Foi no dia 24 de Novembro de
1975, festa de "Thanksgiving" (Acção de Graças), dia em que se
comemora a chegada dos Peregrinos da "Mayflower" aos Estados Unidos,
em 1621, festa que é sempre comemorada na quarta quinta-feira do mês de
Novembro; festa em que nunca falta o peru, a ponto de muitos luso-americanos a
terem baptizado de "Festa dos Perus."
Toda a comitiva do General
Spínola foi almoçar a casa do Dr. Adriano Seabra Veiga, médico e Cônsul
Honorário de Portugal, no estado de Connecticut; almoçar não digo bem:
banquetear-se, pois era tradição dessa casa tratar os hóspedes com todos os
requintes de uma culinária refinada, de tradição portuguesa, o que quer dizer
que a grande variedade de pratos superiormente preparados era acompanhada dos
melhores vinhos e licores, servidos respectivamente em louça da Vista Alegre e
em copos de fino cristal, dispostos com todos os requintes de etiqueta numa
toalha da Madeira, tudo servido por empregados de mesa em uniforme, sob o
comando de um mordomo, sempre vestido de traje a rigor.
Desnecessário é dizer que,
tratando-se de um banquete de festa e de convidados tão ilustres, não faltaram
os brindes.
Terminado o banquete e as
saúdes, fomos sentar-nos à sala de estar, adornada com quadros dos séculos XVII
e XVIII, com peças antigas de louça da China e da Companhia das Índias, com
estatuetas de mármore e com uma lareira também feita de mármore.
Enquanto uns nos
entretínhamos a conversar e outros também a saborear o seu licor e/ou o seu
havana, o Professor Veiga Simão, então auto-exilado nos Estados Unidos,
conduziu o General Spínola para a cave da casa, transformada em sala de estar,
sala de jogos e em bar. É que aí se encontrava à sua espera um jovem jornalista
português, Carlos Pinto Coelho, co-fundador,
com Artur Portela Filho, do diário Jornal Novo, em 1975, e seu
correspondente. Feitas as devidas apresentações por Veiga Simão, o General
Spínola começou por dizer que não estava na disposição de dar entrevistas a
jornalistas portugueses, pois sabia, por experiência, que distorciam sempre o
que ele dizia. Que disso tinha ele demasiadas provas. Que não tivesse esse
receio, apressou-se a esclarecer Veiga Simão. Havia que distinguir entre
jornalistas e jornalistas. Que Carlos Pinto Coelho era jovem, mas era um
jornalista profissional e consciencioso.
E depois de muita
insistência, por parte de Veiga Simão, o General Spínola anuiu a conceder uma
entrevista, mas com a condição de que as perguntas lhe fossem submetidas por
escrito, a fim de ele responder também por escrito. Mas que precisava de tempo.
Que provavelmente só no dia seguinte podia ter prontas as respostas.
E assim ficou acordado. De
maneira que, enquanto o General Spínola e Veiga Simão voltaram para o salão
nobre, para aí se juntarem aos anfitriões e aos outros convidados, Carlos Pinto
Coelho ficou na sala de estar da cave a escrever as perguntas.
Como jornalista responsável,
Carlos Pinto Coelho – que se tinha deslocado de Portugal de propósito para
entrevistar pessoalmente o General Spínola – sabia de cor e salteado as
perguntas que desejava fazer. De maneira que só foi questão de passar essas
perguntas para o papel, em letra grande e bem legível, ao gosto do homem do
monóculo.
Com essas perguntas no bolso,
o General Spínola e comitiva – Capitão Ramos, D. Maria Luisa, sobrinha do
General, Cirurgião, mais o motorista, o meu velho amigo Manuel Gaspar –
regressámos a Hartford, a meia hora de distância.
Como para o cair da tarde
desse mesmo dia estava programada uma conferência do General Spínola à
comunidade portuguesa, no Grémio Lusitano de Ludlow, Estado de Massachusetts, passada
uma hora, pouco mais ou menos, estávamos a caminho de Ludlow, a uns cinquenta
minutos de carro. Por ter umas diligências pessoais a fazer em Ludlow, resolvi
levar também o meu carro. Por outro lado, ao passo que a D. Maria Luisa ficou
no hotel, em Hartford, juntaram-se duas pessoas à comitiva do General: o Dr. José
Valle de Figueiredo, espécie assessor e adido de imprensa do General Spínola, e
o Comandante Alberto Rebordão de Brito, cujas verdadeiras funções durante parte
da "tournée" do General nos Estados Unidos e Canadá, durante parte
dos meses de Novembro e de Dezembro de 1975, nunca cheguei a compreender bem. Sei
que tinha fama de valente como fuzileiro naval, que servira sob as ordens do
General Spínola na Guiné e que era seu afilhado de casamento, segundo
informações obtidas do Capitão Marques Ramos.
No dia seguinte partimos para
a Califórnia, a fim de o General apelar ao fervor e ao apoio patriótico das
comunidades luso-americanas aí estabelecidas, quase todas de origem açoriana e
madeirense. Essa a missão pública, pois a missão secreta era procurar convencer
alguns dos milionários das vacarias, leitarias e grandes empresas agrícolas, entre
esses portugueses, a apoiar a missão política e patriótica e anti-comunista do
General Spínola, com uns milhões de dólares, servindo-nos para isso de duas
pessoas nossas conhecidas e de plena confiança: a D. Maria Giglito,
luso-americana, casada com um armador de San Diego, e o Dr. Décio de Oliveira,
dentista em San Jose ou cidade vizinha, especificamente Oakland e Santa Clara.
Ilusão das ilusões. Como se diz noutra parte, nos chapéus passados pela
audiência, por ocasião dos discursos recheados de patriotismo, feitos pelo
General Spínola, nem sequer caiu o suficiente para pagar as despesas com a
viagem e com a estadia da comitiva na
Califórnia.
Mas voltemos à entrevista
destinada ao recém-nascido Jornal Novo de Lisboa. Como no dia
anterior não tinha havido tempo para isso, fez-se saber ao Professor Veiga
Simão que ela só poderia estar pronta quando chegássemos à Califórnia. Que uma
vez aí chegados, em hora que agora não sei precisar com exactidão, eu ditaria
por telefone ao Carlos Pinto Coelho as respostas do General Spínola.
Combinou-se de antemão o número que eu devia ligar, e assim se fez.
Mas para que à nossa chegada
à Califórnia a entrevista pudesse estar pronta para ser transmitida pelos fios
telefónicos continentais, necessário se tornava produzi-la durante a viagem. E
assim aconteceu. O General Spínola e o Dr. José Valle de Figueiredo, sentados
um ao lado do outro, iam fabricando as respostas, que o Dr. Figueiredo escrevia
à mão. Terminada uma página, entregava-ma a mim, sentado na coxia, do lado
oposto, e eu passava-a à máquina, na minha Olivetti portátil.
Íamos aí por metade da
segunda página, quando uma senhora sentada próximo de mim se começou a queixar
que o ruído da máquina estava a perturbar-lhe o repouso. Eu fiz de conta que a
não ouvi e continuei a martelar impertérrito nas teclas da minha Olivetti. Mas
a dita senhora não se deu por vencida e fez uma queixa formal a uma das
hospedeiras de bordo. E a hospedeira de bordo fez-me ver que não era bonito
perturbar o repouso de uma passageira. E eu fiz ver à hospedeira de bordo que
fizesse favor de compreender, que se tratava de um assunto altamente transcendente,
etc. e tal, e que, com um pouco de boa vontade, talvez fosse possível resolver
esse problema a contento de todos. Como? – perguntou ela. – Muito facilmente –
respondi eu. Convencer essa senhora, aparentemente alérgica à música de uma
inocente máquina de escrever, a sentar-se num dos lugares vazios lá muito à
frente do avião. Bastaria dar a entender à delicada senhora que tinha havido um
entendimento prévio entre nós e a hospedeira de bordo-chefe, mediante o qual
nos seria possível realizar essa tarefa tão urgente nos moldes em que estávamos
a realizá-la. E, graças à compreensão e aos bons ofícios de uma hospedeira,
extremamente simpática e bonita, como eu lhe dei claramente a entender com um
fugitivo e grato sorriso, o bater das teclas da minha Olivetti pôde continuar a
fazer música dissonante durante o resto do voo. E foi desta maneira que se
tornou possível ter a entrevista completa, pronta para ser transmitida por
telefone ao destinatário, no momento em que aterrámos no aeroporto da Califórnia
e nos hospedámos no hotel, na portuguesíssima e açorianíssima cidade de San
Jose.
Foi feita esta transmissão a
partir do telefone do quarto em que fiquei alojado. Mas foi essa entrevista
publicada em Portugal? De maneira nenhuma. E porquê? – Porque as respostas que
o General Spínola deu a Carlos Pinto Coelho não foram do total agrado de Veiga
Simão, em conivência, não manifesta ao General Spínola e aos outros membros da
sua comitiva, naturalmente, com o seu amigo e protector político, chamado
António Almeida Santos, uma das eminências pardas do novo regime político
português. É que nessa entrevista o General Spínola se recusava a acatar o
conselho de Veiga Simão: apoiar publicamente e incondicionalmente o governo
recém-formado, sob a chefia do Almirante Pinheiro de Azevedo.
Os que porventura tenham a
curiosidade de ler essa malograda entrevista, confeccionada de uma forma tão
bizarra, poderão fazê-lo abrindo o livro de António de Spínola, Ao Serviço de Portugal, 2.a edição (Lisboa: Ática / Livraria Bertrand), pp. 359-368, obra que o
abaixo-assinado ajudou a dactilografar e a rever e cujo título sugeriu, como
está contado noutra prosa ainda inédita.
António Cirurgião
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