Tendo recebido de António Araújo resposta ao meu último texto aqui publicado, e sendo já esse meu texto uma resposta à sua crónica no DN, venho pelo presente dar continuidade a este muito estimulante ping-pong digital, essa espécie de epistolografia que teve o seu momento de glória nos primeiros anos da blogosfera e que se encontra agora, infelizmente e talvez por culpa do Sr. Zuckerberg, moribunda.
Não é certo,
porém, que tenha as competências necessárias para prolongar indefinidamente
este debate, pelo que, perante eventual nova resposta daquele que é um dos
literatos portugueses que mais admiro, talvez me limite a convidá-lo para
jantar e a apresentar-lhe os meus argumentos diante de um copo de vinho e longe
dos olhares de terceiros. Como reza aquela frase que toda a gente conhece e
quase ninguém aplica, por vezes é melhor ficar calado e suspeitarem que somos
uns tontos do que abrir a boca e acabar com todas as dúvidas.
Nos
primeiros parágrafos que escreve, António Araújo, astuciosamente, desvia-se do
ringue em que o quis colocar e convoca-me para um outro, bastante mais
escorregadio para o tipo de calçado que uso neste momento. De qualquer forma,
mesmo correndo o risco de me estatelar, aceito passar para o interior dessas
cordas e discutir a problemática da coabitação neste blogue. Aqui vai: considero
que o Chega não é flor que se cheire e tenho pena que a Cristina Miranda, com
quem partilho este espaço, não tenha o olfacto afinado pelo mesmo diapasão com
que temperei o meu. Posto isto, não acho que essa divergência constitua motivo
suficiente para me afastar do Blasfémias e muito menos, obviamente, para pedir
à Cristina que dê ela esse passo (da mesma forma que as afirmações do centrista
Nuno Fernandes Thomaz sobre possíveis entendimentos do CDS com o Chega, uma
opinião pessoal que António Araújo evoca no seu texto, não levaram a que
ninguém, voluntariamente ou empurrado, batesse com a porta no Largo do Caldas).
E também não acho que seja justo ler, como li no Malomil, que estou “ao lado do
Chega”. Seria como se eu, “esticando” mais um pouco essa lógica, dissesse que o
António, por partilhar a editora Tinta-da-China com o diplomata Franco
Nogueira, ministro e biógrafo de Salazar, está ao lado do Estado Novo.
Claro que
não vou dizer que seria normal, no Blasfémias, a publicação de um texto
apologético de Estaline ou de Mao Zedong. Possível, era, pois ninguém tem de
pedir autorização prévia para escrever o que lhe apetece, mas causaria
manifesta estranheza dentro e fora de portas, aos colegas de blogue e a todos
os que o lêem. Qual será então a diferença para o caso actual, o tal post da
Cristina Miranda sobre o André Ventura? (E admito que haverá, de facto, alguma
diferença, mesmo sabendo, como sei, que o António Araújo não foi o único a
franzir o sobrolho perante as palavras da minha colega.)
A diferença,
pelo menos em parte, está já identificada na resposta do António: ao contrário
do que se passa em relação ao comunismo e ao fascismo “não diluídos”, nos quais
ninguém, por mais imaginação que tenha, consegue desencantar pontos de contacto
com o liberalismo, existem outras correntes, menos puras, que às vezes baralham
a audiência. Não me refiro, naturalmente, aos diversos graus e nuances que
podem (e devem!) coexistir no pensamento liberal, nem sequer ao célebre
“conservadorismo liberal” que João Carlos Espada disseca, quase todas as
semanas, no Observador. É certo que existem tensões nesse conceito, mas não me
parecem irresolúveis (atenção: “conservadorismo liberal” é uma coisa, ter Abel
Matos Santos e Adolfo Mesquita Nunes debaixo de um tecto comum que vale neste
momento 4,22% dos votos é outra totalmente diferente – uma espécie de
“iliberalismo liberal” muito mais difícil de gerir), e fico genuinamente
contente com a diversidade e com as divergências: o liberalismo não deve ser
rígido, sectário e dogmático, uma vez que a realidade é complexa e exige mais
pragmatismo do que demonstrações de pureza ideológica.
Refiro-me,
sim, a todas aquelas correntes que se dedicam a esquartejar o conceito de
liberdade em pedaços, aproveitando os que consideram mais saborosos e deitando
ao lixo os restantes, e que continuam a chamar “liberdade” aos sobreviventes do
esquartejamento. E uma dessas correntes parece ser, sem dúvida, o Chega,
existindo outras, à esquerda, que embora com uma escolha diferente dos pedaços
a descartar, têm um comportamento semelhante.
Concordo,
pois, com a essência deste texto que António Araújo publicou no Malomil, e se
escolhi criticar o que escreveu no DN em vez de me dedicar
ao Chega, isso deveu-se a ter ficado surpreendido com o seu conteúdo (que me
diz directamente respeito e sobre o qual já reflecti longamente), a considerar
que o autor merece que gaste tempo com ele, e a não me apetecer entrar em
polémicas com um partido que procura avidamente as polémicas para se destacar e
crescer. Respeito quem votou no Chega, compreendo muitas das preocupações e
irritações dos eleitores do Chega, mas prefiro não falar demasiado do Chega,
uma escolha que já está a correr mal dado o número de vezes que disse a palavra
só nesta frase.
No entanto,
em minha defesa, recorro a uma pequena recensão que publiquei no
Observador em Maio deste ano e que recaiu sobre o livro Juntos, somos
quase um 31. Liberais à solta! editado pela Alêtheia / Oficina da
Liberdade. Nesse texto, apesar de ter elogiado a heterodoxia do volume,
sublinhei o carácter controverso da inclusão de um capítulo dedicado ao
programa económico de Paulo Guedes, ministro do Governo de Jair Bolsonaro. E se
fiz esse sublinhado, foi precisamente por considerar que não basta estimular a
liberdade económica para que um regime seja denominado liberal ou para que
mereça elogios frontais ou velados. O caso de Hayek, que no meio de brilhantes
contributos para a causa do liberalismo encontrou espaço para umas
inacreditáveis afirmações sobre o Chile de Pinochet, devia ter servido de
exemplo.
Na segunda parte da sua resposta,
António Araújo, aproximando-se já do ringue escolhido por mim, aborda a
problemática da difusão das ideias liberais em Portugal, começando por
questionar a opção (julgo que atribuída à Iniciativa Liberal) de se querer
começar por cima (“alcançar o centro do poder do Estado para a partir daí
iniciar uma «revolução liberal»”) em vez de se começar por baixo, da sociedade
para o Estado, através da formação de associações, publicação de livros,
organização de seminários e conferências, etc. Não sou militante da IL, apenas
simpatizante e eleitor, e por isso não sei se existe algum plano secreto para
desencadear um golpe que coloque o João Cotrim de Figueiredo
na posição de D. Pedro IV após o desembarque no Mindelo, quando este membro da
Casa de Bragança sentiu necessidade de ameaçar os portugueses com um inopinado
e infausto “Não me obriguem a libertar-vos!”. Até ver, não me parece que a
eleição de um deputado signifique que a IL alcançou o “centro do poder do
Estado” nem vislumbro qualquer sucesso numa eventual tentativa de iniciar uma
“revolução liberal” a partir da cadeira solitária conquistada no Palácio de São
Bento. Agora, se devidamente aproveitada, creio que a eleição de Cotrim de
Figueiredo pode ajudar bastante no enraizamento da tal “cultura liberal”
referida por António Araújo. Uma cultura que, definitivamente, não nasceu com a
IL, e que contou, desde o 25 de Abril, com vários impulsos, dos quais vou
destacar, sem pretensões de exaustividade, o Grupo de Ofir liderado por
Francisco Lucas Pires, os textos que Pedro Arroja publicou na imprensa nas
décadas de 80 e 90 (não desvalorizo as excentricidades e até um ou outro
disparate, mas foi indiscutivelmente um “influencer” avant la lettre)
e o surto de blogues liberais nascidos na primeira década do séc. XXI (não fiz
parte desse surto, comecei a escrever no Blasfémias em Fevereiro de 2017, já a
“grande festa” da blogosfera tinha acabado há muito).
Ao contrário
de António Araújo – e ao contrário, também, de muitos liberais –, não
menosprezo o que foi alcançado até hoje no campo da difusão de ideias. Concordo
que o liberalismo ainda tem uma expressão pouco relevante em Portugal, mas não
sei se, após décadas de uma ditadura antiliberal de direita (que só tinha como
oposição organizada um partido antiliberal de esquerda) seguidas de mais uns
longos anos em que só a liberdade política (e nunca a económica) podia ser
defendida sem se ser insultado, era possível um cenário diferente. Os
portugueses não são masoquistas, claro, mas são, como todos os outros povos, permeáveis
ao discurso político dominante. E esse, tendo sido de direita até 74 e de
esquerda depois, foi quase sempre, adaptando o conceito de Gramsci,
hegemonicamente antiliberal. Como já lembrou neste blogue o actual presidente
da IL, num congresso do PSD em 1995, ou seja, 6 anos depois da 2ª Revisão
Constitucional, o congressista Luís Filipe Menezes não encontrou melhor do que
“liberal” para baptizar pejorativamente os seus adversários internos. E a
dimensão da vaia com que foi presenteado mostra bem o carácter insultuoso que
se atribuía à palavra. Por isso, apesar da lentidão (que era, na minha opinião,
inevitável), julgo que as ideias têm percorrido o seu caminho.
Na terceira parte da sua resposta,
António Araújo entra, definitivamente, na questão que deu origem ao meu texto.
Parece-me que este trecho vai ao encontro de algumas das coisas que eu disse, o
que me deixa contente, sendo que eu também concordo com alguns dos novos
argumentos trazidos à discussão.
O caso de
António Filipe é interessante e estive para falar nele no meu post original.
Ao contrário do que aconteceu com Ricardo Robles, esta polémica, relacionada
com um dos mais experientes parlamentares do país, não “pegou”. Foi plantada,
regada, podada e acarinhada e, mesmo assim, não deu frutos. E esse insucesso
(insucesso para os opositores do PCP, claro) não se deveu à falta de ataques de
António Filipe à família Mello/hospitais CUF; deveu-se, isso sim, à inteligência
com que António Filipe (que sabe mais de política a dormir do que Ricardo
Robles acordado) conduz as suas lutas, dirigidas contra a falta de investimento
no SNS e contra as manobras de bastidores dos grupos privados ligados à saúde e
não através de ataques aos utentes das clínicas e hospitais particulares, pois
estes, humanos que são, limitam-se a tentar evitar os constrangimentos do
sector público e a agir de acordo com os incentivos (palavra-chave
importantíssima, essencial para se compreender o pensamento económico liberal)
existentes. António Filipe só não se “tramou” porque não existia uma verdadeira
contradição, tal como, acredito eu, ela não existe no caso dos liberais
funcionários públicos. A não ser, claro, que esses liberais direccionem as suas
críticas aos próprios funcionários, em vez de as direccionarem ao sistema
político-económico que os enquadra.
Vasco Pulido
Valente, que António Araújo chama aos seus textos, escreveu em 2006 o seguinte:
“a sociedade portuguesa assenta numa «classe média de Estado», que não se
tenciona suicidar por puro amor à consolidação financeira”. Também escreveu,
nesse mesmo ano, um veemente e espirituoso “as classes médias nunca vão
legislar contra os seus interesses. Estamos a pedir às putas que reformem o bordel”,
com o qual não concordo, mas já lá vamos, depois de tratarmos do “suicídio”.
Exageros à
parte, estaríamos perante uma situação desse género se eu decidisse, por uma
questão de escrúpulo liberal obsessivo, despedir-me da função pública. A não
ser que a causa do liberalismo precise de mártires, e não me parece que
precise, qual é a vantagem, para o país, de eu sair num dia e ser substituído
por outra pessoa no dia seguinte, mantendo-se todo o sistema exactamente igual?
Coisa diferente seria uma reforma profunda que, apostando na liberalização do
meu ramo de actividade (através de privatizações, ou de uma maior abertura ao
mercado, ou de um aumento das parcerias com privados, etc.), me transformasse
em trabalhador do sector privado. Eu estou disposto a apoiar essa reforma e,
nesse caso, sendo português e acreditando que uma economia mais liberal
melhorará a vida dos portugueses, o meu interesse próprio e
o interesse geral do país estarão alinhados e em sintonia.
É por isso
que não concordo com a frase em que VPV menciona os problemas da gestão
estratégica de um prostíbulo. Se olharmos para a palavra “interesse” apenas
numa lógica imediatista, a afirmação tem lógica. Mas o interesse, próprio ou
geral, deve ser apreciado tendo em conta o curto, o médio e o longo prazo. Não
estou a desprezar o dia de amanhã, pois ele inclui três refeições que me
interessam e que terei de pagar, estou somente a dizer que não devo avaliar o
meu interesse olhando unicamente para ele. O que o liberalismo precisa, pois,
mais do que de D. Quixotes solitários a autoflagelarem-se pela causa, é de
homens e mulheres que, acreditando nela, a tentem transmitir da melhor maneira,
convencendo outros dos seus benefícios, para que esta possa reunir o apoio
público e eleitoral necessário ao seu aprofundamento. E também precisa,
naturalmente, de “tropas” no Estado, pessoas como Cotrim de Figueiredo e
Mesquita Nunes, que, curiosamente no mesmo sector – o turismo –, trabalharam em
prol da liberalização do país. Se, por exigência moral desproporcionada, estes
dois liberais se tivessem recusado a “vencer mensalmente pelo Orçamento do
Estado”, Portugal estaria hoje muito mais pobre, e o “bordel”, para voltarmos a
Pulido Valente, estaria eventualmente a ser reformado, à força, por “putas” de
fora, vindas directamente do Banco Central Europeu, da Comissão Europeia e do
FMI.
(para o
António Araújo, com um abraço amigo e votos de um bom feriado)
Sérgio Barreto Costa