sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

O #MeToo da Pérsia.




A revolução de 1979 foi uma salada russa, e não um monólito islamita. Além dos islamistas, outros grupos participaram no levantamento: comunistas, socialistas, nacionalistas laicos, etc. Encarnando a figura da intelectual laica, a juíza progressista Shirin Ebadi engrossou as fileiras que derrubaram o Xá. A desilusão, porém, não tardou. Ebabi julgava que o Irão caminharia para um regime constitucional inspirado em Mosaddegh, mas, na verdade, caminhou no sentido do totalitarismo. Tal como os outros mencheviques, Ebadi foi aniquilada pelos bolcheviques, os islamistas de Khomeini. E se o Xá reprimia apenas o processo político (modelo autoritário), Khomeini começou a reprimir toda a sociedade (modelo totalitário). As maiores vítimas deste totalitarismo foram as mulheres. Pelo simples facto de ser mulher, Ebadi perdeu o cargo de juíza.
Ao longo das suas memórias (O Despertar do Irão, Guerra & Paz), Ebadi utiliza muito a palavra “segregação”. Uma palavra apropriada, sem dúvida. O Irão transformou-se numa espécie de Apartheid com a misoginia no lugar do racismo. Qualquer demonstração de feminilidade passou a estar no centro da política. Até podemos dizer que esta teocracia foi construída sobre um grande pilar: impedir que as mulheres infectem os homens; a mulher é por inerência uma rameira que desorienta o homem, esse ser casto que é apanhado desprevenido pela peçonha da fêmea. Este totalitarismo de alcova gerou e ainda gera um ambiente tão sinistro e absurdo que por vezes chega a ser cómico. Ao longo da leitura de O Despertar do Irão ficamos muitas vezes com a impressão de estarmos perante uma série de humor nonsense. Por exemplo, as festas de anos das filhas de Ebadi tinham de ser realizadas durante a hora de ponta, pois desta forma o ruído dos carros abafava o som da aparelhagem. Se descobrisse a festa, a polícia dos costumes (komiteh) invadiria a casa. As festas eram proibidas, tal como o álcool e cassetes de música. Eram e julgo que continuam a ser.
A restante lista do nonsense é interminável: se for apanhada com maquilhagem, uma mulher pode ser presa; se mostrar o pulso, uma jovem pode ser humilhada em público; se mostrar o tornozelo, uma rapariga pode ser açoitada. Ser mulher é um pecado, logo qualquer centímetro do corpo feminino é pecaminoso, mesmo o tornozelo, que, como se sabe, é uma proeminência deveras excitante. Perante este retrocesso da condição feminina, Ebadi começou uma segunda vida enquanto advogada das causas difíceis: a defesa dos dissidentes e a defesa das mulheres. Tornou-se particularmente subversiva, porque nunca invocou leis e teorias de Direitos Humanos exteriores à tradição islâmica. Para criticar a teocracia, Ebadi usou sempre os códigos morais do Islão, provando com isso duas coisas: o radicalismo islamita não respeita o Islão, e não existe um abismo irreconciliável entre a fé islâmica e a decência constitucional.
Camelia Entekhabifard (jornalista exilada nos EUA) nasceu em 1973, isto é, tem a idade das filhas de Shirin Ebadi. Nas suas memórias (O Preço da Liberdade, Edições Asa), podemos ver que a demência surreal não anulou apenas a vida profissional de mulheres maduras como Ebadi. O rolo compressor do nonsense também chegou à vida das adolescentes. Por exemplo, Entekhabifard foi espancada por usar sandálias sem meias no pico do Verão. No sistema educativo, Entekhabifard presenciou a implementação da segregação através do fim das escolas mistas. Parece que as cartas de amor e os beijos fugidios são armas de destruição massiva. Entekhabifard viu rapazes a serem açoitados e raparigas a serem levadas a um hospital para que um médico confirmasse a sua virgindade. O seu crime? Estavam numa festa. Quando cresceu, Entekhabifard serviu uma vingança bem fria ao regime através do seu trabalho jornalístico que apontou baterias a esta patética sexualização da política: fez peças sobre a “revirginização de raparigas” e sobre a prostituição na cidade santa de Qom. Pagou caro esta coragem: ameaças de morte, prisão, tortura, exílio.
Devemos notar que a luta de Entekhabifard e Ebadi não tem como referência uma noção abstracta de Direitos Humanos ou de Direitos da Mulher. Pelo contrário, estas duas mulheres têm como referencial a memória familiar e a sociedade iraniana pré-79. Entekhabifard não esconde o respeito pelo legado do Xá e da Imperatriz Diba no que diz respeito à emancipação das mulheres. Ao invés de Entekhabifard, Ebadi deplora a velha dinastia, mas não nega que os Pahlavi dignificaram a condição feminina, um pouco à imagem do programa laico de Atatürk na Turquia. Antes de 1979, Teerão era uma grande metrópole com um leve ar cosmopolita. Nos anos 60 e 70, a liberdade e a libertinagem de Teerão não seriam as mesmas de Greenwich Village, mas a capital da Pérsia estava mais próxima do Ocidente do que de Riade ou Islamabad. Neste ambiente de abertura, Shirin Ebadi teve a possibilidade de entrar na magistratura, e a meninice de Entekhabifard foi semelhante à de qualquer jovem ocidental: bonecas Barbie, acesso a qualquer tipo de livros, festas, maquilhagem, música punk e a idolatria dos ícones pop americanos. Esta normalidade muito ocidental descrita por Ebadi e Entekhabifard foi interrompida pela revolução islamita. Nós, ocidentais, habituámo-nos a ver o Irão como um sinónimo de fanatismo religioso e de anti-ocidentalismo, mas na verdade o Irão é porventura o país muçulmano mais parecido com o Ocidente. Não por acaso, Marjane Satrapi escreveu esse grande romance gráfico chamado Persépolis (Edições Contraponto) para provar este ponto: a normalidade iraniana está mais próxima do cosmopolitismo do que do islamismo, até porque a Pérsia é anterior ao próprio Islão.
Persépolis é um romance sobre a família e sobre a pátria, sobre o carinho familiar e sobre a busca de uma redenção colectiva - para a família e para o país. Através das vinhetas da Satrapi-criança, vemos a luta contra o Xá e, logo depois, a desilusão perante o desenlace da revolução. Através das vinhetas da Satrapi-adolescente, vemos a resistência do espírito perante a opressão: as festas às escondidas, a compra de cassetes à socapa, o desafio aos professores, a avó que ensina a neta a colocar jasmim no sutiã, a fuga para a Áustria. Através das vinhetas da Satrapi-adulta, vemos uma sociedade cosmopolita a resistir às escondidas, isto é, vemos um país esquizofrénico onde as pessoas têm uma – falsa – persona pública e um – verdadeiro – alter ego privado. E é esta sufocante esquizofrenia que leva Satrapi ao exílio derradeiro em França. Mas, apesar deste sabor trágico, Persépolis não deixa o Irão (e o leitor) num beco sem saída. O livro é percorrido por um espírito de esperança e de orgulho em relação à pátria persa. Como todas as grandes escritoras, Satrapi não mostra isso de forma explícita, mas o patriotismo está lá, escondido nos pormenores. É como se Satrapi acreditasse que a Pérsia tem a redenção à sua espera. E, de facto, o regime de 1979, ao contrário da civilização persa, não pode durar para sempre. O seu fim até pode estar mais próximo do que se pensa. A geração que devia estar a consumar a revolução islamita, a geração de Satrapi, está a contestá-la. Aliás, Persépolis confirma uma das frases mais fortes de Shirin Ebadi: “a juventude iraniana permanece animadamente pró-americana”. O Irão ainda vai ser nosso amigo. Um país onde as avós enchem o sutiã com jasmim só pode ser nosso amigo.


Henrique Raposo


 

 

Ensaio publicado em 2012 na revista do Expresso (no Actual, se a memória não me valha); o título original é “o Irão é nosso amigo”.

 

 

1 comentário:

  1. Que texto tão interessante.

    Creio que temos dificuldades em entender o Islão e a sua insistência em regressar a costumes medievais. Em todo o caso, a condição feminina na Arábia Saudita é bem pior do que no Irão, mas os sauditas são aliados dos americanos...

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