Apresentação
de Eleições na União Europeia,
de Nuno Sampaio
Como
o próprio nome indica, este livro versa as eleições para o Parlamento Europeu
e, mais concretamente, as eleições de 2014 e as suas implicações institucionais
na arquitectura política da União, nomeadamente no que se refere à escolha do
Presidente da Comissão, e, do mesmo passo, abre perspectivas de futuro, de
futuro próximo, sobre as eleições que irão ter lugar dentro de dias.
A
primeira questão que este livro suscita, uma questão de largo alcance e amplo
espectro, prende-se com o sentido do projecto da União Europeia e, mesmo sem
enveredar por um registo eurocéptico ou europessimista, leva-nos a colocar
aquela que é, quanto a mim, a interrogação essencial: qual o motivo pelo qual a
União Europeia se mostra um projecto tão pouco mobilizador ou entusiasmante
para os cidadãos, realidade que fica evidenciada, desde logo mas não só, nos
escassos níveis de participação registados nas eleições para o Parlamento
Europeu? Adiante mudarei um pouco o sentido desta interrogação, mas por ora, em
jeito de abertura, fica a pergunta.
O
livro não visa responder a esta questão de grande magnitude, e creio, aliás,
que será muito difícil obter uma resposta e, sobretudo, apresentar uma solução,
tanto mais que é duvidoso que exista uma solução única e capaz de, por milagre,
resolver o eterno drama do «défice democrático» das instituições europeias.
Ainda
assim, ao demonstrar que o facto de o Parlamento Europeu alcançou, através de
um processo árduo, cada vez mais poderes de intervenção nos destinos da União e
dos seus povos e, sobretudo, ao demonstrar que esse acréscimo de poderes não
alterou de modo sensível a percepção que os cidadãos têm das eleições europeias
nem os seus níveis de abstenção, este livro, sem oferecer respostas, adensa interrogações
e perplexidades.
Perante
tudo isto, a afirmação, historicamente correcta e insofismável, de que a
integração europeia tem trazido ao continente um período de paz e
desenvolvimento sem precedentes converte-se numa litania ou, se quisermos, num mantra europeísta, numa declaração de fé
que, no entanto, não só não tem evitado o crescimento do eurocepticismo como
não tem inibido elevados níveis de abstenção eleitoral.
É
aí, precisamente aí, nessa incapacidade de formular um discurso que vá para
além desta ladainha autocongratulatória, nessa incapacidade de formular um
discurso mobilizador e galvanizador dos cidadãos que a União Europeia revela as
suas dificuldades, patentes na ausência ou quase ausência de uma retórica capaz
de despertar emoções e sentimentos, na dificuldade de segregação de um
imaginário simbólico que permita que os cidadãos tenham uma ligação vivida e
sobretudo sentida com as instituições europeias, uma ligação que é, ou deve
ser, acima de tudo passional ou emotiva, ultrapassando o mero calculismo
racional do deve-e-haver em termos de percepção de fundos de Bruxelas, de uma
análise custo-benefício que coloca, de um lado, apoios financeiros ou materiais
e, do outro, obrigações e deveres inerentes à construção de um projecto comum.
Não
admira, em face disso, que a escassa identificação dos cidadãos com «a Europa»
os leve a considerar as eleições para o Parlamento Europeu – uma entidade para
mais remota e cujo acervo de poderes o eleitorado não conhece de todo – aquilo
que a ciência política tem caracterizado como «eleições de segunda ordem» ou,
melhor dito, «eleições nacionais de
segunda ordem». Esta «nacionalização» das eleições para o Parlamento Europeu mais
não é do que um reflexo da ausência de identificação, e até de conhecimento,
dos eleitores com as instituições comunitárias, ou seja, o fenómeno é paralelo
àquilo que a ciência política internacional e nacional (e aqui evoco o nome de
Manuel Villaverde Cabral) também tem estudado sob a designação de «distância ao
poder».
Por
conseguinte, é pouco credível e expectável que alterações institucionais, para
mais pouco transparentes, consensuais e, sobretudo, conhecidas do grande
público, possam modificar significativamente este estado de coisas.
Não
quero, com isso, diminuir o alcance dessa alterações – até porque não vejo
alternativa credível a este tipo de estratégia – e, menos ainda, adoptar a
clássica retórica de culpabilização e diabolização dos líderes europeus.
Somos
eurocéticos, desde logo, porque as lógicas nacionais ainda estão muito
incorporadas no nosso espírito e no nosso comportamento – e porque, em termos
de «mercado político», a «oferta» ainda se processa em termos nacionais: os
partidos que concorrem – PS, PSD, CDS, PCP, BE, etc. – são partidos nacionais. Assim sendo, como se pode
pretender que os eleitores, ao verem nas campanhas e nos boletins de voto das
europeias, as forças políticas nacionais, as mesmíssimas forças que encontram
nas campanhas e nos boletins de voto das legislativas ou das autárquicas,
encarem estas eleições como «supra-nacionais»? A este propósito, não seria
desejável que, na campanha e até nos boletins de voto, constasse o nome das
famílias políticas desses partidos? Esta hipótese, contemplada desde há pouco,
nas alterações ao Acto Eleitoral de 1987 introduzidas pelo PE em Julho de 2018,
não irá ser usada em Portugal, mas talvez seja pena. Não seria importante que
os eleitores começassem a ficar familiarizados com algo que desconhecem em
absoluto, que são os diferentes grupos que depois se formam no Parlamento
Europeu, o Partido Popular Europeu, os Verdes, os Conservadores e Reformistas
Europeus? E, com o tempo (sei que vou talvez dizer uma heresia…), as eleições
não deveriam fazer-se com base, e
exclusivamente com base, nesses grupos ou partidos «europeus»? Não seria
esse um passo importante no caminho da «transnacionalização da democracia»
propugnada por Jürgen Habermas?
O
desinteresse «europeu» dos eleitores é evidenciado não apenas nos fracos níveis
de participação eleitoral mas noutros fenómenos que este livro refere, como a
baixíssima audiência que tiveram, em 2014, os debates televisivos entre os candidatos
(ou proto-candidatos ou Spitzkandidaten)
a presidente da Comissão Europeia. Em Portugal, o debate terá sido visionado
por 6.800 pessoas, o que diz tudo – ou nada. Na Alemanha, o debate para as
eleições nacionais foi visto por 17.7 milhões de espectadores, para as
europeias por uns risíveis 160 mil, ou seja, menos de 1% dos que assistiram aos
debates para as eleições internas…
Na
verdade, e como este livro demonstra, a figura dos Spitzkandidaten não mobilizou o eleitorado, o que demonstra que o
défice democrático da União dificilmente se resolverá com expedientes de
engenharia político-institucional, ainda que profundos e de longo alcance.
Assim, mesmo perante a possibilidade de estarem a eleger o futuro Presidente da
Comissão Europeia, os cidadãos não despertaram e não se mobilizaram. Apesar de
existirem Spitzkandidaten, isto é,
candidatos declarados ao cargo de Presidente da Comissão, em 2014 o nível de participação
(42,54%) foi até, note-se, ligeiramente menor do que nas anteriores eleições
para o Parlamento Europeu, de 2009, e muito mais baixa do que as de 1979 (61%),
não sendo descabido prognosticar, como faz este livro, que a abstenção nas
eleições de 2019 seja igual ou maior do que nas de 2014.
Sem
querer, como disse, culpabilizar os agentes políticos, o certo é que o comportamento
de alguns deles não revela um particular empenhamento europeísta. Mais do que
reféns de agendas nacionais, os actores políticos mostram-se reféns das suas
agendas pessoais e ambições e dos seus projectos próprios. Muitos dos nossos
eurodeputados agem em função do auditório dos respectivos países, outros pouco
ou nada fazem para, durante os seus mandatos, dar a conhecer o seu trabalho aos
respectivos eleitorados e não deixa de ser importante observar, como faz este
livro, que a «campanha» dos Spitzkandidaten,
em 2014, se concentrou, até geograficamente, num espaço que pode corresponder
ao «coração» da Europa mas que não reflecte, de modo algum, a dimensão e a
diversidade da Europa alargada a 28 ou 27. Na campanha de Juncker, 48% das
visitas que o candidato fez foram apenas a três países, Alemanha, Bélgica,
França. Dos 28 Estados-membros, só visitou 18, como se os outros não existissem
para efeitos de campanha… Não foi sequer ao Reino Unido, e é por estas coisas,
ou é também por estas coisas, que agora lidamos com o Brexit…
Os
Spitzkandidaten falaram para os
eleitores da Alemanha, da França, da Bélgica, não para os de Portugal ou da
Polónia. Não estiveram nesses países a fazer campanha, não conheceram os seus
eleitores nem os seus problemas, ou seja, fizeram precisamente o inverso do que
é, ou deveria ser, uma «campanha europeia». Com o seu comportamento, e a
pretexto de quererem ser eleitos de uma Comissão europeia, revelaram quão débil é ainda o projecto europeu.
Há
contradições ainda mais graves, como a de Frans Timmermans, que no passado
defendeu uma comissão mais pequena e eficiente, numa visão muito próxima da dos
eurocépticos de Londres, e se apresenta agora como candidato dos socialistas
europeus a presidente da Comissão sem ter definido, creio, um «programa» com
base nas ideias minimalistas antes defendidas.
E,
evidenciando o fraco compromisso europeu dos líderes dos diversos países, há
outro dado relevante. Na apresentação deste livro feito na Universidade
Católica, José Manuel Durão Barroso, falando com «saber de experiência feita»,
considerou ser importante, até para um bom funcionamento da Comissão e para a
autoridade do seu Presidente no seio desse colégio, que o Presidente da CE
tivesse um passado governativo relevante no seu país, nomeadamente por ter
exercido funções como Primeiro-Ministro. Pois bem, o que nos é dado observar é
que nenhum Primeiro-Ministro irá correr o risco, ou cometer a «loucura» perante
o seu eleitorado, de se proclamar candidato a Presidente da CE, ou seja, dizer
aos seus eleitores, meses antes do sufrágio para o PE, que, se fosse escolhido,
irá para Bruxelas.
Não
admira, por isso, que no Conselho prevaleça uma lógica intergovernamental, uma
lógica que a crise de 2008 e a resposta a essa crise vieram aprofundar, e que,
apesar de alguns esforços bem-sucedidos do Parlamento Europeu para inverter tal
tendência, o intergovernamentalismo tenda a dominar. Tudo indicia que não só
dominou estas eleições de 2019, mais do que as de 2014, como virá a preponderar
num cenário pós-eleitoral. Veja-se os Spitzkandidaten
deste ano, em que, à excepção de Manfred Weber e Frans Timmermmans, quase
ninguém conhece. Não seria tempo de se pensar numa eleição directa para
Presidente da Comissão, vencendo receios que até agora têm feito que ninguém
conheça quem são os Spitzkandidaten? Sei
que não é essa a opinião do autor, que para defender a sua tese se apoia em
dados do Eurobarómetro, também não é necessariamente a minha, mas aqui a deixo
em jeito de pergunta.
É
legítimo considerar mesmo a hipótese de estas eleições de 2019 já não estarem a
ser marcadas por Spitzkandidaten,
apesar de eles estarem aí, nos noticiários especializados, nas redes sociais, etc.
Não se sabe bem pelo que é que estão marcadas (o que, aliás, adensa o alheamento
dos potenciais eleitores), mas devemos reconhecer – e o livro, apesar de num
tom contido e diplomático, também o reconhece – que a experiência de 2014 não
foi um sucesso, para dizer o mínimo, com bastante eufemismo. Ora, num quadro em
que a questão da crise das dívidas soberanas está em larga medida ultrapassada,
e em que, por conseguinte, o «factor Europa» não é assimilado como relevante
para os destinos de cada país, é possível não só que aumentem os níveis de abstenção
como a experiência dos Spitzkandidaten
tenha alguns problemas, sobretudo porque enfrenta a oposição de alguns líderes
como Emmanuel Macron, e porque a Srª Merkl (que também nunca foi uma entusiasta
exuberante dos Spitzkandidaten) está
de saída, etc. É elucidativo que nestas eleições de 2019 haja menos partidos a
apresentarem candidatos a presidente da Comissão do que nas eleições de 2014… Como
é elucidativo que, por oposição de Macron, ditada por motivos de estratégia política
pessoal, os liberais europeus não tenham apresentado candidato, chegando-se à
posição paradoxal de serem os Verdes, quer em 2014, quer em 2019, a mostrar uma
atitude mais empenhada em promover a participação e o debate interno na escolha
do seu candidato. Como, aliás, é elucidativo o desinvestimento neste processo
por parte da Esquerda Unida Europeia, que em 2014 apresentou um candidato de
grande notoriedade, Alexis Tsipras. Veja-se, aliás, como se refere no livro, a
forma displicente como Donald Tusk tratou a questão dos Spitzkandidaten e da sua escolha, dizendo tratar-se de «um assunto
típico da “bolha de Bruxelas”».
O
que importa dizer é que quer os diferentes Estados, quer os partidos nacionais,
quer os líderes dos países da UE, quer até os Spitzkandidaten, pela sua postura, ninguém contribuiu de forma
decisiva para o êxito desta fórmula. Veja-se, de resto, a forma como o PPE
lidou com ela, sendo o último partido a apresentar um candidato – e estamos a
falar de um grupo fortemente «europeísta», pelo menos em confronto com os
demais… Ou como o Partido Socialista Europeu também lidou com ela, dizendo que
iria realizar eleições primárias para a escolha do seu candidato e, depois, não
concretizando essa promessa.
É
curioso observar – e a Europa é fértil nestas esquizofrenias – que se há riscos
de um acréscimo de abstenção – ou, pelo menos, da sua manutenção em patamares
decepcionantes –, alguns inquéritos e sondagens têm mostrado, porventura em
resultado do psicodrama do Brexit, uma adesão de muitos cidadãos à UE, ou se
quisermos a firme intenção de continuarem a pertencer a esse espaço. Não se
sabe se o fazem por genuíno europeísmo, se por efeito da «teoria da vacina» ao
presenciarem a lamentável prestação de Londres, se por outras razões mais
«egoístas», pois, paradoxalmente ou não, é possível ser-se favorável a «mais
Europa» por razões internas, nacionais (por exemplo, para que a Europa ajude a
combater derivas autoritárias ou pulsões extremistas ou para que Bruxelas venha
conceder mais fundos ou ajudar em caso de crise). O europeísmo, paradoxalmente
ou não, pode ser fomentado por um nacionalismo esclarecido ou calculista…
Frans Timmermans
|
Mas
para o que interessa, que é caracterização das eleições europeias e do seu
sentido, importa mais suscitar outra hipótese. Há pouco falei de esquizofrenia
mas pode não existir aqui esquizofrenia alguma, o que pode existir é o facto
singelo de os cidadãos serem favoráveis à pertença do seu país à União Europeia,
reconhecerem a importância da União Europeia na melhoria das suas condições de
vida, nas suas infraestruturas, etc., mas dessa «gratidão» não resultar
participação eleitoral. Estou a entrar no domínio puramente especulativo, mas
atrevo-me a dizer que talvez seja esse o sentimento preponderante em Portugal:
pouco conhecimento ou ignorância do funcionamento das instituições e da
infinidade de legislação comunitária acolhida na ordem interna, reconhecimento
e apreço pelo papel de Bruxelas em muitos domínios (ou seja, ausência de
sentimentos anti-comunitários como ocorrem no Reino Unido) mas desinteresse pelas
eleições para o Parlamento Europeu. Recorde-se que, a par da República Checa,
Portugal foi o país em que, num estudo de opinião, os inquiridos disseram
dispor de menos informação para tomar uma decisão de voto. Se assim for, e
creio que há algumas razões para pensar que em Portugal e em muitos lugares é
assim, a questão não reside tanto na Europa ou até no projecto de uma União
mais coesa e actuante mas em algo mais circunscrito – e portanto, talvez mais
solucionável, deixo aqui esta nota de optimismo – que são as eleições para o Parlamento
Europeu. Isto obrigar-nos-ia a repensar muito do que são as nossas ideias
feitas, até das ideias com que comecei esta intervenção, que ligam necessariamente
e fatalmente a abstenção eleitoral a ausência de europeísmo. A abstenção
eleitoral pode ser um indício dessa ausência de sentimento europeu, mas isso não
claro nem linear. Ao contrário do que muitas vezes se afirma, pode não existir
uma correlação necessária e directa entre baixa participação eleitoral e
ausência de sentido de pertença à União. Os eleitores podem abster-se por
ignorância ou desconhecimento, não necessariamente por não se reverem no
projecto europeu. Por isso, e até por isso, seria fundamental que esse apreço latente pela União se
transformasse em maior participação eleitoral. Não necessariamente para
combater uma lógica intergovernamentalista, pois parece-me também algo
apressado dizer que o intergovernamentalismo é autoritário e opaco e que a
verdadeira democracia está no Parlamento e nos seus deputados. Mas para
combater, desde logo, a ideia eurocéptica ou euro-pessimista de que a abstenção
é um sinal evidente e inquestionado de falência do projecto da União Europeia
nos moldes em que o conhecemos. Em suma, abstencionismo não é necessariamente sinónimo
de falta de europeísmo.
Por
outro lado, e é outra interrogação que coloco, não sei se não existirá uma
outra esquizofrenia, essa de perfil institucional ou formal, que decorre de,
como assinala este livro, o artigo 10º do Tratado de Lisboa introduzir uma césure entre representação dos cidadãos,
atribuída ao Parlamento Europeu, e representação dos Estados-membros, atribuída
ao Conselho. Em traços largos, à luz do artigo 10º o Parlamento seria uma instância
de representação democrática e o Conselho de representação nacional. Isto
levanta muitos problemas. Desde logo, o de os cidadãos europeus – ao contrário
dos norte-americanos creio eu – não terem uma percepção clara dessa dicotomia,
e muito menos saberem que tradução tem ela no acervo de poderes de cada um dos
órgãos. Além do mais, isto pode inculcar a ideia de que a «democracia» está
toda no Parlamento Europeu, não no Conselho, vendo-se esta instância – e as
suas intervenções – como resultado de arranjos que escapam ao eleitorado, o que
contribui para adensar, à extrema-esquerda e à extrema-direita, sentimentos de
que a Europa está a ser construída nas costas dos cidadãos, por interesses
obscuros, quando – é preciso dizê-lo – os chefes de Estado e de governo que
estão no Conselho Europeu têm, também eles, mandatos democráticos que lhes
foram concedidos em eleições livres nos respectivos países. Mais ainda, em
eleições que, regra geral, são muito mais disputadas, concorrenciais e
participadas do que as eleições para o Parlamento Europeu. Por outro lado
ainda, esta dicotomia representação democrática/representação nacional tem de
implicar, como a experiência norte-americana demonstra, um «paralelismo institucional»,
digamos assim, entre dois órgãos (no caso, o parlamento e o Conselho). Esse «paralelismo»
é clara em casos de bicamaralismo, simétrico ou assimétrico, em que existem
duas câmaras, claramente com um perfil «parlamentar», cada qual com o seu tipo
de representação (uma de representação dos cidadãos, como a Câmara dos
Representantes, outra dos Estados, como o Senado). Ora, essa dicotomia não é
nada clara quando aplicada a instâncias com um perfil tão distinto como o
Conselho Europeu, de pendor «executivista», e o Parlamento Europeu, por
natureza «parlamentar». Em nada contribui para uma harmonia interinstitucional,
nem para actuação dos diferentes agentes, nem sequer para a transparência em
face de um eleitorado pouco participativo e mobilizado, que a dualidade de
representações (democrática/nacional) se traduza depois em instâncias ou órgãos
que têm escopos e atribuições muito diversas, o que leva a perguntar, então, se
o acervo de competências de cada órgão está correcta e transparentemente
ordenado a essa diversidade de tipos de representação. A forma como, pelo menos
desde 2007 – mas, se quisermos de forma muito patente em 2014 –, se verificaram
atritos «territoriais» entre os dois órgãos – desde logo, em torno da questão
da designação do presidente da Comissão – é uma prova concludente, julgo eu, de
que o artigo 10º do Tratado de Lisboa não resolveu problemas e, pelo contrário,
só talvez tenha contribuído para os agudizar. Ambos têm poderes legislativos
ordinários – o que talvez aumente ainda mais a confusão e as tensões – mas,
como refere este livro, bastou a eclosão da crise de 2008 para se verificar um
crescendo – de resto, natural – do intergovernamentalismo e do Conselho. Creio,
a propósito, que a proposta de Jean-Claude Juncker, de cumulação de
presidências (da Comissão e do Conselho), não resolveria estas questões e
corria mesmo o risco de as agravar.
Manfred Weber
|
Perante
este cenário, é fácil considerar que não existem eleições para o Parlamento Europeu
mas 28 eleições nacionais, que convocam 380 milhões de eleitorados, e que servem
ao eleitorado para, sabendo que elas não têm reflexos nas escolhas de governo
ou de parlamento nos seus países, sinalizarem o seu aplauso ou o seu
descontentamento em face dos rumos de governação interna.
Ainda
assim, em tese não é impossível conceber que as eleições possam assumir essa
dupla faceta, europeia e nacional, ou seja, e um pouco ao contrário do que se
afirma no livro, talvez as duas realidades possam conviver; elas não se excluem
necessariamente uma à outra. O que excluem isso sim, é uma noção de
representatividade ou representação política transacional.
Por
outro lado, e creio que seria importante a ciência política explorar esse
tópico, se é que o não fez já, creio que é possível colocar a hipótese de as
eleições para o Parlamento Europeu serem eleições «de segunda ordem» em graus
variáveis, isto é, quer numa perspectiva diacrónica podem existir eleições mais
«nacionais» e outras mais «europeias» (o que não se afere necessariamente pelos
níveis de abstenção mas por estudos pós-eleitorais) como, numa perspectiva
sincrónica, podem existir países em que as eleições tenham um conteúdo mais
«europeu» e outros mais «nacional». Daí não decorre necessariamente que haja
povos mais «europeístas» que outros (ainda que haja e é natural que haja); o
que significa é que, numa dada eleição em concreto e num dado país, houve, se
quisermos, leituras mais «transacionais» do sufrágio.
Julgo,
e com o maior respeito, que alguma politologia europeia vive demasiado à sombra
do paradigma ou lugar-comum das «eleições de segunda ordem», repetido à
saciedade e à exaustão, mas seria útil avançar um pouco mais, e proceder,
digamos assim, a uma análise mais «fina» e subtil do que é que esse chavão
significa. É que ele pode não significar o mesmo no eleitorado X ou no
eleitorado Y. Aliás, se dizemos que as eleições são eleições nacionais de segunda ordem, parece-me um
pouco arriscado usar um conceito e uma grelha de análise transacional, isto é,
importa decompor e indagar, em cada Estado, em que se traduz e materializa essa
leitura «nacional» e em que consiste verdadeiramente a noção de «segunda
ordem», pois, digamos, a desvalorização da Europa não tem necessariamente as
mesmas causas e as mesmas raízes, nem o mesmo propósito ou sentido e alcance
para um eleitor de um país que foi sujeito a um programa de resgate, para um
eleitor de um país que tem de lidar com surtos migratórios de milhares ou
milhões de pessoas ou para um eleitor de um país marcado por pulsões xenófobas
ou extremistas. É sintomático vermos alguns contrastes: é nos países que
aderiram mais recentemente à União que se registam menores taxas de
participação, a Grécia, após ter sido sujeita a um duro programa de
austeridade, registou um aumento de 7,4% de participação (terá sido o efeito do
candidato Tsipras?), mas em Portugal e na Irlanda houve decréscimo. Ou seja, e
como vemos, existe um sem-número de razões e de idiossincrasias que obrigam,
não diria a repensar ou descartar, mas aperfeiçoar o rótulo «eleições de
segunda ordem».
O
livro fala, na parte final, dos efeitos colaterais ou spillover effects, um termo que desde há muito marca as abordagens
neofuncionalistas do processo de integração. Pois bem: bom ou mau, o processo
de escolha do Presidente da Comissão através do método dos Spitzkandidaten foi instaurado, e agora retomado, ainda que sem
grande entusiasmo. Se agora em 2019, no processo de designação do Presidente da
Comissão, houver um sobressalto que ponha em causa esta metodologia, isto é, se
não se respeitar a lógica dos Spitzkandidaten,
receio bem que um spillover effect desse
sobressalto seja um aumento do eurocepticismo e da desconfiança nas
instituições europeias, uma questão que, como salientou Simon Hix, citado no
livro, se agudizou em virtude da crise económica e financeira de 2008, com o
BCE a assumir, naturalmente, um protagonismo que, queiramos ou não,
desequilibra o jogo de distribuição de poderes entre os actores da União.
As
sondagens deste ano apontam para um crescimento de partidos eurocéticos, o que
é mau não apenas para a Europa mas para os países que a integram, pois os
resultados desses partidos irão ter, acima de tudo, uma leitura nacional – e não de «segunda» mas de
«primeira ordem» – nos Estados-membros onde se verificar esse crescendo do
eurocepticismo. Porque o eurocepticismo de hoje é muito diferente do de há 15
ou 20 anos; mais do que uma desconfiança em Bruxelas e na sua democracia, o
actual eurocepticismo evidencia uma desconfiança na democracia e no primado do
Estado de direito e na constelação de princípios e de valores que são tão ou
mais «europeus» do que as abóbodas de Notre Dame.
Até
por isso, ou também por isso, é essencial participar nas próximas eleições,
sendo com este apelo cívico que termino esta minha despretensiosa intervenção.
[Intervenção
na Faculdade de Direito de Lisboa, 13 de Maio de 2019]
António
Araújo
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