Foi uma seringa a
primeira coisa que mudou a minha vida. Não foi heroína nem insulina, mas os
efeitos foram os mesmos. Devia ter 10 anos e devia ser um sábado de manhã e os
vizinhos do sexto levaram-me com eles à Feira da Ladra. A minha mãe deu-me
vinte escudos, dez cêntimos em euros. Não sei para que era o dinheiro. Ou até
sei, o dinheiro era sempre para se comêssemos alguma coisa pagas com o teu
dinheiro, ou ofereces-te para pagar, e trazes os vinte escudos ou o troco,
estás a ouvir. Não sabia ao que ia, mas assim que lá cheguei percebi que não ia
ficar por ali. Acontece-me assim, às vezes, com casas, com pessoas, com
cidades, com sítios, perceber nos primeiros segundos que os segundos serão
anos, e a Feira da Ladra foi um desses, talvez o primeiro.
Numa das bancas,
normalmente uma toalha estendida no chão com um amontoado de coisas, estava uma
seringa antiga de êmbolo de vidro com uma caixa metálica. Tive perante a
seringa um sentimento que ouço algumas amigas descrever a propósito de sapatos.
Veio o preço. Acima dos vinte escudos, não sei quanto. A nota verde na mão - a
única saudade dos escudos foi termos tido uma nota que quase parecia dólares -
não sei se regateei, se o vendedor achou piada ao miúdo, toma lá, faço-te vinte
escudos. Aqui foi a primeira parte da magia, uma coisa que tinha um preço, mas
podia ser vendida por outro. Agarrei-me à caixa da seringa e continuámos o
passeio por um território que estava a descobrir. Mais à frente um vendedor
olhou para a minha mão, o que trazes aí, mostrei-lhe, quanto queres por isso?
Ele queria a seringa, a minha seringa, queria comprá-la. Quanto quero? Não devo
ter respondido a medo porque ele aceitou logo, nem devo ter pedido pouco,
porque não regateou. Alquimia, a nota verde era agora cinco vezes mais verde,
era azul. Cem escudos, cinquenta cêntimos em euros.
Ainda lá fui uma vez
com a minha mãe comprar um skate, fininho preto, rodas vermelhas, mas o que lá
queria ir fazer era vender, não era comprar. E montei um sistema de recolha de
entulho nas casas das famílias e amigos. As primeiras vezes foi o meu avô Jaime
que me levava, Opel Record branco, mas chegar às nove era tarde, tinha de se
chegar cedo, cada vez mais cedo, para escolher os melhores lugares, para tentar
vender em lote aos que compram por atacado para revender. Para ter mais feira.
Durante vários anos, sempre que podia, aos sábados lá ia, no primeiro autocarro
até à Graça (eram dois, primeiro o 7, acho, era preciso mudar na Almirante
Reis, ou apanhar um táxi.
Vender numa feira
coisas velhas devia fazer parte dos currículos escolares, com carga horária
equivalente a todo o currículo de português que não seja ler e interpretar
textos bem escritos.
Aprende-se que as
coisas não têm valor intrínseco, mas apenas o que alguém naquele momento está
disposto a dar por ela, e que pessoas diferentes pagam diferente pela mesma
coisa. E para ver esse valor é preciso desligarmo-nos de nós e da coisa que
vendemos, e usar todos os segundos possíveis para perceber o outro, o que ele
quer, porque quer, quanto tem, quanto quer deixar de ter, e construir uma
relação instantânea. Não crias a relação, não vendes. Se gostas demais do que
vendes, não vendes.
Um dia levei uma
televisão de táxi e um skate (largo, amarelo, comprado em Nova Iorque, com uma
caveira), e depois a televisão em cima do skate campo de Santa Clara adentro, e
tive um problema, que foi o de vender o skate antes da televisão e se não a
conseguisse vender não a ia conseguir levar de volta até aos táxis. Mas lá se
vendeu a televisão, felizmente a um comprador incauto que não percebeu o dilema
do menino e do mono.
A minha base era a
loja do Sr. Morais, que vendia material militar, com a mulher, a sogra na
porta. Fardos de fardas, de vários tamanhos, camisas, botas, meias, sacos e
mochilas, muitas vezes trocadas pelos magalas que tinham de devolver o material
no fim da tropa (ou seria no fim do ano?) e queriam ficar com coisas de melhor
qualidade e devolver umas calças mais coçadas.
Guardava lá as coisas,
o que não vendia, ou quando já não queria vender mais e queria era ir gastar o
que tinha ganho pela feira (sobretudo artigos militares antigos para uma colecção
que julgava que andava a fazer).
Mas havia ainda outra
coisa, a Feira era um espaço onde não entravam nem leis, nem impostos, nem
recibos, nem bancos. Passeavam por lá fiscais, alguns polícias, mas tudo ali
era outra ordem, coisas arranjadas, coisas roubadas, vendidas para a droga,
muita droga, uma fauna que só ali há.
E não era uma ordem,
eram outras ordens, que uma feira tem muitas camadas, o que se vê e o que não
se vê, as bancas, as lojas, têm clientes de vários estratos, o negócio entre
vendedores (que muitas vezes não se faz por isso mesmo, ou que pode ser feito
por troca), os clientes habituais (para quem se reserva ou finge ter reservado
um artigo, embrulhado em jornal num saco e reservado para dar um ar de
exclusividade que prepara o caminho para o preço salgado), as amizades, os
ódios. E há o turista, que dá sempre mais valor ao objeto mais pequeno e mais
típico e que por mais que pergunte o preço da televisão antiga quer sempre o
bibelô em forma de sardinha ou o azulejo roubado. Tanto azulejo se deve ter
vendido ontem aos estrangeiros da Web Summit.
João Taborda da Gama
(publicado
originalmente no Diário de Notícias,
republicado no Malomil com permissão do autor; obrigado, João!)
Até me formar, arredondei réditos na feira de vandoma.
ResponderEliminarNegociava com livros, de modo a fazer biblioteca grátis com os lucros.
Também efectuei trocas com alfarrabistas.
Igualmente comprei e vendi antigualhas e objectos incomuns. Mas raramente.
Continuo a ir a feira, desta feita em Matosinhos (feira dos golfinhos, mensal).
Porém, agora, só compro: livros, antigualhas e objectos incomuns...