4. As regiões autónomas e os constitucionalistas
Não foi a invocada falta
de tempo (de transição) que prevaleceu no debate entre André Gonçalves Pereira,
Jorge Miranda e Miguel Galvão Teles, discípulos académicos de Marcelo Caetano,
para os quais foi precisamente com as rupturas que a revisão constitucional de
1971 revelou e (não) trouxe que, quanto à evolução política tanto nas colónias
como em Portugal, «as coisas acabaram», a ocasião foi «perdida»[1]. E Jorge Miranda, embora não
aprofundando, também veio considerar bastante duvidoso ter por correcta, mesmo
juridicamente, a qualificação das províncias ultramarinas como regiões
autónomas e serem patentes, em qualquer caso, as diferenças com o regime
constitucional da autonomia posteriormente criado na Constituição de 1976 para
os Açores e a Madeira[2].
Na época, a maioria dos
constitucionalistas foram críticos, exceptuando a surpreendente, variada e
«melhor colaboração» prestada pelo ex-integracionista ferrenho Afonso Queiró, catedrático
da Faculdade de Direito de Coimbra[3], e a
singular opinião negativa de Adriano Moreira.
Segundo Armando Marques
Guedes – antigo assistente de Marcelo Caetano e regente da disciplina de
Direito Constitucional na Faculdade de Direito de Lisboa, professor catedrático
no ISCSPU (Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina) com
trabalho sedimentado sobre a questão –, não se poderia, no caso, aludir a
descentralização política nem mesmo a descentralização legislativa ou a
legislação descentralizada. O Estado regional, como fórmula de compromisso ou
de transição, tanto poderia assumir a estrutura de um Estado composto (se
adoptasse a descentralização politica e legislativa, o que implicava a ausência
de tutela), como a de um Estado unitário (se se limitasse à fórmula da
desconcentração de poderes). No caso português – visto que a solução adoptada
pela revisão constitucional, no campo político, legislativo e executivo, se
centrava na vinculação hierárquica perante o Ministro do Ultramar –, tratava-se
de criação um Estado regional como desconcentração: só uma parte dos poderes de
comando e decisão era concedida aos órgãos territoriais pois os órgãos centrais
conservavam a faculdade de revogar os actos por eles praticados. Em
consequência e no plano de princípios, a pedra de toque da construção assim
erguida estava na fiscalização da constitucionalidade e, sobretudo, da
constitucionalidade orgânica, cujo órgão central (e do modelo de fiscalização
concentrada) era, desde há muito, o Conselho Ultramarino[4].
Também desenvolvido – e
iniciado nos seus tempos de estudante – foi o ensaio de Fausto de Quadros,
então assistente no ISCEF (Instituto Superior de Ciências Económicas e
Financeiras), de Lisboa. O trabalho – um estudo exclusivamente jurídico, de
direito constitucional e administrativo, invoca o autor – foi concluído e
publicado ainda antes da aprovação da lei de revisão mas beneficiou do
conhecimento do Parecer da Câmara Corporativa[5]. Para
Fausto de Quadros, a alteração fundamental estava na qualificação das
províncias ultramarinas como regiões autónomas; ora, estas eram inequivocamente
parcelas integrantes de um Estado unitário, pelo que mais não eram que «partes
de um todo que é o Estado unitário português». Recorrendo ao direito comparado,
constatava que tanto pela Constituição da República espanhola de 1931 como pela
Constituição italiana de 1947 as regiões elaboravam os seus Estatutos – sujeitos à posterior aprovação do Poder
Central, mais precisamente dos órgãos legislativos nacionais –, e eram também
elas a escolher os órgãos de governo próprio, um legislativo (com ampla
competência) e um executivo (deste dependente). Estes elementos faltavam no
caso português. Apesar disso – acrescentava –, por não existir um conceito técnico-jurídico de “região”, não
se poderia dizer estar aceite e cristalizado um conteúdo mínimo e específico,
de modo a autonomizá-lo dentro do comum das colectividades descentralizadas no
seio de um Estado unitário. Tratava-se, consequentemente, de um princípio
maleável e susceptível de várias concretizações. Ou seja, só a próxima futura
revisão da Lei Orgânica do Ultramar poderia desvendar «se «alguns indícios do
princípio federalista» que a autonomia regional comportava poderiam ser
considerados relevantes como «sintomas de uma futura estrutura composta do
Estado português» ou não passariam de meras imperfeições técnicas do legislador[6]. Se
tivesse revisto e aumentado este seu trabalho, Fausto de Quadros por certo
concluiria que a Lei Orgânica do Ultramar aprovada no ano seguinte (1972)
comprimira toda a (eventual) autonomia, ficando-se o estatuto constitucional de
região autónoma pela mera “imperfeição técnica do legislador”.
Lucas Pires – à época, assistente
de Direito Constitucional na Universidade de Coimbra e líder do grupo radical
caracterizado pelas suas posições de “terceiro-mundismo nacionalista e
revolucionário”[7]– apresentou uma primeira
intervenção pública ainda no decurso do processo de revisão num colóquio por
ele dirigido nas instalações da Cooperativa Cidadela de Coimbra[8].
Sobre o essencial da proposta de revisão, descortinava duas opiniões: havia
quem (“da esquerda”) dissesse estar-se perante uma renovação ideológica (por
contraponto à manutenção do processo de designação do Chefe do Estado, que
constituía alicerce da permanência), pois as alterações propostas seriam mais
de carácter doutrinário do que organizativo; outra versão (“situacionista”)
pretenderia não se tratar senão duma alteração de métodos administrativos no
sentido de uma maior agilidade e autonomia dos órgãos de governo do Ultramar[9]. Em
sua opinião, da proposta de revisão poderiam retirar-se três teses: i)- o
Governo mostrava conhecer a existência de alternativas sobre a ideologia ou o
sentido e os métodos de governo do Ultramar e querer criar as possibilidades de
uma opção ou orientação em qualquer sentido; ou seja, tratava-se duma evolução
da política ultramarina, não duma revolução, ainda que pacífica e paulatina[10];
ii)- esta amplitude poderia, no entanto, criar «a vertigem da autonomia pura e simples» cujo resultado seria
«imprevisto e violento»[11];
iii)- portanto, seria aconselhável introduzir
um mecanismo regulador, que tanto poderia consistir
no enraizamento de uma mesma força política nacional, activa e poderosa,
em todo o território, como no reforço da autoridade legal ou real do Chefe do
Estado ou ainda na criação de um Tribunal Constitucional encarregado de zelar
permanente e oficiosamente, pela observância dos princípios mínimos de unidade
e permanência política [12]. Estas
teses serão aprofundadas, após aprovação da lei de revisão, nomeadamente
através da caracterização do Estado regional como «eventual fórmula liberal de
desempate» entre o Estado unitário e o Estado federal, num estudo que Lucas
Pires realizou no programa de trabalhos do grupo de investigação de Direito
Público da Faculdade de Direito de Coimbra[13].
Adriano Moreira – que em
Julho de 1969 fora demitido de director do curso de Serviço Social, mas
mantinha a sua actividade docente no ISCSPU, ainda que afastado da Direcção –
publicou, no decurso do processo de revisão, um curto estudo, começando por
distinguir entre revisão (que só deveria emendar) e reforma (que implicaria a
possibilidade de tocar em valores fundamentais)[14].
Destacando o aparecimento de novas expressões, chamava a atenção para o facto
de nos antecedentes regionalistas francês e italiano – onde não havia problemas
de pluralismo étnico, religioso e cultural nem dispersão geográfica nem guerra
exterior – «a paz civil viu-se posta em causa e a unidade nacional em
suspeita». Por sua vez, para ele, invocar a designação Estado como meramente
semântica era não só «demasiado afoito» como «ambíguo» – e a ambiguidade
mostrava «um primeiro sintoma da doença». Acrescia que as palavras novas não correspondiam
a uma nova política, não passando de um «crisma». Assim, concluía negativamente
que puseram em causa «a credibilidade do desígnio nacional. Afectaram a
afirmação da unidade política. Tocaram na imagem interna e internacional». Ou
seja, para Adriano Moreira, a revisão constitucional fora uma reforma que
revogava “o conceito estratégico nacional” e o Governo, através dela, desistia
«discretamente da missão nacional»[15].
Ora, em sua opinião, em vez de rever e reformar, bastava executar as normas que
já existiam, prosseguindo efectivamente um «institucionalismo comparticipante»,
como expressão de uma «autonomia reconhecida com autenticidade»[16]. Em
escritos posteriores revelou-se ainda mais acutilante: a revisão revogara
«clandestinamente» o conceito estratégico nacional do título VII da
Constituição, sem o explicar nem substituir por qualquer outro, e fora
sobretudo adoptada «por necessidades de lógica normativa da nova imagem
procurada»[17]. Sugeria ainda que a
ambiguidade que rodeava a política ultramarina do Governo tinha um importante
antecedente: o documento que aparecera aquando do Plenário do Conselho
Ultramarino, em 1962, através do qual Marcelo Caetano «propunha uma solução
federal, sem qualquer fundamento»[18];
aliás, Adriano Moreira foi oficiosamente chamado a intervir sobre «o alcance
federalista da proposta governamental» e «o pensamento antigo do
Primeiro-Ministro», a propósito do teor do Parecer da Câmara Corporativa, por
divergências entre o relator, Afonso Queiró (que procurava «impedir que no
texto da proposta ficassem imperativos e sinais muito salientes da concepção
federalista»), por um lado, e, por outro, alguns deputados e o procurador
Antunes Varela (críticos da proposta governamental)[19].
Finalmente, duas opiniões de
constitucionalistas mais recentes.
Marcelo Rebelo de Sousa
contrapõe expressamente a revisão de 1971 ao sentido da revisão de 1959 – que
consagrara o princípio da integração da organização político-administrativa das
províncias ultramarinas no regime geral da administração. No entanto, classifica
o novo regime ultramarino de «resposta política tímida e hesitante», atacada à
direita e à esquerda do Governo[20].
Paulo Otero, num relatório de mestrado no
âmbito da disciplina de Direito Constitucional sobre o pensamento constituinte
português, preparado no ano lectivo de 1986-1987 e editado em 1990, faz uma
apreciação sistemática do estatuto das regiões autónomas segundo a revisão de
1971[21].
Sustenta que a revisão procurava estabelecer o fundamento de uma nova fase do
princípio unitarista, “o unitarismo autonómico», pois atendia-se às
diferenciações regionais no âmbito da política de integração. A exposição
começa por ser, basicamente, técnica. As regiões autónomas integrar-se-iam num
processo de descentralização político-administrativa, mediante um reforço da
competência legislativa e da autonomia financeira-orçamental e de criação de
órgãos próprios. No entanto, como já se referiu acima, não eram titulares de um
poder político próprio e o Estado em que se integravam não perdia o seu caráter
unitário. Assim, a criação das regiões autónomas na revisão de 1971 não
afectava a integridade e a unidade da soberania do Estado e o principal limite
à autonomia regional encontrava-se na faculdade dos órgãos de soberania
revogarem ou anularem os diplomas regionais[22].
Numa opinião mais pessoal, para Paulo Otero a ideia de continuidade nesta
revisão constitucional procurava justificar-se num triplo fundamento: i)- a
autonomia regional seria uma realidade anterior à proposta de revisão; ii) a
concepção evolutiva de autonomia corresponderia ao pensamento de Salazar; e
iii)- integração e autonomia não eram concepções opostas mas conciliáveis.
Quanto a ele, o segundo fundamento não parecia procedente[23]. Não
vai mais longe.
António
Duarte Silva
[1] In Manuel Braga da Cruz e Rui Ramos (org.), Marcelo Caetano – Tempos de Transição,
Porto Editora, 2012, pp. 192/194.
[2] Jorge Miranda, Manuel
de Direito Constitucional, Tomo III, 3.ª edição, Coimbra Editora, 1996, p.
286.
[3] Entre outras, sua carta de 8 de Agosto de 1971, in José
Freire Antunes (org.), Cartas
Particulares a Marcello Caetano, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1985, p.
50
[4] Armando Marques Guedes, “A unidade política nacional
e a autonomia das províncias ultramarinas”, in AAVV, Estudos de Direito Público em Honra do Professor Marcello Caetano,
Lisboa, Edições Ática, 1973, pp. 139 e segs.
[5] Fausto de Quadros, A descentralização das funções do Estado nas Províncias Ultramarinas
Portuguesas, Braga, Livraria Cruz, 1971 (Separata da revista Scientia Juridica), pp. 114 e segs.
[8] Francisco Lucas Pires, O Ultramar e a Revisão Constitucional, Coimbra, Sociedade
Cooperativa Cidadela de Coimbra, 1971.
[13] Francisco Lucas Pires, “Soberania e Autonomia”, in Boletim da Faculdade de Direito,
Universidade de Coimbra, Vol. XLIV, 1973, pp. 135 a 200, e Vol. L, 1974, pp.
107 a 174.
[14] Adriano Moreira, Revisão
Constitucional, Lisboa, s. n., 1971, p. 5 (trata-se de um artigo destinado
a publicação, apenas, nos periódicos Notícias
da Beira, de Moçambique, e Prisma, de
Angola). Ver também a sua entrevista a Amélia Neves de Sousa, Caetano e o ocaso do «Império» -
Administração e Guerra Colonial em Moçambique durante o Marcelismo (1968-1974),
Porto, Edições Afrontamento, 2007, p. 65.
[17] Idem, “O último plenário do Conselho Ultramarino”, in
Notas do Tempo Perdido, Matosinhos,
Contemporânea Editora, 1996, p. 45. Também, e mais desenvolvido, idem,
“Prefácio” a Silvino Silvério Marques, Portugal
– e Agora?, Lisboa, Edições do Templo, 1978, pp. 17/20.
[20] Marcelo Rebelo de Sousa, “”Da crispação institucional
ao equilíbrio instável de poderes”, in António Reis (dir.), Portugal Contemporâneo, Volume V,
Lisboa, Publicações Alfa, 1989, pp. 68/69.
[21] Paulo Otero, “A concepção unitarista do Estado na
Constituição de 1933”, in Revista da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XXXI, 1990, pp. 458 e
segs
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