Ian McEwan chamou Sábado a um dos seus
mais bem-sucedidos romances, Vinicius repetiu quarenta vezes a palavra “sábado”
num dos seus mais famosos poemas, e a dinamarquesa Whigfield, com o seu Saturday
Night, colocou a minha geração, bastante dada a manifestações ocasionais
de parolice, a cantar a plenos pulmões as delícias da pândega do sexto dia. Até
o povo, com a sua proverbial sabedoria prática, cunhou a divertida expressão
“Nunca mais é sábado”, resumindo, numa só frase, a ânsia que afecta os
trabalhadores que estão sob a capa da semana-inglesa e a influência da tradição
judaica na cultura popular, fazendo do sábado, mais do que do muito cristão
domingo, o verdadeiro dia de descanso e de divertimento, o dia em que se anda
de bicicleta com os filhos, em que se toma o pequeno-almoço com calma, em que
se janta com os amigos, enfim, em que cada um, conforme as suas preferências,
se tenta entregar aos ensinamentos de Epicuro ou, na sua versão destravada, aos
excessos do hedonismo.
Também eu, obviamente, procuro no sábado a
serenidade e os prazeres que se vão esquivando de segunda a sexta, sendo que um
deles, porventura o maior, é a leitura das últimas páginas da edição em papel
do DN, onde duas figuras muito distintas – António Araújo e Rogério
Casanova – demonstram semanalmente ao país o domínio da arte de escrever uma
crónica. Rogério Casanova é um mestre da ironia e da crítica sarcástica, aquele
tipo de pessoas a que damos o nome técnico de “grande gozão”, e não é por causa
dele que escrevo este texto. Interessa-me sim, por causa da sua última
colaboração, António Araújo, que ocupa normalmente as suas duas páginas com
retratos biográficos de mulheres e homens historicamente relevantes, quase
sempre “fotografados” de um ângulo original, e que, desta vez, optou por se
dedicar à política caseira. Em vez de Steve McQueen, Walter Benjamin, Bobby
Fisher, Martha Mitchell, Serge Gainsbourg ou Michel Foucault, algumas das
personalidades que já foram alvo de parágrafos eruditos e extraordinariamente
educativos, tivemos desta vez direito a Vasco Pulido Valente e Maria de Fátima
Bonifácio, e também ao recém-eleito João Cotrim de Figueiredo e restantes
“pseudoliberais lusitanos”.
A tese apresentada no último DN, em
resumo, é a seguinte: os críticos do estatismo nacional, ou seja, os liberais
portugueses (que, segundo AA, não passam de pseudoliberais), cultivando uma
postura infantilizada sartriana (“o inferno são os outros”), não vivem de
acordo com a ideologia que defendem, derivando desta situação que alguns deles
“vencem como funcionários públicos”, outros “são pensionistas da Caixa de
Aposentações” e outros ainda, caso do novo deputado da Iniciativa Liberal (IL),
têm como pontos mais salientes do CV o exercício de cargos no Estado.
Quando um qualquer escriba escreve um pequeno
disparate, algo muito frequente na imprensa e na blogosfera e que eu próprio
faço amiúde, nada há a estranhar e não vem mal ao mundo por causa disso; quando
um ensaísta invulgarmente culto e sensato faz o mesmo, embora também não venha
mal ao mundo, estranha-se. E, ao contrário da Coca-Cola do Fernando Pessoa, não
se consegue avançar para a segunda fase.
Optando por ignorar o manifesto exagero em
relação aos empregos públicos de Cotrim de Figueiredo (28 meses a liderar o
Turismo de Portugal não são assim tão significativos para um homem de 58 anos e
que trabalha há mais de três décadas), vou tentar abordar o mais frontalmente
possível a questão de fundo: pode um liberal trabalhar para o Estado de consciência
tranquila, sem temer acusações de falta de coerência? Esta é uma dúvida que me
toca na pele, pois acumulo a condição de admirador das ideias liberais – sejam
elas políticas e herdeiras de John Locke, sejam elas económicas e herdeiras de
Adam Smith –, com a de votante na Iniciativa Liberal, e com a de – minha culpa,
minha máxima culpa – elemento do conjunto de portugueses que “vencem como
funcionários públicos”. Claro que, conhecendo minimamente o pensamento de AA e
sabendo que ele não é um defensor do absolutismo de direito divino, nem de
ditaduras do proletariado, nem de regimes autoritários de inspiração fascista,
não vou cometer a injustiça de incluir o liberalismo político nesta análise. O
cronista do DN é indiscutivelmente liberal nesse sentido e está por
isso a referir-se, naturalmente, ao sempre polémico liberalismo económico, o da
mão invisível, o da separação entre Estado e negócios privados, o da
simplificação regulatória, enfim, aquele que é, na história recente, o pólo
oposto do socialismo. Foquemo-nos, então, nos descendentes de Adam Smith.
Há várias ordens de razão para que eu, com
algum atrevimento e exagero, admito, tenha caracterizado como “pequeno
disparate” as observações de AA. Umas são ideológicas, outras práticas e
comezinhas, e há ainda um terceiro grupo, de contornos ligeiramente
maquiavélicos, pelo qual começo. O que aconteceria a uma nação em que os
simpatizantes do liberalismo abdicassem voluntariamente de qualquer carreira
paga pelo Orçamento de Estado, deixando todos esses lugares para os
simpatizantes das ideias socialistas? Note-se que, por definição, os grandes
poderes de um país são sempre públicos, pelo que não poderíamos ter Presidentes
da República liberais, deputados liberais, governantes liberais ou magistrados
liberais, já para não falar de autarcas, militares, polícias, etc., etc., etc.
É fácil de perceber que tal cenário desencadearia uma reacção em cadeia que
provocaria uma progressão geométrica de socialismo com a qual nem Fidel Castro,
nas suas melhores noites, sonhou. Assim sendo, é do interesse, porventura
maquiavélico, dos liberais garantir presença em órgãos do Estado e em
organismos públicos, tentando equilibrar os pratos da balança e permitindo um
mínimo de pluralismo. E julgo ser também do interesse (desta vez não
maquiavélico) do resto do país que tal aconteça.
Sobre as razões práticas e comezinhas, que são,
eventualmente, as mais numerosas, podemos resumir que os liberais (e também os
socialistas, claro) vivem no mundo que existe e não no mundo que acham que
devia existir. É por essa razão que um bancário norte-americano apoiante de
Bernie Sanders trabalhará provavelmente em bancos privados, ainda que considere
que alguns deles deveriam ser públicos, e um operador de câmara venezuelano
apoiante de Juan Guaidó trabalhará provavelmente em canais de televisão
públicos, ainda que considere que alguns deles deveriam ser privados. Numa
situação ideal, pelo menos para mim, eu teria nascido numa família rica e
influente ou então num país com uma economia extraordinariamente dinâmica e
repleta de oportunidades, podendo dessa forma escolher, entre uma infinidade de
opções, o emprego dos meus sonhos, tendo sempre à mão de semear a possibilidade
de ir mudando de carreira ao sabor dos gostos ou caprichos, e também, caso me apetecesse,
a possibilidade de ficar no sofá o dia todo a ver filmes e séries. Mas como a
situação, para mim e para a maioria das pessoas, não foi a ideal, e como as
contas a pagar não ficaram à espera que ela se idealizasse, tive de optar, num
primeiro momento e num cardápio reduzido, pelo melhorzinho, trocando
posteriormente esse melhorzinho por outros melhorzinhos que
entretanto surgiram. No meu caso, esse processo incremental materializou-se em
três locais de trabalho do sector privado, seguidos pelo actual emprego
público. Pretender que, em situações deste tipo, o candidato tenha em atenção a
harmonia entre o carácter do possível empregador (público ou privado) e a
natureza das suas convicções ideológicas (socialista ou liberal), é bastante
irrealista, para não dizer totalmente utópico. Em casos extremos, um socialista
que tivesse tido o azar de nascer em Singapura ou um liberal que tivesse tido o
azar de nascer em Cuba, teria de se deixar morrer à fome por amor à coerência
intelectual.
Não é, aliás, líquido que exista uma
inconsistência, mesmo que teórica, entre acreditar na pertinência das ideias
liberais e “vencer como funcionário público”. Se há ponto em que os liberais
insistem, desde a publicação da Riqueza das Nações há mais de dois
séculos, é na importância do interesse próprio no processo de tomada de
decisões por parte dos indivíduos. A famosa história do talhante, do padeiro e
do fabricante de cerveja, que Adam Smith contou para ilustrar mais facilmente o
seu raciocínio, é precisamente sobre esse gatilho motivacional (a grande
novidade para a época é que o filósofo escocês, de forma contra-intuitiva,
considerava que essa atitude interesseira acabava por contribuir, mesmo que
involuntariamente, para a prosperidade da sociedade como um todo). Ora, se os
liberais portugueses afirmam, insistentemente, que os funcionários públicos têm
mais direitos, em média, do que os trabalhadores do privado, qual é a
incoerência em optarem por empregos no Estado? Antes parece, aliás, que esses
liberais que “vencem como funcionários públicos” já revelam uma dose anormal de
masoquismo quando alertam publicamente para o tratamento favorável de que são
alvo, ou quando, de uma forma aparentemente altruísta, votam em partidos (IL em
2019 ou PSD/CDS em 2015, por exemplo) que sabem ser menos “amigos” da função
pública do que os restantes.
Por último, e vou tentar não me alongar muito
pois já publiquei outros textos sobre o tema, as razões ideológicas. Tentando
reduzi-las a uma frase, podemos dizer que o liberalismo não quer acabar com o
Estado e considera-o insubstituível em certas áreas. Mesmo o mais extremado
liberal (e eu não sou um deles) reserva as funções de soberania para o Estado.
Estamos, nestes casos, a falar da Defesa, da Justiça, da Diplomacia ou da ordem
interna. Assim sendo, não é nada justo (nem revela qualquer coerência) que um
liberal não possa realizar, caso os tenha tido, os sonhos infantis de ser
agente secreto, juiz, fuzileiro ou polícia de trânsito. Aliás, se o menino
Vasco Pulido Valente tinha o sonho (não faço ideia!) de ser professor
universitário, e sabendo-se que a primeira universidade privada em Portugal só
surgiu em 1978, como o poderia cumprir sem ser no ensino público? Idealismos à
parte, um treinador de um clube de futebol até pode achar boa ideia que as
balizas sejam alargadas em prol dos golos e do espectáculo, mas será sensato
que não faça isso à baliza da sua equipa enquanto não existir uma regra que
obrigue as outras equipas a fazerem o mesmo.
Não quero, porém, fugir a uma comparação
difícil: o caso de Ricardo Robles, a estrela em ascensão do Bloco de Esquerda
que viu o seu trajecto bruscamente interrompido por uma decisão pessoal. Será
que Robles não se limitou a não aumentar a sua própria baliza antes da tal
regra geral e abstracta que defendia ser implementada para todos? Será que
fomos injustos na análise do seu caso, uma vez que não foi cometida qualquer
ilegalidade? Julgo que não, não creio que os casos sejam comparáveis. O grande
problema do bloquista, talvez mesmo o único, não foi ter tentado lucrar com um
negócio imobiliário ao mesmo tempo que lutava politicamente pela implementação
de legislação que dificultasse os negócios imobiliários; o erro fatal de
Ricardo Robles (e do BE, já agora) foi o de não ter resistido a apimentar a
legítima luta política que travava com ferozes ataques, de carácter moral,
contra aqueles que se dedicavam aos negócios imobiliários, aqueles a quem
chamava especuladores sem compaixão e que acusava de exercerem bullying
sobre moradores por mero desejo de lucro. Descobrir-se que um determinado
político liberal é funcionário público não me parece nada grave; agora, se esse
mesmo liberal tiver construído a sua carreira política em cima de diatribes
morais contra os funcionários públicos, o caso muda de figura.
Este é, assim, um bom ponto de reflexão para os
responsáveis da IL e também para os liberais dos outros partidos portugueses.
Trabalhem para que o Estado se retire progressivamente de algumas áreas,
permitindo assim uma diminuição da despesa pública, que facilitará por sua vez
a diminuição da carga fiscal sobre as pessoas e sobre as empresas, o que
originará um aumento do investimento privado, que levará certamente ao
crescimento da riqueza nacional, e, naturalmente, ao aumento da quantidade e
qualidade das oportunidades de emprego para todos (é por causa deste raciocínio
que, embora pareça existir algum masoquismo nos funcionários públicos que votam
em partidos amigos do liberalismo, isso não é necessariamente verdade; esses
funcionários públicos sabem – ou, pelo menos, desconfiam – que as ideias
liberais, podendo não ser tão vantajosas para a sua situação pessoal no
imediato, são positivas e proveitosas para a situação de todos no médio e no
longo prazo). Mas – e agora volto a dirigir-me aos responsáveis da IL e aos
políticos liberais dos outros partidos – trabalhem com elevação e travem esse
combate político sem recurso a moralismos de café. No dia em que, para
conseguirem defender a diminuição do peso do Estado, tiverem de recorrer ao
muito famoso “os funcionários públicos são todos uns malandros que passam o dia
sem fazer nada à custa dos nossos impostos”, o combate está perdido.
(para o António Araújo, que tenho a honra de
conhecer, com amizade)
Sérgio Barreto Costa
(publicado originalmente no Blasfémias, aqui,
republicado no Malomil com permissão do autor)
Só para lembrar que o próprio Adam Smith (o filósofo que pela primeira vez explicou a racionalidade do liberalismo) trabalhou alguns anos como Director da Alfandega de Edimburgo, e nunca se sentiu diminuído por isso.
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