O Fim do Império (II): a via legal
3. Sobre as independências
Quanto ao modo, a descolonização portuguesa
desenvolveu-se por acordos de independência – tal como acontecera na maioria
dos Estados da África francófona. Outras eventuais modalidades registadas pelo
direito internacional seriam: um acto unilateral (decisão do país colonizador,
deliberação da ONU ou declaração unilateral de independência) ou a via da devolution (concessão progressiva de
independência, que prevalecera no Império britânico). Acresce que, com a
evolução do princípio da autodeterminação para direito à autodeterminação e
independência dos povos coloniais, a descolonização autonomizou-se enquanto
modo específico de formação do Estado por separação da sua metrópole e passou a
ter natureza jurídica (assim se distinguindo da secessão).
Os acordos da descolonização foram negociados entre o
Estado português e os movimentos de libertação de cada território sem
intervenção significativa de terceiros – nomeadamente da ONU, sempre «uma
presença débil»[1], embora apadrinhadora. Resultaram sim da
«irresistível»[2]
convergência entre os movimentos de libertação nacional e o MFA, num quadro
interno e internacional muito favorável aos nacionalistas africanos[3].
Kenneth Maxwell chega mesmo à conclusão de se ter assistido a uma «vitória
silenciosa da diplomacia africana e não-alinhada»[4], salvo no caso de Angola em
que esta fracassou rotundamente.
Houve, historicamente, vários tipos de acordos de
independência, por exemplo, as chamadas “conferências constitucionais”. Embora
na doutrina tal não seja manifesto, os acordos da descolonização portuguesa – dados
os seus sujeitos, objecto e fins – devem qualificar-se como acordos
internacionais, ou seja, convenções regidas pelo direito internacional. Tiveram
formalmente um precedente histórico-jurídico nos acordos de Évian, assinados
entre os representantes do Governo francês e da Frente de Libertação Argelina,
em 18 de Março de 1962. Mas também existiram diferenças substanciais entre
ambos modelos, tanto mais que os acordos de descolonização portugueses omitiram
as questões relativas à chamada “sucessão de Estados”. Longa e penosamente
negociados, os Acordos de Évian regularam (em três partes) o cessar-fogo, as
garantias de autodeterminação e a organização de poderes públicos na Argélia
durante o período transitório, e, além disso (aqui residirão as maiores
diferenças com o modelo português), definiram cautelarmente a solução de
independência da Argélia, as garantias quanto ao exercício de direitos dos
argelinos e dos franceses residentes, os princípios de cooperação económica e
financeira e foram sujeitos a duplo referendo, em França e na Argélia.
Já quanto à execução, ocorreram variadas violações, sobretudo
dos Acordos de Évian e do Alvor. Os efeitos colaterais foram semelhantes na
violência e desagregação social que provocaram, muito embora a descolonização
portuguesa tivesse sido promovida pelos militares em guerra (e não contrariada,
como ocorreu com os oficiais “putchistas” franceses, que mantiveram uma
organização armada secreta, a OAS), e – ainda comparando – mais apressada e
rapidamente absorvida[5].
4. O modelo jurídico-politico
O enquadramento jurídico foi formalmente cuidado:
decorreu da Lei da Descolonização, de 27 de Julho de 1974, da Comunicação do
Governo português à ONU, de 4 de Agosto, e dos princípios consagrados nos
sucessivos acordos. O seu desenvolvimento foi acelerado, pois determinado pela
conjuntura portuguesa, pela situação concreta de cada território e por factores
internacionais. Decisivamente, as negociações iniciaram-se com os movimentos de
libertação mais fortes (PAIGC e FRELIMO), tendo a situação militar condicionado
o comportamento da parte portuguesa e a aceitação de três condições prévias (ao
próprio cessar-fogo), impostas em conjunto pelos movimentos de libertação: (1)
reconhecimento do direito à autodeterminação e independência de todas as
colónias africanas portuguesas; (2) reconhecimento da sua legitimidade; e (3)
exclusividade de representação. Ressalvando o caso (especial e mais complexo)
de Timor, foram estas condições – resumindo precisamente o estatuto
jus-internacional alcançado pelos movimentos de libertação nacional[6] – que
acabaram por determinar e caracterizar a chamada “descolonização portuguesa”,
pois os acordos limitaram-se a definir as vias de formação dos novos Estados e
a regular a técnica de passagem de poderes, proporcionando apenas uma
«independência sem descolonização»[7].
Salvo quanto à Guiné-Bissau – em que se limitou ao
reconhecimento de Estado – Portugal aprovou, na sequência e em aplicação dos
respectivos acordos de descolonização, as seguintes quatro leis constitucionais
para regularem a orgânica transitória do poder político até à declaração de
independência: para Moçambique (Lei n.º 8/74, de 9 de Setembro); para Cabo
Verde (Lei n.º 10/74, de 15 de Novembro); para Angola (Lei n.º 11/74, de 27 de
Novembro); e para S. Tomé e Príncipe (Lei n.º 12/74, de 17 de Dezembro).
A proclamação (unilateral) da República da
Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973, e o seu reconhecimento de jure, em 10 de Setembro de 1974, na
sequência do Acordo de Argel celebrado entre o PAIGC e o Governo português,
foram o primeiro passo da desintegração do Portugal colonial. A descolonização
portuguesa dependeu (sempre) de dois factores principais: o tempo e o reconhecimento
da autodeterminação. Em consequência da posição imóvel historicamente assumida,
o Governo português ficara refém do muito propalado “efeito dominó” e,
recebendo a “secessão” guineense ainda no seu mandato, Marcelo Caetano não
tivera «a autoridade necessária para, de um momento para o outro operar uma
viragem inesperada»[8].
Aliás, a falta de «uma estratégia de saída» passara
mesmo a possibilitar a eventualidade de sucessivas declarações unilaterais de
independência por todas as partes, perante o envolvimento do próprio Governo
português em estranhas negociações com o PAIGC e misteriosas conspirações
quanto a Angola e Moçambique[9]. Neste
final algo descontrolado do Império Português, a separação dos territórios
coloniais do Estado metropolitano podia mesmo ter-se transformado em
desmembramento e só a Lei da Descolonização e o reconhecimento de jure da República da Guiné-Bissau
abriram a via à independência rápida e geral, negociada e acordada com os
movimentos de libertação nacional, como impunha o direito internacional.
A descolonização portuguesa prosseguiu um modelo
jurídico-político, que a configura, perante o precedente da Argélia, como
«quase original»[10]. Tal
modelo fundou-se, sobretudo, numa legalidade interna e internacional favorável
aos movimentos de libertação nacional: no especial direito da descolonização
criado pelos movimentos de libertação em desenvolvimento do direito à
autodeterminação e independência dos povos coloniais e na Lei n.º 7/74, lei
constitucional portuguesa fruto do “25 de Abril de 1974” e expressão «típica desta
singularmente legalista revolução»[11]. Tal como no precedente
caso da Argélia (que, quase até ao fim, a França defendera como sendo parte
integrante do seu território nacional), aliás também exemplo e bastião para os
movimentos de libertação nacional, o colonialismo português acabou sob
condições tormentosas em tempos de luta armada e legitimidade revolucionária[12].
António Duarte
Silva
[1] José Medeiros
Ferreira, Cinco regimes na política
internacional, Lisboa, Editorial Presença, 2006, p. 121.
[2] Kenneth
Maxwell, “ Os Estados Unidos e a Descolonização Portuguesa (1974-1976)”, in
Luís Nunes Rodrigues (coord.), Regimes e
Império: as relações luso-americanas no século XX, Lisboa, Fundação
Luso-Americana, 2006, p. 208.
[3] António Costa
Pinto, O Fim do Império Português,
Lisboa, Livros Horizonte, 2001, pp. 87/88, e Pedro Aires Oliveira, “A
descolonização portuguesa: o puzzle internacional”,
in Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira (org.), O Adeus ao Império – 40 Anos de
Descolonização Portuguesa, cit., p. 76.
[5] Especificamente
sobre as entorses no caso argelino, entre vastíssima bibliografia, Guy
Pervillé. “Accords d’Évian: les Français ont-ils été dupés?”, in L’Histoire, n.º 433/Março 2017, pp.
24/27.
[6] Com excepção da
UNITA, à data ainda não reconhecida pela OUA. Ver António E. Duarte Silva, “Movimentos
de Libertação Nacional, Descolonização e Formação do Estado”, in AAVV, Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge
Miranda, Volume I, Coimbra Editora, 2012, pp. 383 e segs.
[7] A expressão é,
original e sabiamente, de Aquino de Bragança, "Independence without
Decolonization: Mozambique, 1974-1975", in AAVV, Decolonization and Africa Independence. The Transfers of Power, Yale University Press, Nova Haven e Londres, 1982.
[8] Pedro Aires de
Oliveira, “A Política Externa do Marcelismo: A Questão Africana”, in Fernando
Martins (ed.), Diplomacia & Guerra,
Lisboa, Edições Colibri, 2001,pp. 264.
[9] Por exemplo,
Norrie MacQueen, “Portugal’s First Domino: ‘Pluricontinentalism’ and Colonial
War in Guinea-Bissau, 1963-1974”, in Contemporory
European History, 8, 2 (1999), p. 227. Sobre a eventualidade destas
independências unilaterais de Angola e de Moçambique, também, entre outros,
Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, Alcora
, o Acordo Secreto do Colonialismo, Lisboa,
Divina Comédia Editores, 2013, p. 328
[10] Miguel Galvão
Teles/Paulo Canelas de Castro, “Portugal and the Right of Peoples to
Self-Determination”, in Archiv des
Völkerrechts, 34.Band Heft 1, Março 1996, pp. 34/35. Note-se que estes
Acordos de Évian eram, por obscurantismo, mal conhecidos em Portugal e a delegação portuguesa foi
surpreendida pela sua invocação nas primeiras conversações de Londres com o
PAIGC (cuja delegação era assessorada por especialistas argelinos).
[11] Norrie
MacQueen, A Descolonização da África
Portuguesa - A revolução metropolitana
e a dissolução do Império, Lisboa, Editorial Inquérito, 1997, p. 117.
[12] Em especial,
sobre o êxodo das populações, Elsa Peralta, Bruno Góis, Joana Oliveira
(coord.), Retornar. Traços de Memória do
Fim do Império, Lisboa, Edições 70, 2017.
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