Há
muito tempo que não ouvia Serenity,
um dos últimos discos gravados por Stan Getz antes de morrer. Stan Getz teve um
início de vida complicado, era viciado no álcool e nas drogas, foi preso quando
jovem por assaltar uma farmácia em busca de morfina. O final da vida também não
foi fácil, Getz morreu minado por um cancro. Ainda assim, entre a morfina
juvenil e o tumor dos últimos dias, conseguiu deixar-nos um disco que nos
deslumbra pela imensa serenidade, no título e não só.
Este
blogue já existe há vários anos, talvez há tempo demais, e volta não volta
abate-se sobre ele uma luz crepuscular, fruto do desalento de quem não talento
– e que há muito deveria reconhecê-lo, de uma vez por todas. Qualquer que seja
o desfecho, confesso que gostaria que o imenso
adeus ocorresse precisamente como o de Getz, e com a palavra serenidade.
Nos
últimos tempos, tenho falado muito aqui de alterações climáticas e temas conexos.
Talvez mais do que a conta, certamente mais do que a paciência dos leitores
aguenta. Não me motiva qualquer ambição de cruzada nem sectarismo radical. Já
há muito que ouço falar de aquecimento global, e até houve um tempo em que
podia sorrir, quase concordar, quando lia um livro sobre a década de 1970 em
que o autor, David Frum, relativizava o problema dos gases-estufa recordando
que nessa década dos 70 o pânico era o arrefecimento global e o surgimento de
uma nova Idade do Gelo. Também houve um tempo em que lia The Skeptical Environmentalist, de Bjorn Lomborg, e, mesmo não
concordando, ia reconhecendo, aqui e acolá, que ele talvez tivesse alguma razão
num ou noutro ponto. Mas depois vemos o que aconteceu a Lomborg e sabemos que ele
tinha uma organização com um orçamento anual de um milhão de dólares, dos quais
750 mil eram o seu salário, e depois vemos que uma organização de cientistas
como a Climate Feedback detectou os inúmeros e gravíssimos problemas do que
Lomborg escrevia – crítica que este nunca foi capaz de rebater – e começamos a
duvidar do cepticismo do dinamarquês.
Esse
tempo passou. E, sinceramente, não sei quantos mais relatórios e mais notícias
e mais tragédias serão necessários para mostrar que esse tempo passou. E é por
isso que a palavra serenidade nunca foi tão necessária como agora. Dirão que o
discurso de Greta Thunberg foi tudo menos sereno, e eu até posso concordar. No
que não posso concordar é que, a propósito desse discurso, se publiquem
comentários alarves e machistas em que se fazem trocadilhos ordinários com o
nome da miúda. Há uns anos, o Herman José fez uma piada em que dizia que a
Greta Garbo era a greta mais famosa do mundo, o que, não primando pelo bom
gosto, sempre era uma tirada humorística. Agora, não: muitos não hesitaram na
piadinha rasca e boçal, de jaez taberneiro. Nas páginas do jornal i,
um tal de Rodrigo Alves Taxa lá publicou uma prosa intitulada «Coimbra, Vacas e Gretas», em que dizia coisas como «isto do ambientalismo, tal como está
a ser conduzido, não é mais do que uma moda que não nos leva a lado nenhum»
(!). «Para piorar, ainda me aparece agora uma catraia de 16 anos, catapultada a
estrela mundial da matéria», disse Taxa, acrescentando: «ora que diabo, o que
apetece dizer perante isto é: Oh rapariga, vai-te lá acabar de criar e depois
logo falamos». Não contente, o articulista do i incomodou-se com o «palco que se dá a uma catraia de 16 anos que
nada sabendo da vida quer ensinar os outros como governar» (jornal i, de 27/9/2019). Perante um nível de
argumentação como esta, compreende-se a profunda crise da imprensa portuguesa,
fruto da indigência de quem nela escreve. Já no Observador, Alberto Gonçalves não se inibiu de perguntar, com o
habitual bom gosto: «As Gretas saíram à rua?».
Serenidade,
impõe-se, por muito que não apeteça. Serenidade para reconhecer, par une fois, que, ao contrário do que
tantas vezes sucede, José António Saraiva tem no jornal Sol um artigo intitulado «Carne de Vaca» que coloca questões
interessantes e pertinentes. A mais importante é a saber até que ponto não é
fácil e ilusória, e também ela confortavelmente simbólica, a adesão dos
estudantes de Coimbra ao fim da carne de vaca nas cantinas universitárias.
Merece reflexão a pergunta que Saraiva faz, a de saber se esses mesmos
estudantes estariam e estarão dispostos a maiores sacrifícios, a sacrifícios
que mais lhes custem e doam, como largar o automóvel a caminho das aulas ou
consumir menos em viagens aéreas, em festas ou em roupa, tudo a bem do
ambiente. A propósito disso – e essa vai ser uma prova de fogo para o reitor,
para a universidade e para a comunidade académica – será interessante ver como
a Academia se porta na próxima Queima das Fitas. Se a Queima vai ser como todos
os anos é, um arraial de imundície em que, além dos neurónios e da
inteligência, se desperdiçam milhares e milhares de copos de plástico. O Senhor
Reitor, que tomou uma medida ousada e corajosa, e os alunos, que logo o
apoiaram, foram sujeitos a um vendaval de críticas (quanto a mim, quase todas
infundadas, mas adiante). Pois a melhor forma de mostrarem que são capazes de
ir além do simbolismo dos bifes é imporem às cervejeiras e às comissões das fitas
e das queimas que haverá um uso racional do plástico naqueles dias de loucura e
«tradição»; por exemplo, como agora já se faz um muita festa jovem, premiando a
reutilização dos copos de plástico ou mesmo – será pedir muito? – abolindo totalmente
o seu uso. Faço daqui este modestíssimo apelo – que, de resto, não é original,
Mário Ramires já falou disto nas páginas do Sol – com a legitimidade de quem
apoiou a decisão do Magnífico desde a primeira hora.
E
a decisão do Reitor deve ser apoiada porquê? Uma vez mais, por serenidade.
Gozarão alguns, dizendo que aquela decisão foi tudo menos serena. Pois não me
interessa se o foi ou não, como já estou cansado de tentar saber se a decisão
tinha ou não fundamento «científico». Desde que rebentou, este caso pareceu-me
muito mais importante e expressivo do que parece à primeira vista. Para uns,
não passará de uma controvérsia pateta em torno de uma questiúncula menor, como
tantas vezes sucede na esfera pública portuguesa. Não é. Foi, sem dúvida, uma
questão menoríssima, quase caricata. E é por isso, paradoxalmente, que uma querela
menoríssima se tornou, em meu modesto entender, numa questão de importância
crucial, crucial. O facto de uma questão destas ter suscitado tanta celeuma é,
quanto a mim, a prova provada de que não estamos nada, absolutamente nada,
preparados para mudanças de maior vulto que, pelo que vou vendo e lendo, terão mesmo de ocorrer. Queiramos ou não.
Muitas dessas mudanças até podem ser, concedo serenamente, pouco fundamentadas
e apressadas, ditadas por um desejo de mostrar serviço e aliviar consciências
pesadas. Julgo que não, mas admito que o sejam. Pois bem: quando mudanças
maiores tiverem de ocorrer, estamos preparados para elas? Não, não estamos.
Serenamente, temos de o reconhecer. Não estamos preparados para coisas como vão
acontecer na Indonésia, em que 30 milhões de pessoas vão ter de abandonar Jacarta, em risco de ser afundada pela subida do nível das águas. Trinta
milhões, leram bem. Esses vão ter de mudar de casa, emprego, etc., algo um
pouco mais forte do que deixar de comer bife numa cantina de uma universidade.
Estaremos nós preparados para coisas como essas? Não. Daí termos motivos para,
sem perder a serenidade, ficar ainda mais preocupados. Daí a exemplaridade deste
caso dos bifes da Lusa Atenas. À preocupação com as alterações climáticas
junta-se uma preocupação adicional: não só temos de lidar com o aquecimento
global como ainda temos de lidar com a resistência e a aversão à mudança, com a
incapacidade de alterar as mais pequenas coisas do nosso quotidiano – como
teremos de lidar ainda, e sempre com serenidade, com o sectarismo acéfalo de
muitos opinion makers e com a
tendência para converter tudo, mas tudo, num território de disputa e combate.
Impressiona-me, sinceramente, o apreço que muita da nossa direita parece agora
mostrar pelo marxismo da luta de classes, e pela facilidade com que se entrega e
resvala numa lógica conflitual e confrontacional tão ao gosto da esquerda mais
radical, da esquerda – e, pelos vistos, de muita direita – que é incapaz de
alcançar compromissos e de encontrar consensos para além da sua trincheira e da
sua barricada ideológica. É por estas e por outras, por falta de serenidade,
que as sociedades estão cada vez mais polarizadas e maniqueístas, mais
extremistas, sem centro equilibrante nem consenso possível. De um lado, Donald
Trump, do outro Bernie Sanders. No meio, terra de ninguém.
Isto
vê-se em pequenas coisas que nunca pensei ver, em dias da minha vida, até aqui
serena. Por exemplo, vê-se no modo como especialistas e universitários
apareceram a falar numa questão de bifes. Pessoas que muito respeito, como
Henrique Pereira dos Santos, ou outras que também merecem respeito, como Manuel
Cancela d’Abreu, da Universidade de Évora («Carne de vaca - e porque não?»). O que me impressiona e aflige é que
falem agora, apenas agora, a propósito de uma questão menoríssima mas que se
tornou estupidamente numa querela política, com todas as críticas ao reitor a surgirem
de forma alinhada da mesma área ideológica. Há meses, não muitos, o Governo
aprovou e fez publicar no jornal oficial o Roteiro para a Neutralidade Carbónica (RNC 2050). Ora, e como bem se assinala aqui, neste artigo de três
professores do Instituto Superior Técnico especialistas em Ambiente e Energia, esse
Roteiro preconiza «uma redução significativa do
número de bovinos em Portugal em 2050 com base na constatação, correcta, de que
constituem um significativo contributo para as emissões de metano, um gás com
forte efeito de estufa». Este artigo aconselha ponderação e louva as pastagens
biodiversas, na linha do Roteiro para a Descarbonização, que contou nessa parte
com a assessoria técnica da Agroges e de uma personalidade que muito admiro,
Francisco Avillez, penso que insuspeito de ser um extremista da esquerda
radical. Leiam o que diz, aqui.
Admiro-me, por isso, que os que agora criticam o Reitor, intervindo
e politizando uma questão menoríssima, não tenham, ao que sei, criticado o que
mais importa, porque de maior alcance, o Roteiro para a Neutralidade Carbónica
e a sua aposta numa redução, numa redução significativa, do número de bovinos.
O Roteiro esteve em consulta pública, foi amplamente debatido, e o facto de a
celeuma se ter instalado por causa da micro-decisão de um Reitor e não por
causa desse Roteiro – que, insiste-se, aponta para uma redução significativa do
número de bovinos – é a prova, mais uma, da indigência do debate público em
Portugal.
E, no meio de tudo, a questão essencial fica sempre por
responder, e é esta: reduzir o consumo de carne de vaca é ou não é positivo para
a saúde pública e para o ambiente? Reduzir, como aqui se diz, é ou não positivo para o planeta e para a nossa vida?
Se a resposta for negativa, se não fizer sentido diminuir a
produção e o consumo de carne de vaca, então porque é que o Roteiro para a
Descarbonização fala disso? E, se fala, porque é que os actuais críticos do
Reitor de Coimbra não o criticaram? Se as pastagens são boas para fixar carbono, e se só olharmos a essa realidade, deveremos então comer ainda mais carne do que aquela que comemos? Uma coisa parece-me evidente: o que o
Reitor fez não foi mais do que um tímido contributo, na sua limitadíssima
esfera de actuação, para concretizar objectivos inscritos numa Resolução de
Conselho de Ministros de Portugal.
Se a resposta for positiva, se se entender que a produção e o
consumo de carne são danosos para o ambiente e para a saúde pública, que é
necessário haver moderação, então para quê questionar o que foi decidido em
Coimbra?
São estas perguntas que deixo, numa tentativa de abordar serenamente
um tema que, convenhamos, bem merecia ser mais consensual e pacífico. Serenity, please.
Por favor não desista. É este um dos espaços de lucidez e bom senso, onde venho regularmente. Obrigado
ResponderEliminarMuito bom! Muito Obrigado.
ResponderEliminarMuito bom. Obrigado por continuar a falar deste assunto.
ResponderEliminarÉ um assunto muito importante e não percebo como é que as pessoas respondem e criticam tão levianamente sem terem o mínimo de noção das bases científicas que sustentam estas iniciativas.
E nem se fala também que o consumo excessivo de carne, principalmente as vermelhas, é uma das maiores causas de problemas cardíacos a nível mundial.