quarta-feira, 19 de abril de 2017

As colónias enquanto regiões autónomas (3.ª e última parte)

 
 
 
5. As regiões autónomas vistas da esquerda
Nesse ano de 1971, a revista mensal Seara Nova, visada pela Comissão de Censura, publicou dois artigos dedicados à revisão constitucional nos quais os autores, recém-licenciados na Faculdade de Direito de Lisboa e ex-dirigentes associativos, abordavam expressamente a matéria do Ultramar. Evidenciavam uma certa abertura política e até expectativa, tanto mais que ambos os escritos foram publicados ainda no decurso do processo de revisão.
Escrevendo logo depois de conhecida a proposta de lei de revisão constitucional, Alberto Costa começa por destacar ser no campo do estatuto político dos territórios ultramarinos que ela mais inovava, apesar de – comprovando que a aparência das coisas podia não corresponder à sua essência –, o texto governamental afirmar que nesse ponto não introduzia inovação de substância, por já então o Estado português ser um Estado regional. Comparando com os exemplos históricos invocados doutrinariamente por Marcelo Caetano, Alberto Costa constata que no caso português não ocorreria a mesma maleabilidade, pois naqueles exemplos eram os próprios habitantes ou os órgãos parlamentares da região ou do domínio que elaboravam os termos do seu Estatuto. Mas era levado a concluir que, apesar da imprecisão da nova terminologia, a revisão era politicamente fecunda ao alargar o leque de opções e alternativas possíveis. Consequentemente, poderia trazer «um desbloqueamento, a nível constitucional, da política ultramarina» e representar um «ensaio de instrumentos juridicamente aptos para recobrir e enquadrar ajustamentos e viragens»[1].
O artigo de Salgado de Matos trata do texto aprovado pelo Plenário da Assembleia Nacional – a que procedimentalmente se iria seguir a versão definitiva a cargo da Comissão de Redacção e Legislação e o envio para promulgação pelo Presidente da República. Destaca que a discussão parlamentar fora «movimentada e buliçosa»; cabia agora «averiguar se a animação significou uma direcção firme e, em caso afirmativo, em que medida foi inovadora tal direcção».
Havia no entanto uma questão prévia, crucial para boa compreensão dos mecanismos constitucionais: a distinção entre constituição escrita e constituição real. As energias dos deputados foram absorvidas por quatro temas, de muito desigual significado: as alterações respeitantes ao Ultramar, o modo de eleição do Presidente da República, os direitos e garantias individuais e a inserção da palavra Deus na Constituição. Especificamente quanto ao Ultramar, houvera querelas: à primeira vista o sentido da proposta governamental era claro (autonomia e descentralização) mas esta clareza era aparente, pois ora se apresentavam as alterações como profundamente inovadoras, ora se minimizava a renovação, acentuando a continuidade ao ponto de a própria necessidade da proposta se desvanecer. Tudo visto, as alterações quanto ao Ultramar aumentavam a indeterminação da constituição real pois que uma das linhas de força da nova constituição escrita – a descentralizadora – abria caminho a uma constituição real – que só o tempo e os homens formariam –, constituição esta capaz de equacionar os conflitos de interesses existentes (e deles resultantes).
A conclusão de Salgado de Matos era bem avisada: quanto à autonomia do Ultramar, a revisão constitucional aumentava a indeterminação que separava a constituição escrita da constituição real e não se devia pensar que a constituição real ultrapassaria depressa a ambiguidade agora escrita, pois que a autonomia era a manifestação jurídica duma certa relação de forças – que «só mudará à medida que estas evoluírem»[2].
O Partido Comunista Português, através da Comissão Política do Comité Central, era inequívoco. Entendia que a proposta de revisão constitucional confirmava a continuação e o agravamento da crise do regime e das suas contradições internas até porque a declaração da autonomia das colónias e a designação honorífica de Estados traduziam «um novo recuo político do fascismo, imposto pela luta dos povos da Guiné, Angola e Moçambique e pela pressão da opinião pública internacional». Considerando que o significado essencial de tais medidas residia em que, por detrás delas, o governo visava prosseguir a política de dominação e de guerras coloniais, o PCP anunciava uma série de acções e medidas destinadas a combater firmemente quaisquer ilusões de que Marcelo Caetano se proporia levar a cabo um real processo de liberalização, democratização e descolonização[3].
Embora não tenha conseguido superar a proibição da sua difusão pública, José Magalhães Godinho e amigos próximos da Acção Socialista Popular (ASP) – do grupo da “Oposição Democrática” que tinha apoiado uma das listas concorrentes em Lisboa às eleições legislativas de 1969 e que estaria na origem da fundação do Partido Socialista em 1973 – dirigiram, em Junho de 1971, ao Presidente da Assembleia Nacional uma “representação” a propósito da revisão constitucional, onde sustentaram que ela apenas se limitava ao regresso à política tradicionalmente autonomista da Monarquia e da República Democrática. Ora, sendo o problema do Ultramar o mais sério com que o País se debatia, haveria que ter a coragem realista de ir mais além na enunciação de princípios, pois só através de uma solução política de carácter sincero e verdadeiramente democrático seria possível alcançar a paz[4].
No Ultramar, da parte da chamada “Oposição”, sobressaiu a posição assumida por António de Almeida Santos, então advogado em Moçambique, para quem a reforma constitucional fora decepcionante. É certo que – condescendia – se lhe podia creditar «uma mudança de agulha», pois passava uma certidão de óbito à orientação integracionista e assimiladora de que Salazar fora «orago», regressando-se a uma «autonomização gradativa». No entanto, o busílis do grau da inovação residia no conceito de região autónoma. Só poderia falar-se verdadeiramente de Estado regional se e quando às regiões autónomas coubesse elaborar o seu próprio estatuto, ou, no mínimo, uma activa participação nele. Ora, no caso da revisão de 1971, a lei era clara, atribuindo esse poder exclusivamente à Assembleia Nacional. Além disso, a proposta de alteração à Lei Orgânica do Ultramar confirmava que todo o processo de revisão não passara de mais uma sequência da «política da tabuleta», limitando-se a mudar o nome às coisas. Ao vendaval de baptismos e de aparente esboço de um esquema de tipo federativo não correspondiam contudo sensíveis mudanças estruturais. Mas, como as aparências eram num «sentido autonomizante, de gradual estadualização das Províncias Ultramarinas», isto é, de esboço de um esquema de tipo federativo, previa que talvez a pressão das realidades viesse, e rapidamente, «a converter as coisas naquilo que parecem»[5]. 
Da parte dos movimentos de libertação nacional e especificamente sobre as alterações constitucionais de 1971 quanto ao Ultramar, só se conhece uma exposição feita por Amílcar Cabral e constante do seu extenso relatório anual, este intitulado «O oitavo ano da luta armada de libertação nacional». Amílcar Cabral começava por recordar que Marcelo Caetano avançara com a proposta de revisão pouco depois da «ignóbil agressão contra a República da Guiné» e vinha atribuir aos território africanos sob dominação portuguesa, um novo Estatuto pelo qual passavam a gozar de uma certa autonomia, «progressivamente e num prazo que nem a lei nem o dirigente colonialista português ousam prever». Depois, transcrevendo-os, reproduzia largos extractos da apresentação feita perante a Assembleia Nacional. Anotava que Marcelo Caetano aludira muito a Angola e Moçambique mas calara-se quanto à Guiné e Cabo Verde. Sobretudo por duas ordens de razões, acrescentava Amílcar Cabral: Marcelo Caetano sabia que «somos não só autónomos mas também soberanos em mais de dois terços do território nacional»; e também sabia que não havia «no nosso país população suficiente de origem europeia que possa garantir a “rodesiação” que os colonialistas portugueses desejam ver instalar-se em Angola e Moçambique, como a única solução aceitável para pôr fim à sua guerra colonial». Na sua opinião, essa perspectiva – ou mesmo esboço – de criação de novas Rodésias na África Austral era, no fundo, «a única novidade contida na nova Constituição». Em geral, tal «pretensa revisão» ignorava e desprezava mais uma vez o direito à autodeterminação e independência, visando, por um lado, esconder, enganar, desmobilizar e, por outro, obter mais apoio dos aliados. No entanto, sublinhava ser de reconhecer que tais reformas eram «o resultado de um grande esforço de mudança perante o imobilismo hostil dos “ultras”. Mas a montanha pariu um rato – e não é certamente por isso que o nosso povo e os de Angola e Moçambique se batem. Aliás, Marcelo Caetano está farto de o saber»[6].
Na demais, e múltipla, oposição portuguesa, praticamente toda favorável à independência imediata das colónias, a revisão constitucional ultramarina não teve repercussão, mesmo na imprensa clandestina. Porém, crescentemente, a rejeição da guerra colonial rejuvenescia, multiplicava-se, radicalizava-se, militava e divergia, tornando-se vigorosamente antifascista, anticolonialista e anti-imperialista[7].
 
6. O ser e o nada da revisão
Em suma, quanto ao Ultramar, Marcelo Caetano conseguiu fazer triunfar a proposta que redigira, pois, no Título VII, o texto dos artigos ficou tal e qual, com três aditamentos: o artigo 133.º passou a prever, em parágrafo único, a (mera) possibilidade de criação de serviços públicos nacionais; no artigo 136.º, alínea b), determinou-se que só Assembleia Nacional podia estabelecer os estatutos das províncias ultramarinas (matéria antes omissa e destinada a servir de prevenção contra qualquer “golpe secessionista”, por via legislativa); no mesmo artigo foi aditado um parágrafo 5.º sobre o «indeclinável dever do governador» de «sustentar os direitos de soberania da nação e promover o bem da província» (ou seja, impôs-se um novo freio anti-autonomista, mais por causa das derivas secessionistas, incluindo do próprio governador, do que por se temerem negociações com os movimentos de libertação).
No processo de revisão, não houve votação final global, apenas um voto de confiança à Comissão de Legislação e Redacção para a redacção definitiva. Portanto, só foram significativas as faltas à sessão terminal de 7 de Julho[8]. Comentou posteriormente Marcelo Caetano que a tensão era grande e o renhido grupo dos deputados integracionistas só acabou por aceitar as alterações após uma reunião especial em que lhes foi expressamente solicitado para não porem «em cheque o chefe do Governo»[9].
Mas tratou-se de uma vitória ambígua com contradições preocupantes, senão “pírricas”: i) não alargou a base de apoio, nem na metrópole nem no Ultramar; ii) não atraiu a Oposição (da qual apenas um pequeno sector se manteve na expectativa); iii) dividiu a Assembleia Nacional, perdeu o apoio da “ala liberal” e passou a ter de enfrentar um combativo e radical sector nacionalista-conservador (integracionista); (iv) não alcançou repercussão internacional. E admitiu logo uma derrota na secretaria, pois, como o destino da reforma constitucional quanto ao Ultramar passara a depender da futura Lei Orgânica do Ultramar, esta – cuja aprovação foi objecto de «críticas contraditórias» e provocou «certa celeuma no País», como reconheceu o Ministro do Ultramar e principal responsável, Silva Cunha[10] – irá paralisá-la.
     Vista da história, a revisão constitucional perdeu grande parte da importância que em 1971 parecera e pretendera ter. Na opinião de Norrie MacQueen, a essência da nova política de “autonomia progressiva e participada” residira na pretensão de Lisboa em entregar o poder sem o negociar nem dele verdadeiramente abdicar (reservando-se o direito de veto) e acentuar esta pretensa mudança através da retórica da autonomia política e da designação de “Estado”[11]. Fernando Rosas é mais concludente: a revisão comprovou que acabara o tempo dos processos lentos de aproximação à descolonização (aliás, concebida exclusivamente no sentido de manter a hegemonia branca) e subsumiu-se no facto dramático da continuação da guerra sem solução credível a curto prazo[12].
 A solução militar fora uma condicionante central da sucessão de Salazar em Setembro de 1968 e funcionara como factor de coesão no bloco do poder[13]. Marcelo começara procurando «liberalizar mantendo a guerra» mas, desde 1970, passara a «manter a guerra sem liberalização»[14]. Embora desencadeadas na fase em que apresentava a protecção dos colonos como principal razão para a continuação da guerra, aquelas que Marcelo Caetano definira como «profundas modificações» trazidas pela revisão constitucional de 1971 quanto ao Ultramar revelaram-se, desde a sua formulação, uma aposta exclusivamente pessoal, de cariz académico e equivocamente apresentada. Politicamente, na sequência da revisão e da nova Lei Orgânica do Ultramar, de 1972, o Presidente do Conselho iria ficar politicamente mais diminuído, incapaz e, até, psicologicamente perturbado[15]. Nada ganhou, e perdeu o apoio firme da “ala liberal”, do sector nacionalista-conservador (integracionista), das elites coloniais e da Igreja católica.
Também surgiram desentendimentos na hierarquia militar. Segundo diria mais tarde o Presidente da República, Américo Tomás, «determinadas passagens» das palavras do seu discurso, em 27 de Setembro de 1971, na cerimónia de condecoração de Marcelo Caetano com a Grã-Cruz da Ordem da Torre e Espada, comemorando os três anos da posse como Presidente do Conselho, não agradaram a várias pessoas «possivelmente por não terem entendido o objectivo do que foi dito ou por acharem inconveniente o fortalecimento da posição do doutor Marcello na chefia do Governo»[16].
Talvez em contrapartida ou por não (querer) ter alternativa, na “conversa em família”, de 3 de Julho de 1972, dedicada a explicar sistematicamente as intenções que ditaram as reformas constitucionais e a nova Lei Orgânica do Ultramar e o seu “espírito novo”, Marcelo Caetano concluiu a intervenção televisiva com a consideração de que, aproximando-se a eleição do Chefe de Estado, não era altura para os portugueses se dividirem, pois o Almirante Américo Tomás prestava-se «ao sacrifício de continuar a exercer a presidência da República»[17]. E assim o próprio Marcelo Caetano pôs termo final à revisão.
 
António Duarte Silva






[1] Alberto Costa, “Anotações á proposta de lei de revisão constitucional” in Seara Nova, n.º 1503, Janeiro de 1971, pp. 3/5.


[2] Luís Salgado de Matos, “A revisão constitucional” in Seara Nova, n.º 1510, Agosto de 1971, pp. 2/6.


[3] PCP, “Unidade na acção para a conquista da liberdade, pelo fim imediato da guerra colonial”, in Avante!, n.º 424 – 1.ª Quinzena de Janeiro, 1971.


[4] José Magalhães Godinho, Pedaços de uma vida, Lisboa, Edição Pégaso, 1992, p. 65.


[5] António de Almeida Santos, já agora…, 2.ª ed., Lourenço Marques, Minerva Central [1972?], reproduzido in idem, Gritante Justiça – Textos proibidos do meu tempo de Moçambique, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2016, pp. 267 e segs.


[6] Amílcar Cabral, “Algumas palavras sobre a revisão da Constituição Portuguesa”, in Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Volume II, Lisboa, Seara Nova, 1977, pp. 96/97.


[7] Por todos, António de Araújo, A Oposição Católica no Marcelismo: o Caso da Capela do Rato, tese de doutoramento, Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa, Setembro de 2011, Volume III, em especial, pp. 777 e segs. e pp. 1015 e segs.


[8] Entre os 23 deputados que faltaram a esta sessão de 7 de Julho, destacam-se: Franco Nogueira, Correia das Neves, Pinto Balsemão, Sá Carneiro, Henrique Tenreiro, Veiga de Macedo, Miller Guerra, Joaquim Macedo Correia, Pinto Machado, Magalhães Mota, José Guilherme de Melo e Castro, Gonçalves de Proença, Santos Bessa, Luís Teixeira Pinto, Rui Pontífice Sousa, Victor Aguiar e Silva. Ou sejam dois “ramalhetes” de deputados, um de integracionistas e outro de liberais.  


[9] Marcelo Caetano, Depoimento, cit., p. 35.


[10] Silva Cunha, O Ultramar, a Nação e o “25 de Abril”, Coimbra, Atlântida, 1977, p. 282.


[11] Norrie MacQueen, “As guerras coloniais”, in Fernando Rosas e Pedro Aires de Oliveira (coord.), A transição falhada…, cit., p. 276. Também Luís Reis Torgal, Marcello Caetano, Marcelismo e “Estado Social” – uma interpretação, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013, pp. 56 e 91.


[12] Fernando Rosas, “Prefácio – Marcelismo: ser ou não ser”, in Fernando Rosas e Pedro Aires de Oliveira (coord.), A transição falhada…, cit., pp. 20/21.


[13] José Medeiros Ferreira, Cinco regimes na política internacional, Lisboa, Editorial Presença, 2006, p. 113.


[14]Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), Vol. VII de José Mattoso (dir.) História de Portugal, Círculo de Leitores, 1994, pp. 547 e segs.


[15]Quanto à sua “visível perturbação”, ver Mário Matos e Lemos, O 25 de Abril, uma síntese, uma perspectiva, Lisboa, Editorial Notícias, 1986, p. 24, e os testemunhos de Mário Gibson Barboza, Na diplomacia, o traço todo da vida, Rio de Janeiro, Record, 1992, p. 270, e. Joaquim Silva Pinto, Do pântano não se sai a nado, Lisboa, Gradiva, 2014, p. 67.


[16]Américo Thomaz, ´´Ultimas Décadas de Portugal, Volume IV, Viseu, Edições FP, 1983, p. 183. Também José Manuel Tavares Castilho, op. cit., pp. 665/666.


[17] Marcelo Caetano, Progresso em paz, Lisboa, Verbo, 1972, p. 182. A decisão de não mexer no sistema de eleição presidencial fora tomada por Marcelo Caetano antes se ter iniciado a preparação do Anteprojecto de Revisão Constitucional – cfr. as declarações de Miguel Galvão Teles in Manuel Braga da Cruz e Rui Ramos, Marcelo Caetano – Tempos de Transição, cit., p. 198.




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