Fotografia de Gérard Castello Lopes
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Era no Verão
de 1980. Estava eu de oficial de dia no Regimento de Lanceiros de Lisboa. O
eufemismo “oficial de dia” traduzia a realidade da função: os oficiais
milicianos faziam, volta não volta, de “oficiais de noite”, enquanto os
oficiais de quadro iam para casa ou para o saudoso Elefante Branco, como o
comandante do Regimento, que chegava de manhã, ensonado, por vezes atrasado,
ainda à civil, com a barba por fazer, para receber o quartel na formatura, ritualmente, pela
continência do miúdo que ficara de noite fingindo que havia guerra e inimigos.
Certa noite houve um inimigo. Interior.
Tinha naquelas horas sob a minhas ordens uns tantos soldados, cabo e sargentos.
Um ou dois pelotões, não recordo. Entre os sargentos,
estava um rapaz açoriano, um Antero sem barbas, generoso e ingénuo, que tinha
feito a recruta comigo em Santarém. Era furriel miliciano e tocava guitarra. No
bar de sargentos, armou-se uma guitarrada. A mesa de bilhar serviu de assento
ao furriel, entusiasmado com a transformação da noite de serviço em noite de
alegria. Não era comigo, não era proibido. Dei as minhas indicações e fui
descansar até à hora da próxima ronda.
Só soube de manhã:
tinham roubado a pistola Walther de 9mm ao furriel açoriano. Para tocar mais à vontade,
o furriel tirara o cinturão com a Walther, pousando-o na mesa de bilhar. O caso
não era Tancos, mas, comparado com a bandalheira actual, parecia mais grave do
que Tancos. Inquérito. Entra a Polícia Judiciária Militar, que havia de servir
para alguma coisa. Fui ouvido, como outros, não porque estivesse no bar de
sargentos, mas porque era o oficial de dia e, naquela época, os responsáveis
militares ainda eram militares responsáveis.
Fui suspeito do roubo, não
sei se o principal suspeito. Só percebi depois de deslindado o caso. Chamado de
novo à PJM, apresentei-me ao oficial a cargo da investigação. Capitão ou major,
não me lembro, o tipo assentava
perfeitamente numa das categorias definitivas de Carlo Cipolla em As Leis
Fundamentais da Estupidez Humana. Com aquele ar inteligente e superior que
certos estúpidos carregam no semblante, explicou-me depois porque era eu
suspeito de peso.
Antes, esclareço
os factos: a arma tinha sido roubada por um soldado. Era drogado, precisava de
vender a arma para comprar o produto. Vendeu-a a um cigano, grupo que é mestre
insuperável no comércio marginal de que as sociedades precisam. O soldado não
foi suspeito inicial, porque era filho de um coronel do Exército. Eu fui
suspeito porque sou Cintra, portanto sobrinho do professor Luís Filipe Lindley
Cintra, portanto um perigoso esquerdista, portanto pela certa ladrão de armas
no bar de Sargentos do Regimento de Lanceiros numa noite de farra. Os ramos próximos
das árvores genealógicas desfolhavam explicações inexoráveis: a do sobrinho do
professor nada podia contra a do filho do coronel.
A explicação deu-ma o
oficial da PJM, qual Poirot chamando o descartado suspeito, apenas para lhe
revelar, com a candura do estúpido superior, o seu génio abdutivo. O soldado ladrão, filho do
coronel, safou-se rapidamente, no anonimato desta justiça subterrânea. O
inocente sobrinho do professor foi ilibado do roubo, mas não se safou do
castigo: em vez de pertencer ao quadro da Polícia Militar, como até ali, como
resultava da sua preparação militar, passei a dar recrutas no Regimento. Em vez
de uma Walther, teria ao meu dispor dezenas de G-3 dos soldados, mas isso que
lhes interessava? Vinguei-me como podem vingar-se os fracos, aspirante a
oficial miliciano fazendo de soldado Sveik: treinava ordem unida com os
recrutas na parada, horas a fio, mesmo em frente do edifício dos oficiais. Sei
colocar a voz e, ui!, como eu o fazia, qual barítono na Arena de Verona!
Incomodava-os profundamente enquanto eles bocejavam ou dormitavam sobre papéis
inúteis nos seus gabinetes, ao ponto de um dia um deles, falando em nome de
todos, envergonhado, me pedir para não fazer a ordem unida na parada, que era
onde ela se devia fazer. Continuei. Os recrutas juraram bandeira, que era coisa
de que eles e o seus parentes, vindos de Bragança ou de Vila Real de Santo António,
ainda se orgulhavam: jurar servir a Pátria.
A vida do Regimento seguiu sem mim
depois de Dezembro como se nada fosse. O aspirante Sveik acabou o curso de História
e foi procurar trabalho. O comandante continuou as suas noitadas no Elefante
Branco. O Poirot da PJM lá terá continuado no edifício do Restelo a descobrir,
com fina argúcia, inocentes entre os culpados e culpados entre os inocentes. O
oficial lateiro continuou a roubar na conta das batatas e dos miúdos de frango,
os oficiais do quadro nas suas secretárias ou montando em cavalos do Estado
para deleite pessoal, os sargentos, cabos e praças desenrascando-se nos
meandros daquela vida, que é o que fazem os sargentos, cabos e praças. Ou todos,
cada qual à sua maneira, consoante as tiras de pano que penduram nos ombros das
fardas.
Naquela magnífica
localização na Calçada da Ajuda, enorme, arborizada, o Regimento fechou, muitos
anos depois. Espera-se que o Estado o venda para algum “empreendimento”, que
será louvado em comunicados de imprensa e em locutórios televisivos. Pois, dirão,
as Forças Armadas não têm de se modernizar e ser úteis à sociedade? Os
parasitas com galões ao ombro que passaram pela minha vida de Janeiro a
Dezembro de 1980 repousarão já nalgum assento etéreo ou gozam, como se diz, a
merecida reforma. Eu cá vou.
Eduardo Cintra Torres
Caxias, 26 de Setembro de 2018
Texto fad!
ResponderEliminarComo diz a malta nova: espectáculo!!!
ResponderEliminarE isto que o filme Sem Sombra de Pecado de José Fonseca e costa de 1982 tao bem satiriza.
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