A
vinda de crianças austríacas para Portugal, durante e após a 2ª Guerra, é
sobejamente conhecida e encontra-se amplamente documentada. Existem vários
artigos e reportagens de jornal, como a que saiu no Público, aqui. Organizado por José A. Palma Caetano, o livro bilingue Um Laço de Amizade entre Portugal e a Áustria / Ein Freundschaftsband
zwischen Portugal und Österreich, publicado pela Assírio & Alvim em
2005, reúne depoimentos de dezenas de crianças que, graças ao labor da Cáritas,
foram colocadas nos mais diversos pontos do país no imediato pós-guerra. Raramente
os testemunhos vão além de uma descrição sumária e emocionada dos tempos
felizes passados com as famílias de acolhimento, não permitindo extrair grandes
ilações para uma reconstrução do «olhar estrangeiro sobre Portugal». É mais do
que natural, pois os depoentes eram, à época, crianças de tenra idade, vindas
de uma terra em escombros. Em quase todos os testemunhos há palavras afectuosas
para com os «pais adoptivos» e relatos de um regresso a Portugal anos depois, já
na idade adulta. Escolheu-se um pouco ao acaso (mas por conter um episódio
contemporâneo com alguma curiosidade) o depoimento «Ladrões com coração», de Martin Strutzenberger, um
dos muitos que estão publicados num livro comovente, que bem merece ser
(mais) conhecido.
Évora, Bairro Novo, anos 1950-1960
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Ladrões
com coração
Com
sete anos, subalimentado e pertencente a uma família com cinco filhos, tive a
possibilidade de, graças aos transportes da Cáritas para o estrangeiro, ir para
Portugal, onde estive de meados de Abril de 1950 a fins de Março de 1951.
Depois de uma longa e fatigante viagem de comboio e de barco, por Génova e
Lisboa, cheguei a Évora e fui entregue aos cuidados de pais adoptivos muito
simpáticos, sem filhos e já com mais de 65 anos de idade.
Passado pouco tempo já eu era o menino
querido da família, sobretudo dos empregados domésticos e muito em especial da
governanta, Luzia Rosa Gomes, que eu tratava por «Mutti» (mãezinha) e cuja
sobrinha Albina, de 12 anos, brincava comigo e tinha também sempre de tomar
conta de mim. Évora, essa maravilhosa capital do Alto Alentejo, impregnada de história
e com muita gente simpática, tornou-se de repente para mim o paraíso terrestre.
Não é, porém, minha intenção relatar em
pormenor essa estadia em criança entre os muitos portugueses que eu estimava,
poi há bastantes histórias de outras crianças enviadas pela Cáritas no
após-guerra que são tão maravilhosas como aquela que eu também aí pude viver.
Infelizmente não me foi dado voltar a
Portugal para uma outra estadia, em virtude da idade e do precário estado de
saúde dos meus protectores e pais adoptivos. A partir de 1956 deixei de receber
qualquer resposta de Évora às minhas cartas.
No período do meu noivado, em 1966,
contei muitas vezes à minha actual mulher, Elisabeth, como tinha sido a minha
infância em Portugal: «Temos de lá ir uma vez os dois, para te poder mostrar
tudo e procurar saber quem é que ainda é vivo de todas as pessoas de Évora que
eu tanto estimava.»
Casamento, arranjar casa,
aperfeiçoamento profissional, três filhos para criar, nova casa, porque a
antiga era muito pequena para cinco pessoas, durante muito tempo só eu a
ganhar, mudança de emprego, custos elevados da viagem – tudo isso nos impediu
de ir a Portugal.
Só 44 anos depois da minha estadia é
que essa viagem foi possível, em Maio de 1994. Nós éramos inexperientes, mas
corajosos e marcámos numa agência uma viagem de avião com alojamento nas
pousadas e caro alugado para o Sul de Portugal. Tudo correu da melhor maneira,
fomos de Lisboa por Sesimbra, Palmela, Vila do Bispo, Sagres com o Cabo de S.
Vicente, Faro, Manta Rota, Beja e Serpa até Évora. Em Évora tínhamos, na reserva
feita, prolongado a estadia com dormida para três dias, a fim de podermos
visitar tudo bem e procedermos a algumas indagações.
Esse regresso a Évora foi um
acontecimento que me tocou profundamente. E ainda muito mais me comoveu quando
nós, munidos com cartas antigas dos pais adoptivos e antigas fotografias da
minha estadia em criança em 1950/51, conseguimos, através da Câmara Municipal,
a morada de uma mulher que tinha tratado dos meus pais adoptivos até à sua
morte. Apesar das muitas dificuldades com a língua (nós sem falarmos português
e lá sem conhecimentos de alemão e muito poucos de inglês), conseguimos
encontrar as sepulturas dos meus pais adoptivos – ambos falecidos em 1957 – e arranjar
uma visita, com uma intérprete (português-alemão), à mulher cuja morada nos
tinham dado.
Qual não foi a minha surpresa quando a
porta se abriu e vi uma simpática senhora de idade – era a minha Luzia Gomes,
agora Luzia Alves, 80 anos, a minha «Mutti» desse ano que passei em Portugal!
Foi uma visita muito tocante, na qual recebemos também fotografias e o endereço
da sua sobrinha Albina, que agora, também casada e com filhos adultos, vive em
Odivelas, ao norte de Lisboa.
Muito emocionados e enriquecidos,
fomos, depois desses três dias, de Évora para o Estoril. No dia seguinte, o
nosso destino foi novamente Lisboa, a última etapa da viagem. Como queríamos
naturalmente parar na Torre de Belém, fomos para um parque de estacionamento e
ficámos ainda admirados porque um guarda do parque nos indicou em lugar, embora
a essa hora da manhã o parque estivesse quase vazio. Ao afastarmo-nos, vimos
que ele gritou qualquer coisa a outros camaradas. Quando, depois da visita à
Torre, voltámos para o nosso carro, foi grande o sobressalto. Uma das portas de
trás tinha sido arrombada. Mas só tinham roubado uma bolsa que eu, aliás,
costumava trazer comigo, afivelada. Fora um erro justamente dessa vez não a ter
levado! O que lá estava era algum dinheiro, uma objectiva intermutável de uma
máquina fotográfica, carta de condução, passaporte e, o que maior desgosto me
causou, todas as cartas e fotografias, endereços e documentos relacionados com
a minha estadia em Portugal em criança e com essa viagem, assim como todos os
rolos de fotografia revelados e por revelar.
Não vale a pena referir aqui as
dificuldades que se seguiram e as voltas que foi preciso dar para arranjar
novos papéis na Embaixada da Áustria e na nossa chegada ao aeroporto de
Viena-Schwchat. Terá, no entanto, de se dizer também que, apesar disso, nos
últimos dias das nossas férias ficámos a conhecer Lisboa e a gostar muito dessa
cidade.
Duas semanas depois do nosso regresso a
Perchtoldsdorf, recebi um telefonema da Junta de Freguesia, a dizer que a minha
carta de condução e o meu passaporte tinham sido encontrados e podia ir buscá-los.
Assim fiz e, ao voltar a casa, abri, na entrada, a nossa caixa de correio e lá
dentro estava um grande envelope da Embaixada da Áustria em Lisboa. Foi enorme
a nossa alegria ao encontrarmos nele, para além da carta da Embaixada (sobre o
achado do conteúdo num saco de plástico pendurado na aldraba de uma porta),
todos os filmes da nossa viagem revelados e por revelar, mas sobretudo todas as
minhas antigas fotografias e cartas.
Pelos vistos, os ladrões tinham estudado
o conteúdo das cartas de 1951 e concluído daí que eu era uma das «crianças da
Áustria». E, por isso, depositaram uma parte do roubo, que era para mim
extremamente importante do ponto de vista emocional, de maneira que pudesse ser
encontrada. Eram realmente ladrões com coração e talvez esse procedimento
mostre ainda hoje a importância que teve para nós, crianças, essa acção
admirável do após-guerra.
Todas
as fotografias estão, assim, de novo colocadas cuidadosamente no álbum da minha
infância e todas as cartas, apontamentos e endereços guardados em segurança. E
salvaram-se mesmo todos os rolos dessa viagem, de modo que pude fazer e ordenar
todas as fotografias, que constituem uma documentação completa. Dessa viagem
nos ficou, igualmente, a mim e a minha mulher, uma impressão duradoura, sem
nada que a perturbe, e confirmou tudo o que eu contara no período do noivado
sobre a boa gente de Portugal (e ainda o excedeu! – observação da minha
mulher).
Martin Strutzenberger
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