sábado, 11 de novembro de 2017

Por detrás de uma foto famosa.


 
 
Fotógrafos houve que alcançaram fama mundial ou entraram para a história da fotografia graças a uma só foto. Parece-me ser esse o caso de Ruth Orkin. Apesar de ter sido uma excelente fotógrafa que trabalhou para as principais revistas americanas da época, duvido que Orkin tivesse hoje o nome que tem, se não fosse esta célebre fotografia que fez numa esquina de rua em Florença em Agosto de 1951.
 
 
Ruth Orkin, “American girl in Italy”, 1951.
Data e hora da foto: 22 de Agosto de 1951, quarta-feira, 10h 30.
Local: esquina da Piazza della Repubblica com a Via Roma, Florença.
Fotógrafa: Ruth Orkin (1921-1985), fotojornalista americana.
Luz: sem sol directo.
Película: Eastman Super-XX a preto e branco, “safety film” (o primitivo acetato).
 
A figura feminina da foto era uma estudante de arte americana que então dava pelo nome de Ninalee “Jinx” Allen (hoje Craig), de 23 anos, em viagem por Itália. A fotógrafa, então com 29 anos, conheceu-a casualmente num hotel barato de Florença, andando ambas a viajar sozinhas pela Europa – coisa bastante rara na época. Jinx Allen foi convidada por Ruth Orkin para lhe servir de modelo de uma série de fotografias que viria a ser publicada em Setembro de 1952 na revista Cosmopolitan, num foto-ensaio intitulado “Don’t Be Afraid to Travel Alone”. O êxito da reportagem ficou basicamente a dever-se a esta foto. Nos anos 1980, a revista Life desvendou a identidade da retratada, até então descrita simplesmente como uma rapariga americana.
O que se vê neste instantâneo de rua? Uma rapariga bonita, alta e elegantemente vestida, com ar de estrangeira, a passar por um grupo de homens italianos (quinze no total) que a olham com fascínio ou ar matreiro. Um mais atrevido, com a mão esquerda colocada sobre a sua zona púbica, parece dirigir um piropo ou uma assobiadela à rapariga.




Linx enfrentando o pasmo do italian lover e o atrevimento do homem de guarda-chuva.



 Ela enfrenta a situação com uma atitude mista de altivez e contenção, puxando defensivamente o xaile para o peito e evitando sorrir ou olhar nos olhos os seus admiradores de rua. A cena passa-se no centro de Florença, na esquina da Via Roma com a Piazza della Repubblica. A quantidade de homens ociosos pelas ruas, na manhã de um dia de semana, tinha certamente que ver com o ainda forte desemprego, seis anos após o fim da segunda guerra mundial.
O que tem esta foto de tão especial que fez dela um clássico do séc. XX? É uma imagem muito oportuna, registada na fracção de segundo crucial. Excelente na composição, no enquadramento, na luz difusa, na riqueza de pormenores. Mas, para além de ser um “flagrante” tecnicamente perfeito, há nesta foto qualquer coisa mais, que cativa o olhar do simples observador, do amador de fotografia, do cientista social ou da militante feminista. De facto, olhando a cena em pormenor, tem-se uma sensação de choque cultural entre o machismo latino e a atitude independente e liberta da jovem turista americana. Há quem assinale medo no olhar dela, supostamente incomodada pela matilha masculina. As feministas adoptaram esta imagem, que lhes serve de bandeira na sua cruzada contra o assédio de rua. Todavia, a retratada Jinx, hoje com quase 90 anos, não acha nada disso e recusa que a imagem seja uma cena de assédio. Garante que lhe foi agradável a atracção que despertou nos homens italianos, que não achou machistas, mas apenas “muito admirativos”, e diz guardar uma memória feliz daquela cena. As feministas não acreditam e sustentam que Jinx não distingue admiração de assédio.
Na verdade, sabemos que ela não se sentiu nada intimidada, muito menos ofendida pela exagerada admiração que aqueles homens lhe dedicaram. Provam-no as quatro fotos que se seguem imediatamente no rolo, em que se vê a americana, divertidíssima, a passear de lambreta à boleia do homem que se vê com semblante trocista no lado direito da foto.


Jinx Allen à boleia do homem da lambreta (pormenor).
 
 
Esta foto, muitíssimo menos conhecida, é a que se segue no rolo original à imagem famosa. Perante isto, quem acredita que a americana se possa ter sentido intimidada por aqueles homens? É um inegável balde de água fria para as feministas que reproduziram a outra foto em livros de combate.
Por outro lado, o exame da sequência das fotos na prova de contacto do rolo (ver abaixo os fotogramas 8, 9 e 10) mostra que a célebre foto foi encenada ou, pelo menos, repetida de outro ângulo. Com efeito, Ruth Orkin pediu a Jinx que voltasse atrás e recomeçasse a andar no passeio (fotograma 9) de que já tinha descido (fotograma 8). A própria Jinx o confirmou em recente entrevista, dizendo ter obedecido a instruções da fotógrafa. Mas continua a negar que a foto tenha sido propriamente encenada.
 



Fotogramas 8, 9 e 10 do rolo usado por Ruth Orkin em 22 de Agosto de 1951.
 
 Acrescente-se que Jinx veio a casar com um italiano, que foi seu marido durante quinze anos. Hoje a senhora Ninalee Craig vive no Canadá e, em 2011, comemorando os 60 anos da histórica fotografia de Florença, fez-se retratar junto dela, ostentando o mesmo xaile que usava em 1951 e a mesma medalha ao pescoço.

 

Jinx Allen (Ninalee Craig) posando em 2011 ao lado da foto de 1951.

 
 Podemos concluir várias coisas. Desde logo, que a célebre foto de Ruth Orkin não foi um perfeito instantâneo ou flagrante, dado que a repetição da cena na esquina da rua introduziu um elemento de artificialidade, se não mesmo de provocação laboratorial. Sabe-se, também, que Orkin pediu aos homens que não olhassem para a máquina. Mas daí a dizer-se que a foto não tem nada de genuíno vai uma grande distância.
Se considerarmos ainda o efeito que teve sobre aqueles homens ociosos a presença ostensiva das duas jovens americanas, a fotógrafa e a fotografada, sozinhas, isto é, sem companhia masculina, então teremos de admitir que a foto foi igualmente influenciada por essa interacção, ou seja, que não foi indiferente para o sentido íntimo da cena que o fotógrafo fosse homem ou mulher. Ruth Orkin, que está invisível para quem olha a foto, mas não para os quinze homens que ali estão, é realmente uma das protagonistas da cena. Se o fotógrafo fosse um homem, o resultado teria sido diferente, porque os personagens teriam muito provavelmente reagido de outro modo.
Sobre a carreira fulgurante desta imagem até à actualidade, diga-se que ela tem desencadeado debates sem conta. A questão mais debatida é se a fotografia de Orkin pode considerar-se “encenada” ou não. Por outro lado, autoras e militantes feministas continuam a usar esta foto em livros e artigos como ilustração do assédio machista, agora à revelia do que a própria retratada sustenta. As diversas interpretações da imagem remetem para a questão, cada vez mais actual, sobre o que é ou não é assédio. Nos anos 1950 não se pôs essa questão. Havia então uma maior tolerância para com os piropos e os mirones, desde que estes não pisassem o risco da grosseria, generosamente traçado. Em compensação, nesse tempo, os juízos morais incidiram sobre a alegada “indecência” do gesto do homem de guarda-chuva, que alguns ainda tentaram desculpar como um gesto inconsciente de protecção da sua virilidade. Durante anos, a imagem foi censurada, cortando-se a metade esquerda da foto ou apagando-se com aerógrafo a mão do homem do guarda-chuva. Só a partir dos anos1960 foi possível ver a fotografia tal qual ficou no negativo.
Constata-se uma vez mais que as fotografias, como todas as obras de arte, conquistam uma certa independência em relação ao seu autor e à sua “verdade” original. Abandonada a si própria, descontextualizada, vista e revista por sucessivas gerações, uma fotografia vai adquirindo diversos significados, por vezes contraditórios entre si, consoante o olhar e a mente de quem a olha e interpreta. Os críticos de fotografia, jornalistas, historiadores, cientistas sociais e, neste caso, uma testemunha crucial (Jinx) podem tentar repor parte da verdade, mas a imagem continuará a ser interpretada e apreciada à vontade de cada um. De facto, raramente as fotografias são expostas ou publicadas com uma exaustiva contextualização histórica. Será, todavia, necessário saber tudo o que está por detrás de uma fotografia? Não podemos contentar-nos com a ficção que é, no fundo, a maioria das fotos jornalísticas? Perguntas difíceis! Mas muitas vezes nos interrogamos, perante uma fotografia: quem a fez, porque a fez, como a fez? E sucede muitas vezes que, quando temos repostas a essas perguntas, passamos a ver a fotografia de outra maneira.


 
Veja-se agora uma fotografia actual da mesma esquina de Florença, feita pelo carro da Google Street View, acessível online. Repare-se na indumentária quase indistinta de homens e mulheres, a sugerir uma mentalidade muito diferente da de 1951.
Muito a propósito, reproduz-se abaixo outro retrato de Jinx Allen em Florença, no mesmo ano de 1951 e da autoria da mesma Ruth Orkin. A rapariga americana está sentada na Fonte de Neptuno (1565), lendo um roteiro. Por detrás dela, um sátiro parece querer assaltá-la, mas a pose de Jinx é a de alguém que não se deixa intimidar. Sátiros e faunos, geralmente representados com o pénis erecto, como neste caso, aparecem em muitas obras de arte a perseguir ninfas assustadas. Julgo que Orkin poderá ter jogado com isso, apostando no contraste entre o sentido arcaico do bronze e a pose serena da jovem americana, emancipada e aventureira.
 


Jinx e o sátiro na Fonte de Neptuno (Florença, 1951)

 

 
Seguem-se dois retratos da fotógrafa Ruth Orkin. Um de 1939, quando, com apenas 17 anos de idade (!), percorreu os Estados Unidos de bicicleta, com uma máquina fotográfica barata. Outro, nos anos 1950, com ela já melhor equipada.
A terminar, aqui fica outra foto famosa, de tema semelhante ao da foto de Ruth Orkin de 1951. Esta data de 1954 e é de um grande fotojornalista italiano, Mario De Biasi, que dois anos depois fez uma famosa reportagem da revolta de Budapeste.



Mario De Biasi, “Gli italiani si voltano”, 1954.
 
 
Hoje toda a gente diz que esta foto foi inspirada pela de Orkin, publicada dois anos antes. Nem sequer falta um homem de lambreta. A diferença mais flagrante está na perspectiva apenas traseira da mulher. A retratada é Moira Orfei, popularíssima estrela de circo italiana, então com 23 anos. A fotografia foi realmente encenada, assim como numerosas outras que De Biasi fez no mesmo dia, com a mesma modelo a passear-se pelas ruas de Milão no seu vestido branco, sempre rodeada de mirones pouco discretos. O título que De Biasi deu à foto, “Os italianos voltam-se”, não corresponde bem ao que se vê na imagem, em que uma pequena multidão de homens e uma mulher olham Moira de frente. Sucede que esse título retomava textualmente o de uma curta-metragem de Alberto Lattuada, do ano anterior (1953), sobre basbaques masculinos que se voltavam para olhar, miravam insistentemente e perseguiam mulheres bonitas nas ruas de Roma. De facto, a imagem de De Biasi parece mais de um filme do que da realidade.
Encenada ou não, o público gostou e a fotografia, tal como a de Ruth Orkin, tornou-se um ícone – e também um alvo de interpretações arbitrárias e desencontradas.
 

José Barreto
 
 
 
Algumas fontes
 
Ruth Orkin Photo Archive. URL: http://www.orkinphoto.com/
Howard Greenberg Gallery, “Ruth Orkin: Jinx Allen in Florence”. Exhibition, New York, Sep. 16 - Oct. 22, 2005.
URL:  http://www.howardgreenberg.com/exhibitions/ruth-orkin-jinx-allen-in-florence/selected-works?view=thumbnails 
Emanuella Grinberg, “The real story behind 'An American Girl in Italy' ”. CNN, Mar. 30, 2017. URL: http://edition.cnn.com/2017/03/30/europe/tbt-ruth-orkin-american-girl-in-italy/index.html
John Allemang, “A snapshot of sexism or a portrait of composure?” The Globe and Mail, Aug. 12, 2011. URL:
https://beta.theglobeandmail.com/news/world/a-snapshot-of-sexism-or-a-portrait-of-composure/article590345/?ref=http://www.theglobeandmail.com&
Murray Whyte, “An American Girl in Italy”. Interview with Linalee Allen. Toronto Star - Aug. 13, 2011. URL:
 https://www.thestar.com/entertainment/2011/08/13/an_american_girl_in_italy.htmlSat    
Michele Smargiassi, “Gli italiani si voltavano”. Fotocrazia, 15 Ott. 2011. URL:
  http://smargiassi-michele.blogautore.repubblica.it/2011/10/15/gli-italiani-si-voltavano/
 
 

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