domingo, 8 de abril de 2018

À mesa com Estaline.

 
 

          Num livro-miniatura que é uma delícia, Instantâneos (Quetzal, 2018), tem Claudio Magris um texto saborosíssimo, «A ementa da Revolução».

         Escreve aí Magris sobre um outro livro, de que nunca ouvira falar mas agora já canta mesmo aqui à minha beirinha. Livro da Comida Saborosa e Saudável. A primeira edição foi expelida em Moscovo em 1939, ano de guerra. E, além de culinário, o Livro da Comida Saborosa era um receituário científico, médico-clínico como convinha ao homem-novo, publicado com rigorosa supervisão dietética da Academia das Ciências Médicas da União Soviética. E sob o olhar vigilante, tantas vezes letal, de José, Pai dos Povos. Sim, camaradas, foi o próprio do José Estaline que conjecturou fazer uma obra para «confirmar a Revolução na cozinha» e para coroar «a feliz realização dos planos quinquenais». Ora, quando Estaline conjecturava, a coisa fazia-se; bem ou mal, mas fazia-se. A obra, porém, não deve ter tido grande circulação por bandas da Ucrânia, onde à fome morreram milhões de humilhados e oprimidos. Para quem duvide – e, infelizmente, ainda há quem duvide e até teime em negar –, Red Famine, o último livro de Anne Applebaum, que rezamos venha a ser traduzido por cá, pese as suas quase 500 páginas.
 


 
    
 
 

     Em Itália, não por cá, o livro de receitas soviéticas foi traduzido e publicado em 2008 (Excelsior, Milão) (aqui), tendo logo à entrada um texto introdutório assaz esclarecedor de Liliana Aviroviĉ. Conta-nos a dra. Liliana o que já sabíamos (até da leitura do Gulag da citada Applebaum), mormente um jantar opíparo na casa do Máximo Gorki em que se decidiu fazer uma viagem aos campos de trabalho gelados da Sibéria para mostrar urbi  et orbi que nesses campos não só se vivia nada mal como se vivia bem ou até mesmo muitíssimo bem. A excursão de iluminados corroborou a abundância da dieta siberiana, nos termos da qual cada preso tinha direito diário, e cita-se, a meio litro de caldo de couve fresca, 300 gramas de polenta com carne, 75 gramas de filetes de peixe com molho, 100 gramas de massa folhada com couve-flor. O facto de muita gente acreditar nisto é tão espantoso como o facto de ter havido intelectuais a dizerem que isto era tão verdade como o pravda. Enfim.
 
 


 
 
 
 
         Não é destas misérias que fala o Livro da Comida Saborosa e Saudável, obviamente. As receitas mostradas são outras, mais coloridas e aparatosas, destinadas às matronas matrioshkas que perdiam horas a fio nas filas do pão ou aos operários coitados que afogavam mágoas em volgas de vodka. Publica este manual para josé avillezes estalinistas, por exemplo, o menu da ceia de arromba, iniciada a golpes de caviar, com que o líder da URSS presenteou o desconfiado Tito, corria o mês de Outubro de 1944. No seu kitsch datado (e pouco existem de tão datado e tão kitsch como imagens antigas de livros de cozinha), no seu kitsch datado, dizíamos, as imagens da obra falam por si. Horripilantes, indigestas.   Na presente onda de revivalismo irónico dos tempos soviéticos, não é o único livro de cozinha URSS que existe (lembre-se CCCP Cook Book: True Stories of Soviet Cuisine). Mas este é o oficial, o autêntico, o credenciado pelas academias, o reclamado por José Estaline. As primeiras linhas são trágicas de tanto cinismo:

A nutrição é uma das condições basilares da existência humana.

 
 
 
 

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