51.
No
excelente livro The Sea. A Cultural
History, recentemente publicado entre nós (O Mar. Uma História Cultural, trad. portuguesa, com prefácio de
Álvaro Garrido, Silveira, Bookbuilders, 2018), John Mack, professor na
Universidade de East Anglia, dedica algumas páginas de grande interesse à
xilogravura A Grande Onda.
Depois de mencionar a escassez do
conhecimento náutico dos japoneses durante a era Tokugawa, John Mack considera
que A Grande Onda constitui «uma
ruptura com as práticas pictóricas japonesas do passado pela mão de um gravador
inovador». Salienta, porém, que aquela representação não era um caso isolado no
contexto da obra de Hokusai, o qual «exploraria a imagem das ondas em muitos e
diferentes contextos: como motivo decorativo em cenários arquitecturais, com
guerreiros a emergir da espuma do mar, coelhos a saltar por cima daqueles,
fantasmas a vaguear por cima das ondas em lugares onde navios haviam
naufragado, e ainda navios a cavalgar as ondas – ou, as mais das vezes,
surgindo ameaçados por águas encapeladas».
Um exemplo que corrobora esta
afirmação, para mais não muito referenciado na abordagem da obra de Hokusai, é uma
imagem do Guia de Desenho (Ryakuga Haya-oshie), de 1812. Não consta
do catálogo da grande exposição Hokusai.
Beyond the Great Wave, patente em 2017 no Museu Britânico.
Guia de Desenho (Ryakuga Haya-oshie), de 1812
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Em contrapartida, aquela exposição
exibiu diversos trabalhos que prenunciam a Grande
Onda e o singular modo de figuração das vagas como garras ou tentáculos,
que já foi, inclusivamente, integrado na geometria fractal. Entre eles, Remoinhos em Awa, dos Desenhos de Hokusai (Hokusai Manga), volume 7, de 1817.
Atente-se na figuração da onda do lado direito da imagem, em tudo semelhante à Grande Onda.
Remoinhos em Awa, 1817
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Vale a pena transcrever a apreciação de
A Grande Onda que, com base em
escritos «clássicos» sobre Hokusai (Muneshige Narazaki; Matthi Forrer; Henry
Smith; Richard Lane), é feita por Mack:
«O que é distintivo em A Onda é que se trata de um exemplo raro
de uma imagem cujo ponto de vista está na verdade situado no mar. Estamos aqui
em presença de uma cena quase inteiramente marítima. Apreendemos de imediato a
perspectiva de quem encenou uma imagem vista do mar porque o Monte Fuji – o
objecto central da série de que esta gravura faz parte – é o único ponto de
referência reconhecível presente na obra, apesar de somente avistado à
distância, esbatido sobre a linha da ondam pequeno como uma formiga. Visível à
distância, constitui imediatamente uma referência tranquilizadora e um garante
de integridade nacional e territorial; apesar disso, está ao mesmo tempo
representado nessa imagem como estando ele próprio sujeito à ameaça de ser
esmagado».
Esta
última observação de John Mack é particularmente interessante na medida em que
nos permite equiparar o destino dos marinheiros e do Monte Fuji. Este, que na
imagem parece também sob a ameaça de ser esmagado pela grande onda, surge,
pois, como que «humanizado», irmanado aos tripulantes dos oshiokuri e, num certo sentido, plenamente dessacralizado. Ora, num
tempo em que o mar não constituía um horizonte primordial para os japoneses,
que tendiam, como escreve Mack, a «associar a emoção estética com o território
terrestre, de que é exemplo a forma cónica, de grande escala e dotada de um
pico coberto de neve, do Monte Fuji», a mudança de perspectiva introduzida por
Hokusai é, sem receio de exagero, verdadeiramente revolucionária. O mar
afigura-se hegemónico e dominador – não apenas para com os marinheiros mas para
com todo o território terrestre, para mais aqui apresentado na sua
representação suprema e mais simbólica, o Monte Fuji.
John Mack acrescenta, depois:
«A onda está no alto mar mas parece
precipitar-se em direcção ao largo da ilha principal de Honshu. Move-se da
esquerda para a direita da imagem mas, dado que o japonês é lido da direita
para a esquerda, os espectadores letrados lêem-se a si mesmos na onda, fazendo
ampliar a ameaça que constitui. Os espectadores sentem-se como participando na
fragilidade do navio e nas emoções da sua tripulação e passageiros, olhando com
apreensão para a elegante embarcação, posta à prova por uma onda tumultuosa
capaz de a fazer desaparecer com a intensidade do embate».
A este propósito, deve ter-se presente
que, sem descartar esta leitura de John Mack, é possível que a imagem de A Grande Onda não se revista dos contornos
trágicos que tendemos a associar-lhe. E, no limite, é até possível tomar a
imagem como o retrato de uma vulgar cena marítima, de uma actividade laboral
corrente, pontuada pelo perigo, decerto, mas sem a dramaticidade ou o risco de
morte que frequentemente lhe atribuímos (cf. Notas sobre a Grande Onda – 48).
John Mack apresenta uma outra chave de
leitura de A Grande Onda, mais
situada historicamente:
«(…) embora a imagem pareça ser sobre a
fragilidade da vida humana perante as forças da Natureza, ou seja, sobre as
noções budistas de transitoriedade e de eternidade, é digno de nota que a
ameaça venha do exterior, através do mar. Assim, e no contexto da época em que
a imagem foi criada, os perigos das políticas exclusivas do Japão parecem
constituir uma outra referência clara contida na obra. O Monte Fuji fica à
distância, firme e imutável, porém ameaçado. O que está em jogo, a outro nível,
é a integridade territorial do Japão. Nessa altura, as preocupações
relativamente ao incessante aumento da influência ocidental conheciam um
crescendo. Ou seja, justamente o que as práticas cartográficas haviam procurado
retratar, no momento em que a periferia estava na iminência de vir embater nas
ilhas japonesas, e sendo o mar o meio através do qual tais ameaças externas
eram conduzidas. Nesse sentido, era o próprio mar que expressava a intimidação
que vinha de longe e que estava a começar a gerar fricções com as políticas
isolacionistas dos Tokugawa.»
Esta leitura, por assim dizer,
«política» de A Grande Onda não deve
fazer esquecer que, como também observa John Mack, os artistas do ukiyo-e – e Hokusai em particular – não
estavam alinhados, de modo algum, com o isolacionismo do período final da era
Tokugawa. O recurso pujante à perspectiva e ao azul da Prússia, entre outros
elementos, é ilustrativo de uma orientação «europeizante» que infirma a tese
segundo a qual a xilogravura de Katsushika Hokusai retrata uma ameaça marítima
que, de forma metafórica ou elíptica, alude veladamente aos perigos de uma
abertura ao Ocidente. É, aliás, John Mack que observa: «ironicamente, Hokusai
era em certo sentido conivente com o avanço paulatino dos interesses
ocidentais».
Mais do que isso, uma contextualização
histórica precisa do tempo em que Hokusai desenvolveu a sua actividade permite
concluir que esse tempo coincidiu, em boa medida, com um período tranquilo e
próspero da vida do Japão – e não com uma era de perigos e ameaças, favorável a
pulsões xenófobas e anti-ocidentais.
Ultrapassada
as grandes fomes Tenmei de 1782-1788, e na sequência das reformas Kansei de 1789-1792,
durante o longo reinado do décimo primeiro xogum, Tokugawa Ienari (1773-1841),
que governou o país entre 1787 e 1837, o Japão viveu um tempo de bem-estar sem
precedentes nas décadas de 1810 e de 1820. Nesse período, o hedonismo
acompanhou o crescimento económico: Ienari tinha um bordel privado no seu
castelo de Edo, com 40 concubinas e foi pai de 55 crianças, de dezasseis
mulheres diferentes; floresceram os restaurantes e as casas de prostituição, e
os artesãos, com destaque para os fabricantes de espadas e de objectos
decorativos, viram prosperar os seus negócios. Hokusai e os seus pupilos, a par
de artistas do evasivo «mundo flutuante» como Hiroshige, Kunisada ou Kuniyoshi,
também beneficiaram dessa, como salienta Alfred Haft no ensaio «Hokusai and the
late Tokugawa society», in Timothy Clark (ed.), Beyond the Great Wave, Thames and Hudson-The British Museum, 2017,
pp. 48ss, em esp. p. 49.
É
precisamente nessa fase que surge Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji. O sucesso da publicação, que faz prolongar a série
para 46 vistas do vulcão sagrado, não se repetirá poucos anos depois, aquando
da saída de Cem Vistas do Monte Fuji.
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