II perto de Jaffa e,
depois, em Jerusalém, procurando convencer o imperador alemão a criar um
protectorado alemão judaico na Palestina, em território otomano, ideia com a
qual o Kaiser simpatizava.
[8] Veja-se a antologia de Jean-Claude Berchet, Le Voyage en Orient. Anthologie des Voyagers français dans le Levant au
XIXe siècle, Paris, Laffont, col. Bouquins,
1985 (Chateaubriand: pp.589-610, excerto do seu livro Itinéraire de Paris à Jérusalem; sobre esta cidade: pp.607-10).
[9] Eça, Folhas
soltas. Palestina, Alta Síria, Sir Galahad, Os Santos, Porto, Lello &
Irmão Editores, 1966, pp.33 e 35-36
[10] Eça,
A Relíquia.
Sobre a Nudez forte da Verdade – o Manto diáfano da Fantasia, Porto, Lello
& Irmão, s.d., p.114. Sobre este romance veja-se o nosso “Eros contra
Cristo: de Lisboa a Jerusalém e volta. Estudo sobre A Relíquia de Eça de Queiroz” in
Eça, Antero e Victor Hugo. Estudos
sobre a cultura portuguesa dos séc. XIX, Lisboa, Centro de História da
Universidade de Lisboa, 2001, pp.11-49. O que Herzl escreveria, em 1898, no seu
diário, sobre a miséria e sujidade da degradada cidade quase nada difere do
retrato que Eça deixou nas suas notas de turista: “Quando eu me lembrar de ti nos dias a virem,
ó Jerusalém, não será com prazer. O escuro sedimento de dois milénios cheios de
intolerância desumana e sujidade infesta as avenidas com o desagradável mau
cheiro dos seus casebres.(…). Se alguma vez obtivermos Jerusalém e se na altura
eu ainda estiver capaz de fazer alguma coisa por isso, a primeira coisa que
faria seria limpá-la. Eu limparia tudo o que não se possa qualificar de
sagrado, construiria casa para os trabalhadores fora da cidade, eliminando os
casebres, arrasando-os, queimando todas as ruínas não-sagradas e transferindo para
outro local os seus bazares. Então, retendo embora o velho estilo
arquitectónico na medida do possível, erigiria uma cidade confortável, arejada
com esgotos próprios em redor dos locais sacros.(…). Estou convencido de que
uma magnífica Nova Jerusalém podia ser criada fora das velhas muralhas da
cidade. A velha Jerusalém ficaria Lourdes e Meca e Yerushaleim. Uma cidade
muito bela e elegante seria então uma possibilidade real.”[10] Quem
conhece a actual cidade de Jerusalém, sobretudo depois da sua israelização
integral em 1967, sabe que esta fervorosa profecia do fundador do sionismo se
havia de realizar, tornando-se, de facto, a cidade de Salomão uma urbe airosa,
belíssima e de uma extrema limpeza.
[11] Escorraçado do Campo de Santana, levando apenas
consigo algumas reliquiarias trazidas da Terra Santa, Teodorico, instalado
agora numa casa de hóspedes, sobrevive vendendo frasquinhos de água do Jordão,
pedacinhos da billha com que Nossa Senhora ia à fonte, ferraduras do burrinho
em que fugira a Santa Família, palhinhas do presépio, tabuinhas aplainadas por
São José, raminhos secos de flores de Nazaré, pedaços da túnica da Virgem
Maria, cordéis das sandálias de São Pedro. pregos que tinham sido usados na
crucificação, etc. Saturado o mercado deste negócio das relíquias, Teodorico,
sem pão, encontra um dia Crispim, antigo colega da faculdade, dono duma fábrica
de fiação na Pampulha, que o socorre, lhe dá emprego, acabando o Raposão por
casar com a zarolha Jesuína, irmã do amigo. Foi então pai, teve carruagem,
recebeu a comenda de Cristo e comprou uma das propriedades que fora da Titti. E
só lamentava que, no oratório da medonha senhora sua tia, não tivera a coragem
de afirmar, ao exibir a camisa de dormir de Mary, que esta era a camisa de
Santa Maria Madalena, que ela lhe dera no deserto, e que o papel com a dedicatória “Ao meu
portuguesinho valente, pelo muito que gozámos. M.M.” significava apenas o muito
que o peregrino gozara em mandar à santa as suas orações para o céu e o muito
que a santa gozara no céu em receber aquelas orações, em suma, Raposão errara
por lhe ter faltado “esse descarado
heroísmo em afirmar que, batendo na Terra com pé forte, ou palidamente elevando
os olhos ao Céu – cria, através da universal ilusão, ciências e religiões”(Relíquia, itálico do original).
Sublinhemos que neste romance, o decisivo diálogo que Teodorico tem com Jesus,
representado numa imagem encaixilhada, no quarto alugado na travessa da Palha,
na qual o tunante acusa o crucificado de ser o responsável pelas suas desditas,
e a imagem lhe reponde que todo o seu desastre resultara apenas das mentiras do
incrédulo e devasso Raposão que se fingira devoto para receber os bens da titi
Patrocínio, fingimento e hipocrisia farisaicas que se revelaram afinal inúteis,
acrescentando que a figura daquela imagem não é Jesus da Nazaré, “nem outro
Deus criado pelos homens…Sou anterior aos deuses transitórios: eles, dentro de
mim nascem, dentro em mim se dissolvem, e eternamente permaneço em torno deles
e superior a eles, concebendo-os e desfazendo-os, no perpétuo esforço de
realizar fora de mim o Deus absoluto que em mim sinto. Chamo-me consciência:
sou neste momento a tua própria consciência reflectida fora de ti, no ar e na luz, e tomando ante teus olhos a forma
familiar sob a qual tu, mal educado e pouco filosófico, estás habituado a
compreender-me..” Em suma, o pseudo-Jesus da litografia com a qual Raposão
dialoga fora apenas a voz da Consciência universal de que Teodorico seria, de
algum modo, um reflexo, sob a forma de autoconsciência moral e ética. Veja-se,
sobre este importante episódio, o que dizemos no nosso citado estudo “Eros
contra Cristo”, pp.22-3.
[12] A cena do fabrico da relíquia de espinhos com galhos
secos duma árvore “medonha” e “repelente árvore”, com uma casca oleosa de pele
negra, com a qual Teodoro dialoga, sem que ela lhe responda, ocupa várias
páginas importantes sobre a simbólica da coroa que Raposão confecciona para a
oferecer à Titi, sobretudo se tivermos em conta o cruel lapso da sua troca
final com a camisa de dormir da luveira Mary.
(continua)
João Medina
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