Fernando Botero, Bananos,
1990.
|
Diz-se
por aí, no submundo das vielas e das casas de pasto onde os turistas não ousam
entrar, que dois cidadãos portugueses foram avistados a receber passaportes
fresquinhos das mãos de uma funcionária do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras
de Santarém, no passado mês de Junho. Nesta fase há várias questões que se
impõem: quem serão os afortunados? Como terão conseguido levar a cabo tal
proeza? E quantos meses terão demorado a gizar um plano tão audaz?
A
verdade é que os últimos tempos têm sido particularmente duros. Consta que esta
prodigiosa República das Bananas a que continuamos a chamar Portugal, mais por
conveniência do que por convicção, tem emitido menos passaportes do que a RDA
nos meses subsequentes à construção do muro de Berlim. Os especialistas em
geopolítica começam, inclusivamente, a colocar a hipótese de Portugal vir a ser
ultrapassado pela Coreia Norte no que respeita à emissão de passaportes, a
breve trecho. Por outro lado, há quem insinue que esta coisa da livre
circulação de pessoas é capaz de ser um tanto sobrevalorizada. A título de
exemplo, a minha avó visitou Badajoz nos idos de 1973 e, ao que parece, não
ficou particularmente impressionada com “o estrangeiro”.
Mas
é tempo de expor a verdade! Depois de ter passado várias semanas trancado na
semicave de uns parentes de uma tia minha, para fugir ao estrelato, estou finalmente
em condições de afirmar que fui, de facto, um dos felizardos que obtiveram o
valiosíssimo passaporte da República das Bananas, um espécime raro que pode ser
adquirido no mercado negro por uns míseros 500.000€, sob o nome de código golden
visa, ou à troca de três rins.
Esta saga começou em Abril de
2019. Reservei as minhas férias para o final de Julho e – diligente como só eu
– apressei-me a agendar a renovação do meu passaporte. Apesar das notícias que davam
conta dos atrasos na atribuição desse singelo documento de identificação,
fiquei surpreso quando percebi que já só existiam vagas para meados de Julho,
escassos dias antes da ambicionada viagem para bem longe daqui. Ainda assim,
agendei a dita renovação para evitar as enchentes habituais, dada a minha farta
misantropia. Semanas mais tarde constatei que o referido agendamento de pouco
serviria, uma vez que a entrega dos passaportes estava a demorar algumas
semanas, de acordo com os testemunhos de inúmeros veteranos das doravante
denominadas guerras da identidade.
Vi-me então forçado a deslocar-me, sem
marcação prévia, a um dos serviços de atribuição de passaporte que, alegadamente,
servem a cidade de Lisboa. Consultada a internet optei por apresentar-me
no Campus de Justiça, por ser a menos central das repartições, crente que isso
me escudaria da presença – sempre incomodativa – de pessoas. A maldita rede não
ajudou muito. O horário de abertura estava mal indicado e, ao apresentar-me no sumptuoso
Campus pelas 08h50, logo descobri que afinal a secção indicada abria às
08h30 e não às 09h00. Resultado: as senhas do dia estavam atribuídas, ali e nas
demais dependências da cidade de Lisboa, com excepção da repartição do
aeroporto, onde, segundo me foi dito por uma profissional, já não sobravam
muitas.
Perante
este cenário dantesco, os meus companheiros de luta lançaram-se numa corrida
desabrida em direcção aos respectivos automóveis, e eu, ainda traumatizado
pelos míseros resultados que obtive no afamado mega sprint da minha Escola
Secundária, optei por desistir sem suar a camisa. Ainda pensei ir de metro e
antecipar-me aos competidores que ficassem retidos no trânsito, mas depois
lembrei-me que durante a hora de ponta é impossível apanhar um comboio em menos
de 25 minutos. Sentei-me num banco de jardim do Campus de Justiça a matutar nas minhas opções e acabei por
decretar que esta coisa de converter condomínios de luxo em órgãos de soberania
parece ser o epítome de um Estado falhado.
Depois
de uns minutos de profunda reflexão sobre as misérias do novo socratismo
decidi dirigir-me a outro concelho. Por certo que num município menos populoso
não encontraria aquelas enchentes. Escolhi a bonita vila de Alenquer, pela
relativa proximidade da zona Oriental de Lisboa, e pelo facto de, recentemente,
ter lá passado bons momentos no casamento de um amigo de infância. É
fundamental conservar uma boa dose de improvisação e capricho quando se lida com
o Leviatã todo-poderoso, a bem da
sanidade mental.
Cheguei
ao Registo Civil de Alenquer perto das 10h00. A sala exígua deveria ter umas 50
pessoas à espera, sendo que só existiam lugares sentados para cerca de 30.
Passados uns 20 minutos resolvi perguntar se atribuíam passaportes, visto que a
senha correspondente não passara do zero. Um funcionário educado, com ar cansado,
explicou-me que a máquina que produz os passaportes também é responsável pela
feitura dos cartões de cidadão. Dado que a repartição em causa só dispõe de uma
máquina, ainda teria de esperar que as 35 pessoas que aguardavam vez para
renovar o cartão de cidadão fossem atendidas. Apressei-me a fazer contas: se
numa hora a máquina só tinha dado vazão a 7 pessoas, antes das 14h00 não me
livraria daquele suplício.
Fui
desdenhar a minha sorte para a margem do rio Alenquer e, ao contemplar a
escassez do caudal, apercebi-me do erro crasso que cometera. Como previra,
havia pouquíssimas pessoas a renovar o passaporte em Alenquer, mas não fora
capaz de antecipar que o Estado dotara uma população de 10.000 habitantes com
uma única maquineta daquelas que nos atribui a identidade. Impregnado da
soberba típica dos yuppies da capital, esquecera-me que o Estado
Português nutre um especial desdém pelos incautos que residem a mais de 10 km
do Terreiro do Paço.
Irritado
com a minha própria ingenuidade fiz-me à estrada, a caminho de Santarém. O raciocínio
era simples: deslocar-me até ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras mais
próximo, na expectativa que poucas pessoas soubessem que é possível obter um
passaporte naquele serviço. Cheguei ao destino perto das 11h30 e o plano deu
certo. O edifício decrépito albergava dezenas e dezenas de imigrantes, de
várias proveniências, que aguardavam pacientemente a sua vez, sendo que nenhum
deles tinha direito ao ambicionado passaporte português. Felizmente, só havia
uma concidadã à minha frente na fila apropriada e não tive de esperar mais de
10 minutos.
Quando
me aproximei da máquina infernal não poderia estar mais assustado. Por um lado,
sabia que a dita geringonça tem o hábito irritante de produzir retratos
disformes, o que inevitavelmente confunde os fiscais do aeroporto, devido à
minha extrema beleza física. Por outro lado, temia que o maléfico engenho
avariasse só para me estragar o dia, que até aí estava a correr lindamente.
A
meio do processo perguntei à funcionária quando acederia ao almejado livrete
cor de vinho. Respondeu-me que não sabia dizer, na medida em que poderia ser
convocada uma nova greve a qualquer momento. Se há coisa que eu aprecio na
República das Bananas é a previsibilidade das relações que os cidadãos, também
conhecidos como servos da gleba, estabelecem com o Estado, também conhecido por
Soberano ou Tirano, consoante as traduções. Tal como no Antigo Regime, o Estado
põe e dispõe, e os cidadãos encolhem os ombros, sorriem a medo, e dão graças
pela misericórdia dos poderosos.
Se
eu fosse um mancebo corajoso, com tiques de revolucionário, poderia ter feito
um escabeche e procurado uma refrega ao estilo David contra Golias. Acontece que a coragem, tal como a velocidade, é
um predicado que eu não possuo, pelo que me limitei a encolher os ombros e a
compactuar com mais uma vilanagem. Optei por adquirir o serviço urgente, o que me
custou 30€ adicionais, apesar de só ter viagem marcada para o final de Julho,
não fosse a impressão demorar mais de 45 dias.
Enquanto
fazia o pagamento perguntei à funcionária como saberia quando deveria deslocar-me
a Santarém para levantar o passaporte (um detalhe menor para quem vive em
Lisboa). A senhora sorriu com ar comprometido e respondeu-me que tinha de ir
passando por lá para saber. Não tendo energia suficiente para retorquir,
agradeci e saí. Na República das Bananas é assim. Os cidadãos pagam impostos
diligentemente e em troca recebem filas intermináveis, serviços degradados, e total
incerteza. A sensação que fica é que somos escravos de um Estado sedento e
discricionário, que alimentamos e mimamos, a troco de migalhas.
Vejamos.
Se um cidadão português quiser sair do espaço europeu é forçado a escolher uma
de duas hipóteses: ou acorda às cinco da manhã para aguardar pela sua vez numa
fila a céu aberto, correndo o risco de ser vilipendiado por membros do governo
pelo seu egoísmo desprezível, ou desloca-se umas centenas de quilómetros em
busca de um serviço mais desanuviado que faça o favor de conceder-lhe o
passaporte. Se esse mesmo indivíduo, vai-se lá perceber porquê, insistir em
continuar a residir em Portugal depois desta encantadora experiência, terá de
enfrentar o mesmíssimo dilema para obter o cartão de cidadão. O Estado conhece
e compila a morada de toda a gente, mas não consegue estimar o número de utentes
que, em média, acorrerá num dia normal a um determinado serviço público, e, menos
ainda, de dotá-lo dos meios que os contribuintes (e os funcionários) merecem.
Partidos
políticos há que gostariam de alterar a designação do cartão de cidadão para
torná-la mais inclusiva, quiçá recorrendo a uma novilíngua sensaborona
que contribua para branquear iniquidades mais profundas. Não desfazendo,
preferia que se centrassem em tornar os serviços públicos mais eficientes e
acessíveis para as velhotas de Alenquer, para os imigrantes de todo o distrito
de Santarém, e, se não for pedir muito, para os pequeno-burgueses das Avenidas Novas, entre os quais me incluo,
penitente.
À
saída do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras passei junto às dilacerantes
ruínas do Teatro
Rosa Damasceno, ardido em 2007. A recuperação dessa sala icónica,
remodelada nos anos 1930 ao estilo Art Déco, está por tratar desde 2009, tendo
dado origem a um processo em tribunal, entre a Câmara Municipal de Santarém e
um empreiteiro. Na República das Bananas a vida corre devagar. Os cidadãos são
forçados a perder um dia de trabalho para renovar o passaporte, a esperar meses
por uma simples consulta de rotina, e a aguardar mais de 10 anos para resolver
uma disputa judicial a propósito de uma permuta de terrenos.
Cheguei
ao carro revoltado com tudo o que me acontecera na manhã daquela segunda-feira.
Durante uns minutos entretive seriamente a possibilidade de aproveitar o novo
passaporte para votar com os pés,
em protesto. De certo que num país desenvolvido não seria tratado com o
menosprezo a que nos fomos habituando por cá! Eis senão quando, ao passar à
porta da pastelaria Bijou,
fui acometido pelo cheiro convidativo dos Pampilhos, e não resisti a entrar.
A
pausa repleta de açúcar diluiu o fel que me consumia e atenuou a minha vontade
de partir. Quem sabe se ao longo das minhas incontáveis desventuras nesta
República das Bananas a que chamamos Portugal, não terei desenvolvido uma dose
irreparável de Síndrome de Estocolmo. Decidi ficar, para desgosto dos meus detratores,
na esperança que um dia a bendita República se digne a tratar os indivíduos que
a compõem como seres livres e iguais e não como meros verbos-de-encher.
João
Tiago Gaspar
"Impregnado da soberba típica dos yuppies da capital, esquecera-me que o Estado Português nutre um especial desdém pelos incautos que residem a mais de 10 km do Terreiro do Paço."
ResponderEliminarMuito bem!
"Por um lado, sabia que a dita geringonça tem o hábito irritante de produzir retratos disformes, o que inevitavelmente confunde os fiscais do aeroporto, devido à minha extrema beleza física."
Muito bem. Não obstante os verdes, as ovelhinhas, o cheiro do cozido e do eucalipto a explodir em estio, sabemos de que geringonças escreve.
"Acontece que a coragem, tal como a velocidade, é um predicado que eu não possuo, pelo que me limitei a encolher os ombros e a compactuar com mais uma vilanagem.
Não tendo energia suficiente para retorquir, agradeci e saí."
Muito bem. Por mim, sem mais demoras, outorgava-lhe já cartão de cidadão "como deve ser" sem qualquer sobretaxa.
Isso e supermercados bem-feitores com os seus altifalantes a debitar estudos a falar sobre o estado das coisas que não inibe o estado de tudo pela fuga aos impostos dos principais contribuintes, sem esquecer o todo por cada uma das suas partes. Na república das bananas, não só como o descrito, também é assim: de tendência em tendência, sofre o cidadão pelas falhas e pelos interesses dos que se governam, a nível estatal ou empresarial, mas sem contudo deixar de ser político, que ninguém se esqueça ou adormeça.
ResponderEliminarNa república das bananas, país dos consumidores, também se criam falsas necessidades de consumo, muitas das vezes pouco saudáveis - física e mentalmente falando - entope-se com isso os hospitais, ou, claro, demoniza-se o estado, e procura-se fazer da saúde uma oportunidade de negócio, e o resto já se sabe: abre-se fundações à custa do consumidor, chupado até à medula, quando não são também os produtores, e acredita-se na fábula da gente muito boazinha que afinal era mais suína do que burra, tentacular e comedora até ao tutano.
ResponderEliminarNuma república como esta, entre o estado e o psicótico privado, venha o Diabo e escolha.