O Japão é um lugar que me pareceu ter
saído da imaginação, não sei se da minha, quem me dera ter para tanto. As
pessoas parecem ter bebido de uma água que as torna mais atentas. Só isso: mais
atentas. As vending machines de rua vending chás. Não vending coca-colas,
chocolates, cafés ou outros diluentes. Chás. Muitos. Muitas variedades. Toda a
gente tem um caminhar direito. A começar pelos curiosos candeeiros de rua (em
Osaka).
O parlamento japonês decidiu baixar dois graus o ar
condicionado e permitir que os deputados não levassem gravata no verão.
Com isso pouparam energia. Pouparam dinheiro. Em Kyoto há templos de madeira
que se elevam até doer o pescoço de tanto nos fazerem subir o olhar, e que não
têm um único prego. E que não têm um único ranger.
Já a madeira dos castelos, a dos passadiços e
corredores de acesso aos aposentos, foi escolhida e unida para que o som por
ela produzida se assemelhasse ao dos pássaros das redondezas, sendo assim mais
fácil para os imperadores ligarem os sentidos de alarme caso algum desconhecido
tentasse avançar noite dentro contra eles. O ranger da madeira soa a
passarinhos. Houve um homem, à partida homem (embora a única mulher
padroeira no Japão seja a da Engenharia, e tem uma história magnífica que lha
poderei contar), que pensou nisto, já imaginou?
Em Tóquio, o risco que corre é de ser atropelado pelo
que não ouve. Vê centenas de pessoas, vê centenas de carros, mas não ouve. O
som é algo de que não me lembro, apenas de uma buzina suave quase em tom de
"desculpe", porque sendo veículos elétricos e sendo as ruas tão
limpas, depressa nos esquecemos o que é passeio e o que é estrada. Nas escadas
há um sentido para subir e outro para descer. Esquerda ou direita, quando
apanhamos a forma certa, os locais agradecem-nos. Percebem que percebemos, que
respeitamos e agradecem-nos.
Nos restaurantes, se entramos quatro e há dois lugares vazios
mais dois lugares vazios mais longe, sem ser necessário pedir depressa alguém dos
dois lugares ocupados cede o espaço aos quatro que chegam juntos – para que tomem a
refeição em conjunto.
Se fizer anos, se estiver em Tóquio, se for a uma
department store e se perceberem que está a comprar um bolo de aniversário e
uma garrafa de champagne não o deixam sair sem lhe pedirem, por favor, mas por
favor mesmo, que lhes dê três minutos. Desaparece o empregado do balcão, esse que
esteve atento, leva com ele a garrafa, leva-a a um refrigerador automático. E
sai de lá com a garrafa pronta para celebrar e um sorriso na cara, caloroso na
medida inversamente proporcional à frescura ideal do brinde que ele antecipou
pelo teor da sua compra. Mas não lhe diz nada. Nem precisa de saber
dizer uma única palavra, nem ele de lha dizer. E no entanto disseram todo um andaime
fabuloso de coisas. Nos mercados, sobretudo em Kyoto, e se apanhar as
cerejeiras em flor, o som que ouve a medida certa do perfume que sente e da
beleza que os seus olhos vão ver. E aquelas famílias que durante a semana são
tão bem comportadas, tão organizadas, falam e riem (não tão alto como em
Osaka).
O silêncio compassado ao segundo de Tóquio é
substituído por cumplicidades naturais e advertências risonhas e carinhosas aos
filhos, que apontam para as máscaras de todos os bonecos que querem usar, que
saltam, que vibram porque aqui é o único lugar onde se sente o cheiro a doces
no ar. Vendem-se kimonos (lindos) e são as senhoras quem se encarrega de
ensinar como se vestem.
Também se vendem espadas de samurais. Mas o
mais incrível nestes mercados, nos meses certos, são as flores que se cruzam à
frente de nós e dos telhados laranja, ocre, vermelhos. Não se consegue perceber
quem desenhou aquilo. Estranhamente, levei poucas horas a sentir que não era
nada estranho. As pessoas não sabem falar inglês, mas saem de onde estão e vêm
acompanhar-nos até onde acham que ficamos orientados. As gueixas misturam-se
com as Pradas.
O Mikimoto, edifício gigante, quase escultura de
entrar, do maior lojista de pérolas, baralha-se com a casinha perfumada e
organizada do senhor que assa castanhas numa rua estreita.
É que também se assam castanhas. E também se torra
café.
Os jardins são de chorar. Chorar de uma felicidade que
vem de longe e que sabemos que nos vai proteger durante anos e anos. São
sequências de quadros impressionistas onde não há uma folha, um tom, um aro
fora do lugar. Os pássaros são grandes, impressionantes, robustos.
As pontes perfeitas.
Veja melhor. Vê, sim.
Sentado na beira do jardim, onde nada mexe e tudo se
move, onde a sua cabeça nunca mais vai ser a mesma pois teve que arranjar
espaço para tanto mundo novo (e sempre com uma vaga ideia que sempre o
conheceu), vê sim, a mãe tigre está ali.
Graça Martins
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