Foi num dia do mês de Abril
de 1976. Estava eu no Rio de Janeiro, por ocasião de um ano sabático, quando
recebo uma comunicação do "quartel-general" do nosso movimento
revolucionário (MDLP ou Movimento Democrático para a Libertação de Portugal),
sediado na residência do Cônsul Honorário de Portugal no Estado de Connecticut,
Estados Unidos da América, anunciando, em linguagem cifrada, a chegada ao
Brasil, dois dias depois, do Vice-Cônsul, Manuel Fonseca. Que estivesse alerta,
que o emissário tinha coisas importantes a comunicar-me. Nada mais. Ponto
final. A natureza da missão e todos os seus pormenores ser-me-iam transmitidos
pessoalmente, em devido tempo. É que por mais de uma vez tínhamos sido avisados
pelos serviços secretos dos Estados Unidos que havia muitos espiões, tanto no
Brasil como nos Estados Unidos, a mando do Partido Comunista Português, e que
era muito provável que os telefones de alguns de nós estivessem infiltrados por
esses espiões.
Esperei
e, tal como me tinha sido comunicado, passados dois dias, por volta das dez da
manhã, chegou ao meu apartamento, na Rua Belfort Roxo, em Copacabana, Rio de
Janeiro, o Vice-Cônsul.
Depois de perguntar se
ninguém mais estava no apartamento e depois de me pedir segredo absoluto sobre
o que me ia dizer, saímos para uma esplanada para tomar um café e conversar, e
mais tarde fomos almoçar a um botequim ao lado. Passadas algumas horas,
partimos ambos de táxi a caminho de Leblon, em direcção ao apartamento do
General Spínola.
Era pelas três da tarde
quando chegámos ao seu apartamento.
Para surpresa nossa, quem
responde ao toque da campainha é o próprio General. Depois de repetirmos a
senha e o santo, abre-nos a porta. Eu não podia acreditar no que estava a ver.
Quando esperava encontrar uma pessoa decentemente vestida, senão fardada com o
seu uniforme de general, eis que vejo um homem em calções e de tronco nu.
Como que surpreendido, ainda
antes de nos apertar a mão, o General dirigiu-se a um quarto e reapareceu,
momentos depois, a acabar de apertar os botões de uma camisa, ao mesmo tempo
que nos dizia, com visível embaraço, que era esse o seu hábito de trajar por
casa, dado o muito calor que fazia no Rio de Janeiro (e dada a falta de ar condicionado
no apartamento em que vivia, como pudemos imediatamente observar: facto que o
General não referiu, em virtude do seu horror quase epidérmico a qualquer
manifestação externa de auto-comiseração).
Seguidamente, o General
mandou-nos sentar, não sem antes nos apresentar a um cavalheiro de porte
modesto e extremamente discreto que nesse momento se encontrava com ele no
apartamento: o Dr. Luís de Oliveira Dias, que, tal como o General e outros
amigos e colaboradores dele, também se encontrava exilado no Brasil. (Convém
esclarecer, porém, que esses “amigos e colaboradores” eram cada vez em menor
número, ao contrário do que acontecera por ocasião do seu primeiro exílio no
Brasil, como também pude observar, por sinal pela primeira vez que estive com o
General Spínola no Brasil. Nesse tempo vivia ele num modesto hotel de
Copacabana, juntamente com alguns dos seus colaboradores. Aliás, a primeira vez
que aí entrei, dei com vários desses colaboradores do General Spínola a comprar
pedras semi-preciosas a um caixeiro viajante de Minas Gerais, pedras que eles
venderiam em Espanha a bom preço, para, dessa forma, poderem custear as
despesas do exílio a que o regime político então vigente em Portugal os forçara.)
Depois de apresentados os
cumprimentos do Professor Veiga Simão, do Dr. Seabra Veiga, do Embaixador Pedro
Pinto Corte-Real e do empresário Richard Aldrich, primo de Nelson Rockfeller,
ao tempo Vice-Presidente dos Estados Unidos, o Vice-Cônsul e o abaixo-assinado
apressaram-se a expor ao General Spínola a natureza da sua missão. Tratava-se
simplesmente de perguntar ao General se queria candidatar-se à Presidência da
República Portuguesa, nas primeiras eleições oficiais, depois de aprovada a
nova Constituição pela Assembleia Constituinte de 1976.
Depois de nos ouvir com a
maior atenção, o General olhou demoradamente para nós e falou-nos mais ou menos
assim:
- Olhem bem para mim.
Parece-lhes que eu tenho cara de quem alguma vez poderá rebaixar-se ao ponto de
jurar fidelidade a uma Constituição marxista?
Uma vaga de silêncio
embaraçoso estabeleceu-se entre nós.
Ciente de que havíamos
compreendido devidamente as suas palavras, o General limitou-se a perguntar-nos
se tínhamos mais alguma coisa, de carácter oficial, para lhe comunicar.
Sim, tínhamos: uma vez que ele não aceitava candidatar-se à Presidência da República, estaria ele disposto a apoiar a candidatura do "General" Ramalho Eanes? Tinha ele confiança no "General" Ramalho Eanes?
Sim, tínhamos: uma vez que ele não aceitava candidatar-se à Presidência da República, estaria ele disposto a apoiar a candidatura do "General" Ramalho Eanes? Tinha ele confiança no "General" Ramalho Eanes?
Após um breve silêncio, o
General, à guisa de resposta, fez este comentário, num tom de mal disfarçada
amargura:
- Eu tinha confiança absoluta
no Major Carlos Fabião e no General Costa Gomes, e vejam o que me aconteceu e o
que me fizeram! E dizer que eu considerava o primeiro como um filho e o segundo
como um irmão.
Ouvidas estas palavras, só
nos restou, ao meu amigo Vice-Cônsul e a mim, mudar de assunto.
Ambos tínhamos compreendido,
sem grande ginástica mental, que o General Spínola havia perdido quase
completamente a fé nos homens. E nem outra coisa era de esperar de quem tinha
sido tantas vezes traído por homens que ele considerava como filhos e irmãos.
E, a propósito de o General
estar em calções e em tronco nu, gostaria de explicar, aos que porventura não
saibam, que o Marechal Spínola sofreu grandes privações durante o segundo
exílio no Brasil. É que, ao contrário do que lhe acontecera quando aí chegou
pela primeira vez, logo a seguir ao 11 de Março, em que não faltou quem
pensasse que em breve o General voltaria novamente para Portugal, na qualidade
de Presidente da Segunda República, razão por que lhe proporcionaram
acomodações decentes, que não luxuosas, na esperança de um dia se verem
recompensados a cêntuplo por um, quando ele apareceu pela segunda vez no
Brasil, depois de ter sido apanhado com a boca na botija pelo jornalista de Der Spiegel,
esses "amigos", duvidando que ele jamais pudesse voltar a ser alguém
em Portugal, politicamente falando, não só nada lhe proporcionaram, como
começaram a mandar-lhe contas a casa. E foi assim que o Marechal Spínola se viu
obrigado a viver num humilde apartamento no Leblon e a alimentar-se, como ele
disfarçava, por questão de brio, do que ele chamava rancho, à maneira da tropa:
o modestíssimo prato do dia levado de um botequim ao lado do apartamento, num
vulgaríssimo prato de alumínio.
E quando, meses mais tarde,
se mudou para um apartamento um pouco mais amplo e decente no Leme, almas boas
e caridosas (poucas) foram-lhe mobilando o apartamento, levando-lhe hoje uma
cadeira, amanhã uma lâmpada, depois uns pratos ou um aparelho de televisão,
para que ele pudesse ter o mínimo de conforto.
Estive mais de uma vez em
cada um desses dois apartamentos e posso garantir que o que digo é a pura
verdade. Aliás, pelo que se refere ao apartamento do Leme, fui testemunha
ocular, mais de uma vez, desses gestos de caridade referidos no parágrafo anterior,
praticados por “amigos certos nas coisas incertas”.
Chegou o Marechal Spínola a
tomar conhecimento dessas contas que alguns dos que lhe tinham dado comida e
dormida durante o primeiro exílio lhe mandaram a casa durante o segundo exílio?
Sei que no princípio não, graças à amabilidade e à dedicação de um português
também exilado e necessitado como ele, o Dr. Luís de Oliveira Dias. Sob o
pretexto de o secretariar, esse homem bom e amigo do seu amigo ocultava do
General essas contas. Terá conseguido ocultá-las até ao fim? Confesso que não
sei.
Chegou o Marechal Spínola a
queixar-se dessas privações? De maneira nenhuma: sobejava-lhe orgulho,
dignidade e estoicismo para o fazer.
Benévolos leitores, um dos
homens que mais contribuiu, directa ou indirectamente, para o advento da
Segunda República Portuguesa sofreu muito durante o segundo exílio no Brasil,
mas sofreu calado e com dignidade exemplar.
António Cirurgião
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