quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Para um diálogo com um liberal (2).

 
 
 
 
          Tendo Sérgio Barreto Costa publicado no Blasfémias um texto crítico de um escrito meu no Diário de Notícias, e tendo ele a gentileza de me enviar o respectivo link, acedi de imediato a divulgar esse seu texto no Malomil, pela oportunidade que me dá de estabelecer um diálogo frutuoso e intelectualmente estimulante com uma pessoa que muito prezo.
          Irei fazer alguns comentários esparsos, sem preocupações de sistematização, e o Sérgio Barreto Costa, querendo, poderá responder também aqui.
 
          Meu caro Sérgio Barreto Costa,
 
          Como sabe, há um tema que os «liberais» portugueses adoram discutir, com contornos quase obsessivos: a ausência de um «pensamento» ou de uma «cultura liberal» em Portugal. No que incorrem numa contradição nos termos, pois se não há «pensamento» ou «cultura» liberais entre nós, de onde terão surgido os nossos «liberais»?
          Sejamos justos: o que se pode dizer é que essa «cultura» ou esse «pensamento» não estão suficientemente enraizados e sedimentados, que são ultraminoritários, que não têm expressão num país dominado pelo Estado e, pior ainda, pelo «estatismo».
          Mas querer alcançar o centro do poder do Estado para a partir daí iniciar uma «revolução liberal» não é começar por cima? Não significa contradizer os princípios mais básicos do liberalismo começar pelo Estado, antes de começar pela sociedade civil?
          Entendamo-nos: ou dizemos que em Portugal não há uma «cultura liberal» e, menos ainda, uma «sociedade civil liberal», e aí o esforço deveria iniciar-se pela formação de associações, clubes, pela publicação de livros, pela organização de seminários e conferências, por acções junto dos jovens, ou seja, o esforço deveria começar de baixo para cima, da sociedade para o Estado, e não o inverso; ou afinal concluímos que já existe uma sociedade civil liberal – e aí a questão é saber porque é que ela tem tido tão pouca capacidade de enraizamento político num país dominado pelo «estatismo».  
          Em qualquer dos casos, a pergunta impõe-se: que têm feito os liberais portugueses para difundir as suas ideias e para propagar a sua doutrina? Pelos vistos, pouco, uma vez que o país continua dominado pelo «estatismo» nas atitudes e nos comportamentos da classe política mas também da própria sociedade civil e, já agora, de parte substancial do nosso empresariado. E mesmo que se admita que tem havido um trabalho aturado e sério de divulgação do liberalismo e das suas vantagens, o facto é que esse trabalho não tem tido até hoje resultados muito visíveis, no que penso que concordará comigo. É estranho que as pessoas vivam há décadas esmagadas pelos impostos e sufocadas pela ineficiência do Estado e que até hoje não tenha surgido uma formação política liberal com uma expressão relevante. A menos que concluamos que os portugueses são masoquistas, isso é muito estranho, não lhe parece?
          A questão que se coloca, uma vez mais, é a da vitimização fácil, mas inconsequente. Quando somos incapazes de difundir as nossas ideias por causa do «estatismo» reinante, devemos interrogar-nos se a culpa é do estatismo reinante ou das nossas ideias. A culpa pode ser também do modo como as temos difundido ou, sobretudo, como as não temos difundido.  
Quer-me parecer que culpabilizar o «estatismo» é um expediente cómodo e desresponsabilizante, e que atribuir todas as culpas ao «estatismo» só explicará, quando muito, uma parte do problema. Trata-se, aliás, de uma atitude bem pouco liberal. Um empresário a sério ou um liberal a valer confiam no poder das suas capacidades, adaptam-se às agruras do meio envolvente e vencem as adversidades tremendas, não estão sempre a culpar o alheio, a atribuir-lhe constantemente a causa dos seus fracassos. Não é esse, no fim de contas, o valor e o mérito da «autonomia» e do «indivíduo»? Se um empresário passar a vida a lamentar-se de burocracias e impostos, a culpar o Estado por não conseguir compradores para os seus produtos ou para exportar as suas mercadorias, mais vale fechar as portas e dedicar-se a outra actividade.
Empregar-se como funcionário público é uma opção sensata: se não conseguirmos vencer o Estado-Papão, mais vale juntarmo-nos a ele, com um emprego estável e seguro para a vida, longe das amarguras da actividade privada. E aqui entramos na questão fulcral, na questão que deu ensejo ao seu texto, a de saber se é legítimo um liberal ser funcionário público. Sobre ela falarei em breve.
 
Até lá, aceite um cordial abraço do
 
António Araújo
 
(Continua)













2 comentários:

  1. Para ser sincero, esta série de trocas deixa-me um pouco preocupado.

    Sera que é coerente um esquerdalho bolchevique como eu exercer uma profissão liberal que nem sequer da direito a seguro de desemprego ? Ou devo considerar que esta bem, porque a advogacia é uma actividade exercida em monopolio cuja função consiste em parasitar o serviço publico administrativo da justiça estatal ? De resto, é também uma actividade dita "liberal", mas, como sabemos, a palavra "liberal" pode também ser utilizada como um palavrão (pense-se nas espurias "liberalidades" de que trata o canto IX do codigo civil português). Consta até que nos insuspeitos estados unidos a palavra "liberal" pode ser usada para significar "uma pessoa um bocadinho de esquerda".

    Boas

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  2. Aqui está uma boa conversa. Obrigado.
    Sem academismos julgo-me próximo do liberalismo e sigo o Blasfémias. Nos últimos anos tenho-o notado menos liberal... muitos dos seus membros não parecem sê-lo e chegam a fazer censura. Eu, por exemplo, estou banido de fazer comentários... Há lá quem, sendo proprietário do espaço, exerce esse poder vedando opiniões. Está no seu direito, mas num sítio em que se defende o liberalismo, soa um bocado a anti-liberal...

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