Republica-se, nesta série «Estrangeiros
sobre Portugal», um apontamento de Clarice Lispector que já havia sido
divulgado no Malomil.
O
Instituto Moreira Salles tem uma página sobre
Clarice Lispector onde existe de tudo: vida, bibliografia livro a
livro, traduções comparadas, uma infinidade de «valências», que é termo não
usado por Clarice – e ainda bem. Entre o muito que nos oferece, o Instituto
disponibiliza em linha o caderno pessoal de Clarice,
«caderno de bordo» de 58 páginas, doado pelo filho e herdeiro da escritora, em
2012.
Há precisamente setenta anos,
Clarice fez escala em Lisboa, rumo a Nápoles. Era Agosto. Antes disso, fizera
escala em Fisherman’s Lake, na Libéria, e daí algumas referências a negros e
negrinhos, anotações que mais tarde seriam incluídas no conto «A menor mulher
do mundo», de Laços de Família.
Também anotações esparsas que seriam integradas no romance O Lustre, publicado em 1946.
Lisboa, 2 de agosto de
1944
Almoço e jantar com Ribeiro Couto. Tudo bem. E
no fim uma sensação de extremo cansaço e aborrecimento, de fim, de fim, de fim.
Disse que era difícil me desenhar, tinha alguma coisa que não se pegava e a
doçura. Que eu tinha três coisas: ____________: infância, vida profunda e
alguma coisa áspera. Disse: animalidade banhada de luar. Queixo saudável. Deus
meu me perdoai, me dai real paz.
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Não sei, talvez só em choque com os
outros se tenha amor por si mesma.
Lisboa, 3 de agosto de 1944
Ontem – lanche com [Moscoso?], almoço e
jantar com Ribeiro Couto, numa quinta e a beira do mar. Depois fomos a um lugar
de ouvir fado, depois fomos à feira, bar Sevilha. Voltei 2 da madrugada e dormi
até 1 de hoje. Hoje jantei com R.C. e Maria Archer.
(Este não é sopa)
Esparadrapo
Naftalina
Um ou dois vestidos
Naftalina
Um ou dois vestidos
Sola de sapato
Sapato preto
Expressões italianas
Fazer as unhas antes
de ir
A única coisa firme e
boa na vida é estar mais ou menos contra todo o mundo e só ser de e com
algumas. O que não exclui amizades, humanidade, piedade etc.
João Gaspar Simões
Rua da Artilharia, 44 – 4º andar
Não, não, eu não perdi minha
vida, mas falei demais
Lisboa, 4 de agosto de
1944, sexta-feira
Acordei quase dez horas. Ontem jantei em Cacilhas com Ribeiro Couto e Maria Archer. Fiz compras de manhã, fui à casa de Ribeiro Couto, almocei com ele, li capítulo dos bonecos de barro. Só de tarde ele disse quanto gostou. Disse que a mim não adianta dar conselhos, que sem ter experiência eu sei de tudo. Coisas agradáveis e bem observadas, já ouvidas ou sentidas. Depois do almoço ele me mudou. Hotel mais barato é melhor. “Sem aqueles homens do Hotel Astoria, no hall, admirando você embasbacados”. Mudei-me para o parque Palacio. Li todo o romance de Maria Archer. Saudade de M. Fui jantar em Bucelas – paisagem nítida e cor-de-rosa ovelhas – olivais – Tejo –
negros dormindo na rua. Negrinhos com ar carioca metidos em togas, em passo
ligeiro de malandro. Carnaval, Hollywood, os livros exóticos estragaram um
pouco essa primeira impressão que poderia ser extraordinária.
Uma das melhores coisas interiores é sentir que hoje ainda não é amanhã, que amanhã fatalmente virá, mas que hoje é inteiramente hoje.
Uma das melhores coisas interiores é sentir que hoje ainda não é amanhã, que amanhã fatalmente virá, mas que hoje é inteiramente hoje.
Vilas econômicas –
Citael, Citael, sobretudo Citael – Ela sorriu pra mim, quando não sorri para
quase ninguém. Diz a madrinha qu’ela achou-me engraçada e sem razão, com meus
cabelos assim e tão novinha, acrescentou. Voltei uma hora, vou dormir, ler um
pouco. Amanhã, trabalhar no meu livro, fazer o possível para suportar sem
excessiva inquietação essa semana que vem até ir a Nápoles – Estado de viagem,
de espera, de saudade, de projetos, de inquietação e ignorância e ansiedade.
Tania, minha irmãzinha, eu te amo. E minha Elisa também. Marciazinha está
dormindo agora. M. já deve estar em Nápoles. Quero que ele sinta tanta falta de
mim quanto eu dele. Por culpa dele, porque ele sempre arranja um jeito de ler
minhas notas, nada posso dizer a seu respeito. No entanto, há bastante.
Boa-noite.
Lisboa, dia 8 de
agosto de 1944
Que coisa desagradável, desagradável, desagradável. Ribeiro Couto jantou comigo na casa dele, já pela segunda ou terceira vez. Não vi nada demais nisso, ele me tratava como camarada, e eu até ficava com medo que ele estivesse saindo comigo de má vontade, só por dever de ser delicado. Fez duas poesias sobre mim, e disse que fez muitas outras por causa de mim. Que há muito tempo isso não sucedia. Que ele ia sentir minha falta. Que eu era estranha e curiosa. Mil vezes, a propósito de tudo, me dizia como ele era discreto, como o principal era a reputação. Que o fato de eu ter ido à casa dele, aos olhos dos outros, era como se eu tivesse dormido com ele. Por isso era melhor não dizer a ninguém. E hoje me fez fazer um papel chatíssimo, obrigando-me a fingir que era uma americana, para um amigo dele, “defendendo minha reputação”. Que nojo, que cansaço. Já há dias notava que ele se
aproximava
um pouco de mim. Hoje andou de braço comigo – tão desagradável meu papel. E
depois, enquanto na feira esperávamos a roda, segurou-me em mão, procurou
encostar não na fazenda mas no pulso. Retirei-a discretamente. Disse que sou
complicada e austera, que é horrível que ele se sinta atraído por pessoas
diferentes dele. Que poderia ficar comigo três dias sem parar até eu morrer de
cansaço. Eu já previra indistinta [a] isso, mas ele insistiu tanto para
dançarmos. No carro, segurou minha mão, beijou-a muitas vezes, encostou-a ao
rosto. Eu fiquei fria de aborrecimento. Eu disse: que explosão. Ele disse: só interna
e mais coisas. Que ele não tinha dormido por minha causa (ele tinha antes
contado apenas a insônia). Depois de outras tentativas, que eu repelia vexada,
ele disse que sentia muita ternura por minha vida, uma vida difícil. Depois viu
mesmo o meu silêncio, e disse: mais tarde você vai ver, vou me vingar. Eu
disse: como?! Ele disse: sem gestos.
Antes eu vira que ele
afastara [Moscoso?]. Disse-lhe que este não aparecera, ele retrucou: ele viu
seus cabelos, sua boca, mas pensou que você era leviana, quando viu que não,
afastou-se. Deus meu, me muerdo las manos de solitud. Mas não há nenhum desespero,
há que é: desagradável. Amanhã há um jantar com convidados na casa dele. Assim
não me incomodo. Mas quinta, sexta, sábado e domingo? Esquivar-me sem
ofendê-lo. Disse-me que ainda no Rio, ele procurava me ver, em vez de passar
por não sei que rua procurava a Silveira Martins. Que a base de vários poemas
são agora olhos cinzentos. Me desagrada, horrível esse derrame lírico. Que eu o
inspiro. Que dei vida às coisas. Que descubro pequenas coisas que ele sentia
mas não sabia definir (mandíbulas das portuguesas)
Chuto, chato. Minha
querida, sei que você está sozinha, mas você é você. Quando chegar em Nápoles,
arranja um modo de trabalhar e ter horário e nesses intervalos trabalhar para
você mesma, com o impulso que o trabalho fora dá. E que os homens façam o que
quiserem. Inclusive M., que eu amo. Ribeiro Couto disse que todos sabiam que eu
e Lúcio éramos namorados. Quero gostar de várias pessoas para não esperar nada
de nenhuma, particularmente. Não quero que minha vida seja uma tortura de
desilusões. Noto que de novo tenho que fazer a minha vida, que me defender dos
outros. No fundo eles hão de rir de mim. Ou não? Possível não. O fato é que
tenho que considerá-los em bloco para que nenhum deles particularmente me fira.
É, a solidão anda. Boa-noite, querida. Durma bem!
Sábado – fazer unhas,
me vestir, ir ao cinema, buscar minha pulseira, comprar um livro policial, de
noite, ler.
Domingo – trabalhar
até meio-dia, escrever carta, ir ao cinema.
Segunda – trabalhar até às doze horas, ler, ir ao cinema Todos os dias – trabalhar, ir ao cinema, ler policial, procurar costureira segunda-feira, indagar cartomante
Segunda – trabalhar até às doze horas, ler, ir ao cinema Todos os dias – trabalhar, ir ao cinema, ler policial, procurar costureira segunda-feira, indagar cartomante
Segunda-feira: comprar
naftalina, comprar chapéu palha de milho, endireitar a unha, trocar o livro,
comprar papel-carta, escrever, buscar a pulseira, dar broche prata consertar,
telefonar costureira (Frederic-Luisa), ir ao cinema (Tivoli)
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