No decorrer da longa convalesça, após a
terceira operação feita pela Amália nos Estados Unidos, em 1998, realizou-se no
Clube Português de Hartford, estado de Connecticut, a Noite do Imigrante, na
última semana de Novembro, logo a seguir à festa de Thanksgiving, portanto, com
a participação de alguns dos melhores fadistas e guitarristas da Nova
Inglaterra e dos estados de Nova Iorque e de Nova Jersey, e do conjunto musical
Mil e Quatro de Beto de Oliveira, de Hartford.
Sabendo que a Amália se encontrava
hospedada em casa do Dr. Seabra Veiga, em Waterbury, e sabendo não só da
amizade que me ligava à Amália e da minha influência junto do Dr. Veiga, Cônsul
Honorário de Portugal no Estado de Connecticut, alguns membros da direcção do
Clube pediram-me que usasse dos meus bons ofícios, no sentido de conseguir que
a Amália Rodrigues participasse nessa festa, em companhia, naturalmente, do Dr.
Veiga e da sua esposa, Dona Rita, como era da tradição, e também da Dona Lili,
a dedicadíssima e fidelíssima secretária da Amália, que a acompanhava por toda
a parte.
De que a Amália aceitasse, justamente
lisonjeada, o amável convite, apesar de estar ainda a convalescer de uma
operação grave, não tinha eu a mínima dúvida, sabendo como ela amava os
portugueses da diáspora, era apaixonada por eventos desta natureza e era quase
doentiamente carente de aplausos, de mimos e de banhos de multidão. Porém
igualmente sabia que o mesmo já não podia eu dizer do Dr. Veiga, não só em
virtude da sua qualidade de primo da Amália por afinidade, mas sobretudo em
virtude da sua qualidade de médico dela, directamente responsável pelas suas
melhoras rápidas. Entretanto, lá fui dizendo aos meus amigos da direcção do
Clube que faria oportunamente essas diligências, na esperança de poder vir a
satisfazer os desejos deles (e os da Amália também, disse eu para comigo). Que
se lembrassem, porém, de uma coisa fundamental: que, na eventualidade de isso
vir a realizar-se, por nada deste mundo permitiria que alguém se atrevesse a
pedir à Amália que cantasse durante essa festa. É que ela, na sua louca paixão
pelo fado, não só não recusaria esse convite, mas aceitá-lo-ia de braços
abertos...e de pulmões doentes.
Levado esse pedido ao conhecimento dos
meus amigos Dr. Veiga e D. Rita, logo no próprio dia em que me foi feito, e
devidamente informado das estipulações que eu tinha imposto aos membros da
direcção do Clube Português de Hartford, obtive deles uma resposta afirmativa,
com duas condições: primeiro, que o Presidente do Clube Português de Hartford,
Mário de Sousa, formulasse por escrito o pedido referente à presença da Amália;
segundo, que, se esse pedido viesse a ser aceite, ele, Presidente do Clube, não
diria isso a ninguém, pois achava bem que a presença da Amália fosse uma
surpresa para todos.
E surpresa agradabilíssima, ao som da
“Canção do Mar”, tocada pelo conjunto musical Mil e Quatro, aclamada e
ovacionada pela multidão delirante que enchia totalmente a sala de banquetes e
salão de actos do Clube, ao mesmo tempo, foi a entrada triunfal da Diva do Fado,
com brincos longos cor de vinho e com vestido preto, roçagante, salpicado de
lentejoulas douradas, a fazer lembrar, pelo corte, aqueloutro vestido, vermelho-escuro,
se bem me recordo, que ela usou por ocasião da homenagem nacional que lhe foi
feita no salão de espectáculos da Expo de Lisboa de 1998.
Graças à presença da Amália, tudo foi
memorável nessa inesquecível “Noite do Imigrante”, e noite de fados e
guitarradas, realizada no Clube Português de Hartford. Terminado o jantar, que,
como sempre, constou de uma vasta variedade de aperitivos, desde os bolos de
bacalhau aos rissóis de carne e camarão, de sopa (o tradicional,
portuguesíssimo e saborosíssimo caldo verde, generoso em linguiça e azeite
portugueses), de prato de peixe e prato de carne e de sobremesa, acompanhados
de vinhos de mesa portugueses, e de bebidas generosas, em que não faltou o
Porto, naturalmente, os guitarristas e os fadistas convidados encheram-se de
brio e, como diria o meu saudoso amigo Manuel Gaspar, mestre-de-cerimónias
(esta expressão soa-me melhor que a palavra apresentador), não deixaram os seus
méritos por mãos alheias. E, como não podia deixar de ser, quando menos se
esperava, lá aparecia alguém, à antiga moda portuguesa, numa autêntica casa de
fados, a pedir que lhe concedessem a honra de dedicar um fado à grande Amália.
De posse do microfone, o fadista ou a fadista de ocasião aproximava-se dos
guitarristas, sussurrava-lhes as primeiras notas do fado que se propunha
cantar, a sala mergulhava em silêncio religioso (“silêncio, que se vai cantar o
fado” – pontificava em voz sonora e pomposa o Manuel Gaspar), e o fado
inesperado fazia delirar a Amália, visivelmente transfigurada por mais um gesto
espontâneo de sentida homenagem, e fazia-nos estremecer a todos os presentes de
comovidas saudades da velha Pátria.
Faziam-se intervalos e, durante eles,
os que, por casualidade, haviam tido a lembrança de vir munidos de máquinas
fotográficas, aproximavam-se da mesa da Amália e dos convidados especiais, mesa
montada quase em forma de trono, e perguntavam-lhe, em tom extremamente
respeitoso, se se dignava posar com eles para uma fotografia de família. E a
Amália, encantada e sorridente, dizia sempre que sim.
Neste
contexto, nunca me sairá da lembrança o que aconteceu em determinada altura,
quase ao cair do pano, dessa noite inolvidável. Aproxima-se da mesa da Amália o
falecido e saudoso Mário de Sousa, presidente do Clube Português de Hartford,
bem-falante, sempre bem disposto e sorridente, alfacinha de gema, extrai da
carteira uma fotografia velhinha de muitos anos e põe-na diante dos olhos
deslumbrados e emocionados da Amália. Ela não podia acreditar naquilo que
estava a ver: era uma fografia dela, Amália, em maillot, tirada na praia de Santa Cruz, perto de Caldas da Rainha –
fotografia do tempo em que a Amália era “menina e moça.”
Revelado,
candidamente, pela voz altissonante do Manuel Gaspar, esse milagroso achado à
multidão que enchia de lés-a-lés o salão de actos do Clube Português de
Hartford, a ovação foi tão retumbante, que se pode falar, sem exagero, de uma
autêntica apoteose à Santa Rainha do Fado, apoteose que a Amália, que nunca
permitia ser vencida em generosidade, agradeceu, feliz e emocionada, como era
seu costume, com os braços abertos, vénias profundas e uma litania infinda de
“obrigada”, “obrigada”, “obrigada”...
António
Cirurgião
Que maravilha... até me emocionei. Amália Sempre. Grandes relatos.
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