Os tempos da pneumónica:
medo, morte, religião
[extracto do
livro Sons de Sinos. Estado e Igreja no advento
do salazarismo, 2009]
Os números dos surtos epidémicos de 1918-19 são impressionantes: enquanto no período 1910-15 a taxa de
mortalidade se situava em 20,3‰, em 1918 ascende a 42,1‰. A mais letal das
doenças foi a gripe pneumónica, a maior epidemia isolada na História da
Humanidade, que, transmitida por um vírus especialmente mortífero, o H1N1,
matou, segundo algumas estimativas, 21 milhões de pessoas,
havendo quem fale em números que vão dos 20 aos 50 milhões de vítimas,
muito mais do que a Grande Guerra (e,
de resto, do que qualquer outro conflito armado da História) ou
que o grande surto gripal de 1889-1891, que se estendeu por todo o globo, com
uma mortalidade muito elevada, que oscilou entre 40 e 70% da população.
Estima-se a ocorrência de 1 milhão de mortes na América Central e do Norte,
300.000 na América Latina, 2,2 milhões na Europa, 15,8 milhões na Ásia, 1
milhão na Oceânia e 1 milhão e 400 mil mortes em África. A
gripe de 1918-19 foi, tão-só, o maior desastre demográfico do século XX.
Em Portugal,
os seus efeitos, numa perspectiva diacrónica, podem ser avaliados através de um
dado assaz revelador: inverteu-se a tendência para um declínio crescente da
mortalidade que se verificava desde 1890 e, por volta de 1920, verificou-se
«uma recrudescência do número de óbitos, devidos à gripe pneumónica/espanhola
que se instalou e que afectou particularmente a mortalidade entre 1918 e 1919,
acompanhada sinergicamente de uma epidemia de varíola e de tifo exantemático». A
gripe de 1918 foi, escreve Fernando da Silva Correia, «a epidemia mais
mortífera da nossa história». As
suas consequências demográficas são assaz ilustrativas: a gripe pneumónica foi
o factor que produziu mais mortes em Portugal no século XX e foi responsável
por uma inversão relativa das taxas de mortalidade e natalidade, única no
período compreendido entre 1886 e 1993.
Comparando a
Guerra e a pandemia gripal, o Inspector de Higiene dos Hospitais Civis de
Lisboa diria que «foi esta última tão intensa, tão terrível e tão grandemente
perturbadora dos espíritos que conseguiu sobrepujar ao próprio conflito que
então ainda assolava o mundo». O
confronto bélico – e as deslocações de milhares de pessoas por ele provocados –
foi um dos grandes agentes de disseminação da doença; um exemplo expressivo:
quando a gripe começa a produzir efeitos, encontravam-se na Europa um milhão de
soldados americanos, dos quais um em cada quinze seria vitimado pela Spanish Lady (ainda que a Royal Academy of Medicine tenha sustentado,
na altura, a origem hispânica da doença, parece que essa ideia não tem qualquer
fundamento).
Para se perceber a dimensão global da doença –
um médico diria que ela «assolou com toda a ferocidade o universo inteiro» –
pode referir-se que dos 3.000 esquimós que viviam na costa do Labrador 2.000
morreriam da gripe. Nas reservas de índios dos Estados Unidos – um país onde
morreram cerca de 550.000 pessoas –, a
taxa de mortalidade atingiria 7,5%, taxa muito superior aos 2% da restante
população norte-americana. Em Inglaterra e no País de Gales fala-se em 200.000
mortes. Na África do Sul, a taxa de mortalidade por gripe entre os negros foi
quatro vezes superior à dos brancos. Nesse país, 20% da população de Kimberley
morreu. Um quarto da população da Samoa pereceu em virtude da gripe, tendo os
líderes políticos, enraivecidos contra a administração neozelandesa, chegado a
pedir formalmente ao rei Jorge V que a Samoa fosse anexada como colónia
britânica. Em vários pontos do
globo – Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia, Escandinávia – as minorias
étnicas apresentaram níveis de mortalidade significativamente mais elevados do
que os da generalidade da população. Na Noruega, os lapões, ao contrário de
outros grupos étnicos (os Kven, imigrantes de origem finlandesa), foram
literalmente dizimados pela gripe, atribuindo-se a causa deste fenómeno a uma
ausência congénita de defesas imunitárias por parte dos membros daquela
comunidade. Os australianos e
neozelandeses do ANZAC levaram a epidemia para as suas terras e só na
Austrália, nos antípodas do foco da doença, seriam feitas 12.000 vítimas. Em
Espanha, calcula-se que morreram 250.000 pessoas no espaço de um ano. Em
Barcelona, a gripe vitimava 1.200 pessoas diariamente. No Brasil, 528.295
habitantes de São Paulo seriam contaminados e 5.000 acabariam por morrer; no
Rio de Janeiro, só num dia – 22 de Outubro de 1918 – faleceriam 930 pessoas
vitimadas pela gripe, calculando-se que o índice global de mortalidade cresceu
na então capital federal quase 2.000%. A
Índia seria o país mais afectado, com 6 milhões de mortos, havendo mesmo quem
fale em 12,5 milhões de vítimas e
até em 20 milhões, o que equivaleria a uma taxa de 160‰. Entre os países mais
castigados, além da Índia, destacam-se Madagáscar, África do Sul, Nova Zelândia,
Guatemala e México, com taxas de mortalidade que oscilam entre 22 a 35‰. A
China, curiosamente, que alguns dizem ter sido a fonte da pandemia, registou
uma baixa taxa de mortalidade (1%), consideravelmente inferior à de países como
o Japão ou a Indonésia.
Há quem diga
que esta epidemia «de proporções bíblicas» terá custado a vida entre 20 a 40
milhões de seres humanos, segundo as estimativas mais conservadoras, chegando
alguns a situar o número de mortos em 100 milhões. A
sua contagiosidade era impressionante, como o demonstram as estatísticas: 90%
do pessoal do 168º Regimento de Infantaria e dos marinheiros que se encontravam
na base norte-americana de Dunquerque estava infectado, em maior ou menor grau,
pela pneumónica. Outros dados são igualmente
impressionantes: a 11 de Setembro de 1918, as autoridades sanitárias de
Washington confidenciavam à imprensa o receio de estar iminente um novo surto
de gripe; no dia seguinte, 96.000 homens, nos Estados Unidos, alistavam-se; no
dia 20 do mesmo mês, estavam declarados 9.313 casos de gripe entre as tropas;
no dia 23 – em apenas três dias, note-se – tal número tinha subido para mais de
20.000 casos; a 28 de Setembro, eram já 31.000 os infectados.
Nos Estados
Unidos, por falta de pessoal, as lojas e os teatros iam fechando a um ritmo
impressionante, à medida que a doença infectava cerca de 25% da população.
Certos pormenores são reveladores do impacto que a gripe espanhola teve nos
espíritos desse tempo: num jogo de beisebol
realizado em Nova Iorque, todos os espectadores, bem como os próprios
jogadores, usavam máscaras de gaze para evitarem o contágio; em Tucson, no
Arizona, foi aprovado um regulamento que impunha a todos os cidadãos o uso de
uma máscara que cobrisse a boca e o nariz; o embarque de um contingente de
140.000 soldados com destino à Europa foi cancelado após se ter verificado o
elevado número de homens afectados pela doença; Filadélfia foi especialmente
castigada pela epidemia – em parte devido à incúria das autoridades, no espaço
de um mês cerca de 11.000 habitantes daquela cidade tinham perecido; o
serviço que preparava os cadáveres para serem enterrados pura e simplesmente
entrou em colapso. A
companhia telefónica de Filadélfia esteve prestes a encerrar por falta de
empregados. Os patrões tiveram, por isso, de ser mais tolerantes: no Rio de
Janeiro, os bancos fechavam os olhos ao consumo de cachaça durante as horas de
serviço por parte dos raros funcionários que se mantinham no activo – o que,
apesar disso, não evitou que muitas agências bancárias brasileiras e
neozelandesas acabassem por fechar as portas, à semelhança do que sucedeu com
instituições oficiais como o Parlamento da Nova Zelândia, onde trinta e quatro
deputados tinham adoecido.
A par das
mortes, os efeitos económicos foram devastadores: as minas de cobre do Perú
tiveram de encerrar, o mesmo sucedendo, no Congo Belga, às da Union Minière, onde foram mortalmente
infectados cerca de 500.000 mineiros negros; em muitos lugares, como na
Austrália, existiram fenómenos contraditórios – algumas empresas fechavam por
falta de pessoal, enquanto muitos ficavam no desemprego porque o trabalho que
faziam deixou de ser útil em tempo de crise (em Inglaterra chegou a pensar-se,
por exemplo, que os actores e funcionários dos teatros passassem a prestar
serviços de apoio médico). Deixaram de circular comboios de Berlim para a
Suécia e de Espanha para Portugal, mas a gripe já tinha feito o seu curso
através das linhas de caminho-de-ferro. O
ramo dos seguros, como é natural, foi dos mais afectados: empresas seguradoras
da Suíça e da Alemanha pura e simplesmente cessaram pagamentos; em apenas três
semanas, a Prudential Insurance Company,
de Newark, teve de pagar a astronómica quantia de um milhão de dólares. O
Presidente da Associação de Actuários dos Estados Unidos calculou que, apenas
nesse país, as mortes iriam corresponder a uma perda económica da ordem dos dez
milhões de anos. Numa escala certamente
mais reduzida, mas não menos dramática, à Câmara dos Deputados de Portugal
seria enviada uma representação da comissão administrativa de Sesimbra
alertando para a gravíssima situação financeira aí vivida, à qual não eram
alheias as «despesas extraordinárias causadas pelas terríveis epidemias que têm
grassado neste concelho (gripe pneumónica, varíola e tifo exantemático)».
O uso de
máscaras correu mundo: desde os polícias de Washington aos vendedores de
jornais de Manitoba, passando pelos caixas dos bancos australianos, muitos
foram obrigados a tapar o rosto. Ao chegarem a uma estação de caminho-de-ferro
na Geórgia, nos Estados Unidos, 1.500 recrutas negros entraram em pânico,
julgando que iam ser linchados: viram, afinal, que os que os recebiam na
plataforma, com máscaras brancas, não eram membros do temível Ku Klux Klan, mas
militares, médicos e seus assistentes. A
máscara era um sinal estigmatizante, como o era o facto de estar próximo dos
doentes ou dos focos da epidemia. Verificaram-se casos de enfermeiras a quem
foi recusada a entrada em estações de correios ou de soldados uniformizados
expulsos de lugares públicos. Noutros casos, colocavam-se à janela das casas
uma bandeira vermelha ou amarela, assinalando que aí residia uma pessoa
infectada; nesses casos, os comerciantes limitavam-se a deixar as provisões na
rua, não se atrevendo a entrar nas habitações assoladas pela pandemia. Outros
colocavam cartazes às janelas, com os expressivos dizeres «S.O.S.» ou «Comida»,
enquanto no Paraguai os pedidos de socorro eram assinalados com uma bandeira
branca. Em Itália, Mussolini proibiu pura e simplesmente que as pessoas se
cumprimentassem com apertos de mão, sob pena de lhes ser aplicada uma pena de
prisão – mas tal medida jamais entrou em vigor na prática, sendo apenas
concretizada num outro ponto do planeta: a localidade de Prescott, no Arizona. Em
muitas cidades norte-americanas, incluindo Nova Iorque, as autoridades locais
emitiram regulamentos proibindo os cidadãos de tossir, espirrar ou cuspir, sob
a ameaça de pesadas multas ou mesmo de prisão.
Emergiram,
como sempre sucede, preconceitos racistas ou xenófobos. Na África do Sul,
muitos hospitais recusaram-se a admitir doentes de raça negra, do mesmo passo
que em Varsóvia as medidas sanitárias foram aplicadas com especial rigor no
ghetto judeu, com o argumento, publicamente afirmado pelas autoridades, de que
essa comunidade era «particularmente avessa à ordem e à limpeza». No Canadá,
certos jornais noticiaram que a doença não era perigosa, excepto para os que
tinham origem asiática; ainda marcados pela memória da guerra dos Boers, muitos afrikaans recusaram-se a ser internados em hospitais militares,
acabando por morrer sós em suas casas. Nos
Estados Unidos, eclodiram fortes tensões raciais entre brancos e negros,
sobretudo na região de St. Louis. Até
a tolerante Holanda encerrou as suas fronteiras aos refugiados. Para mais, os
imigrantes não conheciam, em muitos casos, a língua do país de acolhimento, os
princípios e métodos de actuação da medicina ocidental e, acima de tudo,
desconfiavam das autoridades médicas e militares integradas por indivíduos de
outras raças e convicções religiosas. Um
episódio é bastante esclarecedor: em Nova Iorque, 25 marinheiros chineses,
infectados pela doença, foram trazidos do navio que os transportava para o
hospital; aqui chegados, viram-se no meio de dezenas de pessoas vestidas de
branco, certamente atarefadas e que, para mais, não falavam a sua língua; com
medo de ser contagiado, o intérprete fugiu; os chineses recusaram-se até a
tirar as roupas, com medo que lhe as roubassem, e não quiseram a comida que
lhes deram, com receio que estivesse envenenada; dos 25 internados, 17
acabariam por morrer.
Os
profissionais de saúde revelaram, de um modo geral, um espírito de abnegação
extraordinário. Muitos trabalhavam dias e noites a fio, ininterruptamente. É
sintomático que, em Espanha, o Colégio de Médicos de Madrid tenha reclamado do
Governo a atribuição de pensões às famílias dos clínicos mortos no combate à
epidemia. Nas páginas do Portugal Médico, eram publicadas listas
dos médicos que faleciam contagiados pela gripe. Ao
fazer o balanço de 1918, o número de Dezembro do Portugal Médico salientava a dedicação da classe ao combate às
epidemias que haviam assolado o país, concluindo que «foi um ano, para quase
todos, de trabalho exaustivo». Um
médico que se voluntariou para trabalhar no concelho de Felgueiras recordou
mais tarde o «trabalho doido» que aí teve e que lhe «sugava o tempo e a
energia». Na Tasmânia, um médico,
infectado pela gripe, assinava na cama as certidões de óbito, já que não podia
deslocar-se à morgue para examinar os cadáveres. Em Paris, estimava-se que cada
médico, ao longo de uma jornada de trabalho, observava um paciente de três em
três minutos. Para fazer face à
escassez de pessoal médico, a Universidade de Coimbra antecipou em três semanas
o fim das aulas do último ano e mobilizou os quintanistas,
enquanto na Califórnia o State Board of
Medical Examiners num só dia considerou aptos para o exercício da medicina
noventa candidatos.
Entretanto, os
corpos iam-se acumulando, em cenários dantescos, ocupando hospitais inteiros,
dos corredores às capelas, passando pelos ginásios e pelas cantinas. Em
Filadélfia, depois de um dia em que morreram 528 pessoas, um reverendo católico
decidiu percorrer a cidade em busca de cadáveres abandonados: em resultado
desta busca, a morgue, que tinha capacidade para 36 corpos, foi ocupada com os
restos mortais de 200 pessoas – ao verem a pilha dos mortos, mesmo os mais
veteranos e experimentados funcionários da morgue se recusaram a trabalhar
naquelas condições. Provocando novas doenças, muitos cadáveres permaneciam por
sepultar vários dias (em Atenas, a média era de 5 dias) e, em certos lugares,
como sucedeu na Serra Leoa, os clérigos limitavam-se a oficiar os funerais dos
mortos da sua religião, deixando ao abandono os que professavam outra crença. Em
Rio Maior, Dídio Brazão observou uma singular mudança de hábitos: os funerais
eram tão frequentes que os homens deixaram de tirar o chapéu à sua passagem. Em
contraste, uma taberneira siciliana, sempre que via passar um funeral erguia o
seu copo e, bebendo-o, exclamava ruidosamente: «não me vão apanhar – eu bebo
vinho!».
Como à época eram frequentes as filas (para comprar leite ou vegetais com
senhas de racionamento), e como os cadáveres se acumulavam à espera de
sepultura, o jornal parisiense L’Oeuvre
ironizou, afirmando que «depois de termos tido de fazer fila para viver, agora
fazemos fila para ser enterrados».
Os efeitos
sobre o moral das populações foram, naturalmente, muito profundos: «a
superstição toma o lugar da decência, os serviços públicos colapsam, amigos e
até familiares afastam-se uns dos outros e as taxas de mortalidade não páram de
crescer em flecha» - escreveu o historiador Alfred Crosby
num estudo sobre os efeitos da Spanish
flu na América. A
gripe, escreve Crosby, foi «um dos mais engenhosos truques de Deus». Em
Belém, no Brasil, um marinheiro que rezava junto à imagem da Senhora da
Consolação jurava ter visto a estátua a derramar uma lágrima; o correspondente
do Chicago Daily News em Itália,
delirando na cama de um hospital militar, julgava que iria ser salvo por ter
contemplado há poucos dias um quadro renascentista em que a Virgem, aos pés do Cristo
na cruz, tinha as feições da sua mulher; até médicos se deixavam contagiar por
crenças estranhas – o clínico de serviço na embaixada britânica em Bangecoque,
ao ver as rosas do seu jardim a definhar, afirmou que «algo andava no ar» e que
isso iria fatalmente afectar não apenas as flores como os seres humanos; em
Montreal, no Canadá, o facto de os céus terem escurecido levou alguns a
espalhar a profecia de que uma grave pestilência se aproximava; uma enfermeira
na Nova Zelândia asseverava ter visto o sinal da Cruz no firmamento celeste; o
inédito aparecimento de corujas em Paranhos da Beira, em Portugal, fez crer às
populações que algo de mau estava para vir.
Pontualmente, emergia a convicção segundo a qual uma doença tão mortífera não
podia ter origem humana: quando o Jardim Zoológico de Regents Park, em Londres,
colocou os chimpanzés em celas de vidro para evitar que fossem contaminados
pelos visitantes, logo se levantaram vozes dizendo que tal medida era injusta,
pois tinham sido os macacos a transmitir a pneumónica aos homens. Em África, a
pneumónica fez renascer crenças e movimentos milenaristas.
Outros acreditavam em teorias conspirativas, como a que dizia que a doença era
uma arma secreta do Kaiser, espalhada
ao longo da costa por agentes secretos enviados por submarinos; esta tese
omitia, porém, o facto de a «arma secreta» dos exércitos germânicos ter, ao
cabo e ao resto, acabado por matar cerca de 225.000 alemães. A
associação entre os dois flagelos – a belicosidade germânica e a doença espanhola
– impregnou o imaginário colectivo: «Le boche est vaincu, oui. La grippe ne
l’est pas», ostentavam cartazes que os parisienses, com uma máscara a tapar o
rosto, transportavam pela capital francesa. E alguns periódicos ingleses, como
o London Times, insistiram na tese de
uma conspiração teutónica em redor da gripe.
A gripe, como
sempre sucede em epidemias deste genéro, não escolheu classes económicas nem
estratos sociais: ninguém estava a salvo do contágio ou, como assinalou William
Beveridge, «pessoas de todas as classes socioeconómicas, de reis a vagabundos,
sofreram na mesma medida». Na
verdade, várias personalidades eminentes foram infectadas: o Presidente Woodrow
Wilson, que quase morreria de gripe em Abril de 1919, e os primeiros-ministros
francês e inglês, Georges Clemenceau e David Lloyd George,
para não falar do general Louis Botha, o primeiro líder do governo da União da
África do Sul, o dramaturgo Edmond Rostand, o pretendente ao trono imperial
chinês Lu Kuang, o marajá de Jodphur, o célebre actor do cinema mudo Harold
Lockwood, o maratonista de natação americano Harry Elionsky, o príncipe Erik da
Suécia, o duque italiano Leopoldo Torlonia, o Secretário-Adjunto da Marinha
Franklin Delano Roosevelt, o Presidente do Brasil Wenceslau Brás, Walt Disney,
Mary Pickford, a rainha Alexandrina da Dinamarca, o sultão-califa Mohammed VI
da Tuqruia, o príncipe Yamagata do Japão, o marechal Joffre, o general John
Pershing...
Existe um
grande consenso sobre os efeitos da epidemia na mentalidade do tempo: certos
autores afirmam que a gripe causou uma «tremenda perturbação económica e
social»,
outros falam num cenário de «caos social» e
outros ainda, referindo-se especificamente à situação portuguesa, aludem a um
ambiente generalizado de pânico. A
circunstância de Portugal se encontrar em guerra agudizou a histeria colectiva:
«as notícias da epidemia, chegadas a França e África, deixaram aterradas as
tropas, ansiosas por saber das famílias». É
exemplar do estado de espírito que atravessava a época que, mesmo em trabalhos
académicos, os médicos de então dessem conta, em tom alarmista e
grandiloquente, da dimensão da catástrofe. Um trabalho apresentado à Faculdade
de Medicina do Porto, dizia, a propósito da gripe, que «foi tal a sua
ferocidade e extrema difusibilidade que não houve recanto algum do universo que
fosse poupado à sua invasão, que não sofresse seus estragos».
«Nunca, até esta data, pesou sobre a humanidade inteira tamanho flagelo! Jamais
epidemia alguma teve em tão elevado grau a voracidade do tempo e do espaço!» - clamava
uma dissertação de doutoramento apresentada na Faculdade de Medicina da
Universidade de Coimbra, acrescentando:
«Espalha-se o terror por toda a parte; o trabalho paralisa, reina o
desânimo e todos esperam que a vez lhe toque, julgando a cada momento sentir a
asa negra adejando em volta de si. As mortes sucedem-se e os sinos, como que
impotentes para anunciarem o número de
óbitos, calam-se, emudecem nos campanários, assistindo impassíveis ao desfilar
dos cortejos fúnebres que levam os mortos, aos grupos, à última morada,
dizendo-lhe entre lágrimas e soluços o derradeiro adeus!
Cessam os espectáculos, fecham-se as casas de ensino, proíbem-se as
reuniões, improvisam-se hospitais e enfermarias por toda a parte e a morte,
altiva, implacável, como fera indomável, esfaimada, à qual tivessem sido
abertas as portas da jaula, paira sobre a humanidade, cobrindo de luto os
homens e de cruzes a terra!
Tal é, a largos traços, o quadro que apresenta a sociedade esmagada por
tão humilhante castigo».
Noutro
trabalho académico, assinalava-se que «o espírito do povo foi, como nas velhas
epidemias de peste ou de varíola, assaltado de terror, os doentes chegaram a
ser abandonados, estabelecimentos comerciais houve que fecharam por falta de
empregados, as repartições públicas viram muito reduzido o número dos seus
funcionários e as autoridades sanitárias eram censuradas por não poderem,
infelizmente, opor um dique às avassaladoras ondas desta gripe epidémica,
altissimamente mortífera».
Apesar de ter
tido antecedentes nunca apagados no século XIX, a gripe, cuja origem é situada
por alguns no Arkansas, nos Estados Unidos da América,
contrariando a tese que a radicava na China e no Sudeste Asiático,
teve grandes ligações com a Guerra.
Trata-se, aliás, de uma realidade há muito conhecida, bastando relembrar o que
a respeito da guerra do Peloponeso escreveu Tucídides. Os defensores da «tese
americana» sustentam que os primeiros registos ocorrem logo em Março de 1918
num contigente militar estacionado em Fouston, no Arcansas; aliás, também em
Coimbra foi entre os soldados que se detectarem os primeiros sinais da
pneumónica. Em contrapartida, os
partidários da «tese chinesa» lembram que entre Março e Abril de 1918 cerca de
18.000 coolies chineses vieram para a
Europa, destacados da China e da Indochina, com vista a apoiar na rectaguarda o
Exército francês. Na Europa, o ponto de
partida da epidemia terá sido Brest ou
Bordéus (ainda que alguns falassem em São Petersburgo),
sendo evidente a sua ligação às movimentações de tropas que então se
verificavam. Assim, por exemplo, o Alto Comando Alemão tinha chegado a ponderar
o adiamento da grande ofensiva de Julho de 1918 por causa da doença. O próprio
general Ludendorff reconheceria, anos mais tarde, que a gripe condicionou o
movimento das suas tropas. Os
alemães chamavam mesmo à doença a «gripe da Flandres»,
enquanto a imprensa norte-americana aludia a uma «maldição alemã». Em
contrapartida, durante o ataque germânico na região de Soissons e Reims, o
exército francês teve que evacuar, entre os feridos de guerra, cerca de 2.000
doentes de gripe por dia. Por
seu turno, o avanço aliado em Meuse-Argonne foi feito com numerosas divisões
integradas por milhares de soldados infectados pela doença. No sector
americano, eram quase tantos os feridos em combate (93.160) como os militares
doentes (68.760) e, no campo francês, 46%
dos evacuados no Outono de 1918 foram-no por estarem doentes de gripe. No
lado alemão, 189.000 casos de gripe. Ao que parece, a gripe chegaria ao norte
da Rússia, em Junho de 1918, emergindo sobretudo na zona de Murmansk, levada
por tropas britânicas.
Populares heróis de guerra, como o capitão Quigley, aviador canadiano que
abateu trinta e quatro aviões alemães, ou Leefe Robinson, outro aviador heróico
liberto do cativeiro pelos alemães, seriam vítimas da doença, o mesmo sucedendo
a nomes cimeiros da cultura como o poeta Guillaume Appollinaire ou o pintor
expressionista Egon Schiele. Devido a um cancelamento do envio de tropas
decorrente da pandemia, o escritor F. Scott Fitzgerald veria frustrado o desejo
de entrar em combate e narrar a sua experiência de guerra. Dos
300.000 prisioneiros de guerra austríacos internados em campos italianos, 30.000
morreriam de gripe ainda durante o cativeiro – entre os presos encontrava-se
Ludwig Wittgenstein, que escaparia à pneumónica. Na Suécia, a ameaça de uma
greve geral de inspiração socialista, sob o pretexto de que a guerra era a
fonte da epidemia, levou o governo a cancelar todas as manobras militares.
O médico
Adérito Madeira escreveria lapidarmente que o tifo era um «companheiro
inseparável da guerra»,
sustentando essa afirmação com os antecedentes verificados nas tropas
napoleónicas – onde se notaram sinais da doença desde a Rússia a Portugal –
nas guerras francesas da Revolução e do Império, na campanha da Crimeia, nas
lutas entre liberais e miguelistas. Quanto à gripe, Ricardo Jorge observava que
ela era «com a presente fúria contagiante (...) uma das piores pragas que pode
cair sobre os exércitos beligerantes». A
proximidade entre a Grande Guerra e a pneumónica é bem ilustrada por um pequeno
episódio sucedido em Toronto: no dia da festa organizada pela cidade para
celebrar a vitória dos Aliados, o cortejo teve de parar por instantes para
deixar passar os funerais de duas vítimas da pneumónica.
Aliás, na altura chegou a aventar-se a hipótese de a gripe ser causada pelos
gases tóxicos que durante a guerra foram lançados na atmosfera, enquanto outros
diziam que os alemães estavam a usar a aspirina Bayer para promover o contágio. A
pandemia prolongou-se até ao final do conflito bélico, sendo curioso observar
que as próprias delegações à Conferência de Paz de Versalhes foram contagiadas
pela gripe, incluindo o Presidente Wilson. Em
Espanha, a gripe afectaria o próprio rei e o chefe do Governo, bem como os
ministros da Instrução e da Marinha.
Quanto ao tifo, além de ter afectado entre 20
a 30 milhões de pessoas (5 milhões, segundo as estimativas oficiais),
disseminou-se, não por acaso, nos campos de concentração da Alemanha e da União
Soviética, só sendo debelado quando as tropas americanas trouxeram o DDT em
1943, travando caminho a uma epidemia que começava a grassar na bacia
mediterrânica. Pelo menos quanto à
gripe, há quem afirme que não pode, contudo, estabelecer-se uma relação directa entre ela e a guerra,
porquanto a doença afectou com igual intensidade as debilitadas França e
Alemanha e as prósperas e neutrais Suíça ou Suécia.
Copenhaga e Estocolmo, cidades alheias ao conflito, foram tão flageladas como
Paris ou Berlim. Não houve também, ao
contrário do que se supõe frequentemente, qualquer relação entre o clima e o
surto gripal, já que este afectou regiões do globo muito diversas, tudo indiciando
que a elevada mortalidade registada se deveu à própria natureza do vírus e à
sua acção directa – através da pneumonia gripal primária – ou indirecta, ao
abrir caminho à invasão bacteriana.
Em Portugal, a
epidemia da gripe desceu do Porto ao Algarve e espalhou-se por todo o País
(ainda que com menor intensidade nos Açores e na Madeira), disseminando-se com
grande virulência e rapidez nas cidades de Lisboa e do Porto e vitimando
sobretudo jovens adultos. Como se escrevia numa dissertação académica
apresentada na Faculdade de Medicina do Porto, a gripe escolhera «a sua presa
entre os indivíduos novos e robustos», um
padrão de vitimização ocorrido em quase todo o mundo e
que até hoje permanece inexplicado, ainda que se avance a hipótese de ter sido
o excesso de resposta imunitária dos jovens que, paradoxalmente, acabou por
lhes ser mais fatal;
outros referem que a circunstância de o género masculino estar mais exposto ao
contágio – ou seja, o facto de uma parcela significativa de mulheres permanecerem
nos lares, aliado a uma imagem de virilidade que compelia os homens, até por
necessidade de sustento económico das famílias, a não deixarem de ir trabalhar
por causa de uma vulgar gripe – contribuiu de forma decisiva para um padrão de
vitimização que incidiu de forma predominante nos indivíduos entre os 20 e os
40 anos.
A gripe
portuguesa dizimou seguramente mais de 50.000 pessoas,
havendo quem avance números superiores: 60.474 mortos. E
este número tem de ser complementado com outros, ainda mais terríveis: em 1918,
o obituário por gripe subiu de uma média anual de 800 mortes para 55.780 e o
obituário geral de 125.00 para 248.978 óbitos; o aumento do falecimento por
gripe pneumónica (para 55.780) não explica, por si só, o crescimento
vertiginoso de 123.000 mortos – este deve-se ao facto de a pandemia gripal se
ter feito acompanhar de outras doenças infecciosas, como o tifo exantemático, a
varíola, a encefalite epidémica, bronquites, pneumonias lombares. A
evolução da taxa de mortalidade é, de resto, muito mais grave em Portugal do
que noutros países: entre nós, no quinquénio de 1916-20, atinge-se um valor
inaudito de 42,5, muito superior aos de Itália (35,0) ou de Espanha (33,2);
comparativamente com esses países, bem como com França, Inglaterra, Bélgica,
Alemanha, Suíça e Estados Unidos, Portugal é aquele que regista entre 1916-20 a
subida mais acentuada da mortalidade. A
mortalidade geral entre nós duplicou, passando de 22 por mil em 1917 para 42
por mil em 1918. Depois de 1918, a taxa de mortalidade geral só em 1921 atinge
as cifras anteriores à epidemia. Por
sua vez, a taxa de mortalidade por gripe subiu de 18 para 962 por cem mil de
1917 a 1918, isto é, cerca de 53 vezes mais. Em
1918, o crescimento fisiológico (isto é, o excesso dos nascimentos sobre os
óbitos) registou, aliás, um valor negativo de 71.819, contra valores positivos
dos anos anteriores: 73.547 (1915), 63.801 (1916) e 55.794 (1917). As
estatísticas oficiais apuraram no ano de 1918 55.780 óbitos com a rubrica de
gripe e, em 1919, 3.097. A dimensão da epidemia torna-se mais clara se se tiver
em conta que, nos oito anos precedentes e subsequentes ao seu aparecimento e
extinção, a média anual de óbitos por gripe se situava em 1.528. A
par disso, houve um crescimento significativo – a que a pneumónica não foi
alheia – de mortes por pneumonia, por outras pneumopatias e por bronquites.
Reunindo as estatísticas relativas a essas doenças com uma ponderação moderada
dos números relativos às mortes por causa desconhecida, Silva Correia, chega à
conclusão de que, directa ou indirectamente, a gripe esteve na origem da «cifra
formidável» de 102.750 óbitos.
Num cômputo global das mortes provocadas pela gripe de 1918, Silva Correia
conclui que esta superou em muito os valores atingidos na «peste grande» de
1569, responsável por cerca de 60.000 falecimentos, «mostrando que a
mortalidade pela epidemia de 1918-19 foi quase dupla da maior que registava a
história epidemiológica portuguesa».
Curiosamente, estar em combate nas trincheiras da Grande Guerra era uma
actividade menos perigosa do que viver em Portugal: os soldados do C.E.P. pouco
sofreram com a epidemia gripal, registando-se apenas 37 óbitos.
Ocorreu ainda
uma epidemia de varíola, responsável por 4.338 mortes em 1918 e 8.864 em 1919,
e uma outra de tifo exantemático, que eclodiu em Espinho nos finais de 1917 e
se espalhou às «ilhas» do Porto e depois a todo o Norte, chegando a matar 543
pessoas numa só semana. Diz-se que causou 1.725 mortes em 1917-18.
Tendo o piolho como principal agente transmissor – como, de resto, logo se
notou na altura –,
o tifo exantemático propagou-se rapidamente devido às precárias condições
socioeconómicas da população do Porto, mas Ricardo Jorge não hesita em atribuir
responsabilidades ao conflito armado internacional, qualificando o tifo como
uma «epidemia civil de guerra». No
mesmo sentido, Thiago d’Almeida, da Universidade do Porto, observava que o tifo
exantemático era «um dos mais terríveis flagelos das guerras. É a doença da
fome, da miséria, da imundície, da aglomeração, e as guerras originam tão
óptimas condições de aparecimento e propagação desta e outras epidemias».
Também da gripe pneumónica se disse que poderia haver alguma responsabilidade
da guerra na sua eclosão: nunca como até aí o Homem inventara e lançara na
atmosfera tantos produtos químicos e biológicos, jamais tantos explosivos foram
deflagrados ao mesmo tempo, em ocasião alguma se verificou tamanha movimentação
e aglomeração de homens, muitos dos quais cansados, doentes e mal alimentados,
nunca se amontoaram a céu aberto tantos corpos de indivíduos mortos ou feridos.
Ainda assim,
não deve esquecer-se que, a par da crise socioeconómica, os hábitos de higiene
das populações devem certamente ter contribuído para uma mais rápida difusão da
doença. Não por acaso, em 1920
uma epidemia de peste assolou o bairro popular de Alfama, infectando 112
pessoas. Deve igualmente recordar-se, a esse respeito, que num estudo levado a
cabo na aldeia de Valas, em Trás-os-Montes, se observou que até recentemente se
acreditava que tomar banho ou lavar-se com frequência estragava a pele,
enfraquecia e relaxava as pessoas. As mães aconselhavam as filhas a não lavarem
os pés nem a cabeça durante a menstruação ou no pós-parto porque «podia subir a
menstruação ou o parto à cabeça e morrerem, ficarem paralisadas ou malucas».
Julgava-se que, entre muitas outras doenças, o contacto com a água era causa de
pneumonia. Uma aldeã confidenciou
que as pessoas raramente lavavam a cabeça, pelo que «criavam muitas lêndeas e o
cabelo até parecia rijado com aquelas lêndeas todas. Untava-se o cabelo com
azeite, para que caíssem as lêndeas, e as pessoas catavam-se umas às outras».
Havia a crença segundo a qual comer castanhas cruas fazia criar mais piolhos.
Por ocasião da epidemia de tifo exantemático do princípio do século XX, um
médico que analisou a situação de perto na região de Braga, assinalou
precisamente que a falta de higiene foi um elemento decisivo na propagação da
doença: «no concelho de Braga é provável que ele [tifo exantemático] se tenha
tornado agora endémico, devido ao facto de terem sido sonegados inúmeros casos
durante a última epidemia, à pobreza extrema que existe nos bairros mais
populosos da cidade e freguesias limítrofes, acrescida da falta de higiene que
se nota duma maneira geral em todo o minhoto». No
Porto, o tifo progredira, nas palavras de Ricardo Jorge, «açoitando como é sua
predilecção as classes ínfimas, mal alojadas, mal tratadas e mal mantidas». Os
médicos envidaram esforços para impedir que o tifo, declarado no Porto, subisse
a Braga: o delegado de saúde estabeleceu um serviço de inspecção na estação do
caminho-de-ferro de Braga, foram mandados regressar ao Porto mendigos que de lá
tinham vindo a pé e que se tornaram suspeitos, os doentes foram isolados no
edíficio do extinto Colégio do Espírito Santo, transformado em hospital.
Contudo, uma aparente regressão da epidemia fez abrandar as medidas
profiláticas, tendo-se deixado de proceder aos despiolhamentos sistemáticos –
num total de 27.000 despiolhamentos, realizados nas feiras, às portas das
igrejas e dos quartéis, etc. – ou às desinfestações familiares. Em resultado
disso, o tifo reapareceu em força, bastando dizer que apenas na segunda
quinzena de Março de 1919, o número de infectados cresceu de 120 para 390,
segundo informa o médico João Leitão.
Mas mesmo os que cuidavam da sua higiene não estavam imunes ao contágio, como
sucedeu a um estudante do ensino superior que, na narrativa daquele médico,
«estando em Braga por ocasião da epidemia de tifo exantemático de 1919, tinha o
máximo cuidado em assuntos de higiene; contudo no dia... de abril foi a um
lupanar onde teve relações sexuais com uma mulher suspeita. Chegado que foi a
sua casa, tratou de examinar a roupa e o corpo, pois tinha sentido uma picada.
No corpo nada de anormal foi encontrado, porém nas ceroulas foram-lhe
encontrados dois piolhos, um dos quais na parte interna do tecido, e ao qual
ele atribui a picada. Ficou impressionadíssimo e desinfectou-se com sublimado.
Decorre o tempo até que, passados três dias, a mulher com quem ele tinha tido
relações fica doente e dá entrada no hospital com o tifo exantemático. O
referido estudante, assustadíssimo, corre a um médico para saber o que há-de
fazer para se livrar do tifo, respondendo-lhe este ser impossível fazer
qualquer coisa em vista de serem já passados três dias».
Não se pense, porém, que esta realidade era um exclusivo das zonas rurais; não
por acaso, a partir do início do século há uma preocupação renovada pelas
deploráveis condições de higiene da população lisboeta, sobretudo dos pobres e
dos indigentes.
Tal preocupação veio, porém, a revelar-se insuficiente para fazer face ao
avanço das epidemias que fustigavam o mundo.
Além das
deficientes condições de higiene, há que contar ainda com a precariedade da resposta médica. As reformas
sanitárias que vinham sendo empreendidas desde 1901 mostraram-se ineficazes na
melhoria da saúde da população, que continuou a ser vitimada em especial por
doenças infecciosas. O
médico Acácio da Silva Ribeiro disse, a propósito da gripe, não haver
«obstáculo possível ao seu enorme poder de expansão».
Para mais, a gripe tinha uma singular capacidade de dissimulação: de início,
surgia «por formas a tal ponto benignas que ninguém as levava a sério».
Não por acaso, quando apareceu em Salvador da Baía, no Brasil, os jornais
apelidaram-na de «a epidemia desconhecida». Um
articulista do Diário da Bahia
interrogava-se mesmo: «Será gripe? Influenza espanhola? Ou simples andaço sem
graves consequências?».
Nas páginas do Portugal Médico,
escrevia-se, em tom animador, no mês de Julho de 1918: «foi relativamente de
curta duração a onda gripal que invadiu o país»;
optimista, Ricardo Jorge dizia: «a vaga epidémica que nos princípios de Junho
rolou de Espanha há que reconhecer que nos tratou com acentuada benignidade».
Mas, pouco
depois, tudo mudaria. A gripe, subitamente, «deixou cair a máscara e mostrou o
seu verdadeiro rosto de caveira», como escreve John Barry. Em
Setembro, já o Portugal Médico noticiava
«não nos abandonou a epidemia gripal». A
14 desse mês, a Direcção-Geral de Saúde enviava aos jornais uma nota oficiosa
sombria, que começava assim: «a influenza continua a sua invasão, assumindo,
com insistência, o carácter pneumónico». E, em Outubro, o Portugal Médico afirmava: «como era de prever, a gripe alastrou por
todo o país, não havendo um canto indene, desde o alto Minho ao Algarve».
Numa das mais completas descrições do ambiente gerado pela eclosão da
pneumónica em todo o mundo, Richard Collier capta de uma maneira assaz
expressiva o sentimento colectivo de perplexidade que, naqueles dias
tumultuosos, a gripe suscitou: «mesmo numa época em que o horror estava na
ordem do dia, muitos experimentaram uma súbita sensação de temor; algo estava
errado – mas ninguém sabia dizer o que era ao certo».
Quando surgiu, de Espanha foram enviadas duas mensagens para a Agência Reuters,
em Londres, do seguinte teor: «Uma estranha forma de doença de natureza
epidémica apareceu em Madrid», seguida de «A epidemia tem um carácter suave,
não tendo sido registadas quaisquer mortes». Se a doença conseguia esconder a
natureza, depressa se desvendavam os sinais da sua malignidade – e da
extraordinária rapidez do modo como se difundia. Não muito depois, em Maio, na
Grande Esquadra do rei Jorge V eram reportados 10.313 casos de gripe, não
podendo aquela fazer-se ao mar, ao mesmo tempo que o próprio monarca
apresentava sintomas da doença.
Enquanto a
doença avançava a uma velocidade vertiginosa, beneficiando da facilidade de
transporte aberta pelas linhas ferroviárias, os
clínicos dividiam-se quanto ao seu diagnóstico, a ponto de já se ter dito que
«existiram quase tantas teorias quantos médicos».
Estes, na verdade, só souberam lidar com a doença depois dela ter desaparecido,
deixando atrás de si um rasto de morte e devastação. A
princípio julgou-se que tudo não passava de uns casos isolados de «peste
pneumónica»; depois, atribuiu-se à cólera as mortes em crescendo; outros
afirmaram que se trataria de dengue, como sucedeu com os professores Virgílio
Machado e Carlos Tavares, tendo este, numa comunicação à Sociedade de Ciências
Médicas, chegado a sugerir que a gripe deveria desaparecer dos livros de
Patologia. Pires de Lima, da
Faculdade de Medicina do Porto, sustentava que a causa das mortes era a febre
papatacis, também conhecida por febre da Bósnia, febre estival ou febre dos
três dias; tendo defendido com vigor esta tese, em artigos sucessivos que
publicou na altura, Pires de Lima acabou por ser ele próprio infectado pelo
vírus da gripe. Por sua vez, Carlos Ramalhão, numa comunicação feita à
Associação Médica Lusitana, avançou o diagnóstico de febre papatacis, o que
logo foi contestado por Geraldino de Brito nas páginas da revista Medicina Contemporânea. Na mesma
revista, o médico Nicolau Bettencourt reconhecia as dificuldades que
enfrentava: «em relação ao tratamento também não tenho colhido impressões
pessoais que valham. No meio hospitalar e numa emergência destas, talvez seja
mais difícil (...) apurar dados interessantes». Os
médicos, claramente, não se entendiam quanto ao diagnóstico de uma doença que
alastrava de forma imparável. A indefinição era, de resto, assumida pelos
próprios, que por esse tempo escreviam que as «discussões sobre diagnóstico
aparecem sempre nas grandes epidemias».
Outros citavam, não sem alguma ironia, a frase de um professor alemão segundo a
qual «gripe é o diagnóstico que o médico faz quando não sabe o que o doente
tem».
A confusão
instalada na comunidade médica não foi um exclusivo português. Em muitos pontos
do globo, clínicos de renome afirmavam que a doença tinha uma única e singela
causa: a malnutrição dos infectados. Em
breve, a propagação da epidemia infirmaria essa tese. Em Agosto de 1918, uma
segunda e mais violenta vaga gripal eclode em simultâneo em três das principais
zonas portuárias do planeta: Freetown, Brest e Boston. Ao
perceber-se que existia algo diverso em relação à gripe primaveril, os médicos
começaram a explorar hipóteses: disse-se que os infectados tinham estado
expostos a gás de cloro, suspeitou-se de cólera asiática entre os que se
queixavam de uma «dor ardente acima do diafragma», observou-se que as fortes
dores de cabeça dos pacientes poderiam indiciar febre tifóide, notou-se que
muitos pacientes apresentavam sintomas de uma estranha conjuntivite aguda,
pensou-se que se tratava de uma intoxicação de origem alimentar,
entre muitas outras explicações desencontradas, imaginosas, mas pouco eficazes.
Estudos recentes sustentam que, paradoxalmente, foi a violência da resposta do
sistema imunitário, combinada com a violência da infecção, que tornou a gripe
mais virulenta e letal.
Quanto ao tratamento, exaltavam-se as virtudes do ar puro, injectavam-se os doentes
com cafeína e adrenalina, enquanto outros aconselhavam a aspirina... Os médicos
britânicos prescreviam álcool, ópio, quinino, aspirina, cânfora, eucalipto,
côco, àgua salgada, tabaco, sabonete.
Mas talvez a opinião mais certeira haja sido a de um reputado médico inglês,
Sir Arthur Newsholme: não havia nada a fazer e, como tal, ele nada fez aos seus
pacientes. Não admira que, em
Outubro de 1918, um editorial do The New
York Times dissesse: «Science has failed to guard us». O
melhor remédio, na verdade, talvez fosse o preconizado pelas enfermeiras
norte-americanas: comida quente, lençóis quentes, ar puro e muito «TLC» (tender loving care).
Não obstante, ocorriam episódios que impressionavam os profissionais de saúde,
como o de um jovem médico do Rio de Janeiro a quem um trauseunte, logo após
pedir uma informação sobre o destino de um autocarro, cairia no chão, fulminado
pela gripe. Um caso particularmente
grave foi o das mulheres grávidas: com a interrupção do ciclo menstrual, não
podiam ter esperança numa hemorragia que libertasse as toxinas do seu corpo.
Sucederam-se os abortos espontâneos e os partos prematuros, com taxas de
mortalidade que, segundo um obstreta de Nova Iorque, chegaram a atingir a
devastadora cifra de 70%. Do mesmo passo, muitos ficavam órfãos de pai e mãe:
cerca de 2.000 crianças na Cidade do Cabo perderam os pais, por exemplo,
enquanto os jornais de Estocolmo publicavam anúncios solicitando que algumas
famílias tomassem a seu cargo os cerca de 500 menores que nessa cidade ficaram sós.
Ainda que
tenham permanecido as divergências sobre o seu agente causador - havendo, de resto, igualmente
dúvidas no diagnóstico e,
bem assim, quanto ao exacto papel dos piolhos na transmissão do tifo que
grassou na época -, a
conclusão de que se estava em presença de uma epidemia de gripe acabou por se
impor, sobretudo quando, ao mesmo tempo que a Junta Provincial de Madrid declarava
que a enfermidade reinante era de natureza gripal, Ricardo Jorge fez uma
comunicação no mesmo sentido ao Conselho Superior de Higiene. Simplesmente, o
diagnóstico da doença era apenas um primeiro passo. Faltava a terapêutica. E,
quanto esta, a ciência médica não escondia a sua incapacidade de resposta, a
ponto de Ricardo Jorge haver dito peremptoriamente, numa sessão da Sociedade de
Ciências Médicas, «nós não sabemos nada da terapêutica da gripe. O tratamento
que se fez é inventado pelo clínico que a isso se vê obrigado». Um outro médico
dizia, entristecido, que «o tratamento da gripe – havemos de concordar – não
faz parte dos que enchem de prestígio a medicina».
Uma opinião partilhada por colegas como Amândio de Campos ou,
numa prosa incisiva, Acácio da Silva Ribeiro:
«Não há, certamente, em todos os livros de Patologia, doença alguma que,
de longe sequer, possa comparar-se com a gripe de 1918, no tocante a
diversidade de formas, variedade de sintomas e multiplicidade de complicações.
Sendo assim, compreende-se bem que a cada forma clínica se impusesse um
tratamento, para cada complicação se ensaiasse uma terapêutica e ainda, perante
o insucesso de ambos, novas modalidades surgissem, em casos julgados idênticos,
na ânsia desesperadora que dominava os médicos de pôr um entrave a tão sinistra
derrocada.
Variaram, com efeito, até ao infinito os tratamentos ensaiados com mais
ou menos eficácia; revolveu-se toda a terapêutica até hoje conhecida,
fizeram-se mesmo algumas descobertas, mas não foi possível acordar num
tratamento específico, único, eficaz, o que de resto era de prever no estado
actual da ciência».
A par disso, a
resposta dos estabelecimentos públicos de saúde era gritantemente deficitária.
Ricardo Jorge confessa ter ficado petrificado pela incúria que observou ao
visitar o hospital de isolamento do Porto, onde encontrou nada menos do que
cinco pessoas infectadas entre o pessoal da enfermaria. De
acordo com os seus cálculos, entre Dezembro de 1917 e Dezembro de 1918
registaram-se no Porto 6.254 casos de tifo, de que resultaram 1.203 mortes.
Outras fontes apontam para que em 1918 morreram 1.725 pessoas de tifo
exantemático e 910 de febre tifóide, contrastando com 42 e 985 do ano anterior.
Em 1919, os números são ainda mais impressionantes, com um total de 2.282
vítimas. A pneumónica, por seu
turno, foi declarada em Espanha, no decurso das festas de Santo Isidro, em Maio
de 1918 e em Junho desse ano já estava em Portugal, trazida pelos trabalhadores
que regressavam das fainas agrícolas, nas zonas de Vila Viçosa, Elvas e
Arronches. Num fenómeno que ainda hoje permanece inexplicado em todas as suas
dimensões, a gripe de 1918-19 propagou-se em «ondas» ou «vagas», avançando e
recuando, o que pode ter contribuído para a sua extrema letalidade: nos períodos
de recesso, abrandavam as defesas e as medidas sanitárias, após o que a
epidemia regressava. Assim, é possível dizer-se que, à escala planetária, a
gripe de 1918-19 teve uma vaga moderada na Primavera de 1918, outra
extremamente grave no Outono e uma outra, igualmente severa, no início de 1919.
Entre nós, ocorreu, com origem no Alentejo, uma primeira vaga, marcadamente
verno-estival, que termina em Julho,
registam-se 517 óbitos. Apareceu pela primeira vez em Vila Viçosa, em finais de
Maio, atacando um quinto da população, trazido o contágio pelos trabalhadores
de Badajoz e de Olivença; logo surge na Terrugem e em Arronches. Aparece depois
em locais tão diversos como o Aljube, a prisão de Monsanto ou a secção dos
mutilados de guerra do Instituto Médico-Pedagógico da Casa Pia.
Uma semana depois de ter surgido no Alentejo, já se manifestava no Porto.
A segunda onda
da gripe pneumónica, iniciada em Agosto nos arredores do Porto, em Vila Nova de
Gaia, seria mais lenta na sua disseminação, mas muito mais letal quanto aos
efeitos, sobretudo pelas suas localizações pulmonares: só em Lisboa morreram
5.000 pessoas – três vezes o normal – em nove semanas. O caso mais dramático
deu-se no vapor «Moçambique», que procedia à repatriação das tropas do Corpo
Expedicionário Português em África: da população total do navio, composta por
952 pessoas, 199 morreram durante a viagem até Lisboa, registando-se mais
óbitos após o desembarque. Entretanto, começam a detectar-se sinais da doença
no quartel de Artilharia 6 na Serra do Pilar ou entre os operários das fábricas
de Santo Tirso e Riba d’Ave.
Para fugir ao contágio, algumas localidades fecharam-se sobre si próprias. Tal
sucedeu no Amieiro, concelho de Alijó: os habitantes reuniram-se, decidiram
isolar-se e chegaram a estabelecer um sistema de vigilância diurna e noctura
que impedia a entra ou saída de qualquer pessoa naquele reduto; de tarde,
acendiam pelas ruas e pelas casas grandes fogueiras de rama de pinheiro e de
eucalipto, e desse modo, segundo refere o médico Afonso Madeira, conseguiram
afugentar a malina: nenhum morador no
Amieiro foi infectado. O
isolamento dava os seus frutos: a ilha de Santa Helena, onde não aportavam
navios, foi dos poucos pontos do globo que escaparam à doença.
A evolução da
doença é confirmada num relatório apresentado em Março de 1919 à Comissão
Sanitária dos Países Aliados, em que o médico Ricardo Jorge explicou que
Portugal foi alvo de duas grandes vagas epidémicas: a primeira, que se fez
sentir de Junho a meados de Julho, de difusão rápida mas de efeitos simples,
apelidada de primitiva ou verno-estival, ou ainda de gripe espanhola (possivelmente num
arroubo anti-iberista, foram os portugueses os primeiros a dar-lhe esse nome,
ainda que já em 1580 tenha havido uma epidemia que os alemães denominaram de der spanische Ziep ou Spanische pestilenz,
que quase impediria a invasão espanhola de Portugal, tendo Felipe II contraído
a doença de que sua mulher, Ana de Áustria, acabou por morrer); a
segunda, designada de gripe pneumónica,
ou estivo-outonal, espalhou-se de
meados de Agosto a finais de Setembro, foi, como já se referiu, de transmissão
mais lenta mas muito mais letal e maligna quanto aos seus efeitos, devido à sua
localização pulmonar. Tratava-se, aliás, de um padrão que remontava ao quadro
de salubridade e doença já detectado desde o início do século XIX, pelo menos,
em que o Verão e o Outono se afiguravam como as estações de mais temíveis
consequências. A segunda vaga da gripe
fez a sua aparição em Gaia, e
logo criou o falso temor de uma revivescência da peste pneumónica que assolara o Porto em 1904. Agora, o caso era
mais grave: «o fluxo epidémico invade o País inteiro, deixando por todo o lado
a marca do seu furor mortífero».
Ricardo Jorge fala mesmo de uma «hecatombe»
contra a qual de pouco ou nada valiam as tradicionais medidas sanitárias de
isolamento, a que os médicos assistiam «de braços cruzados», impotentes. Num
estudo recente, outro médico falaria de uma «avalanche de mortos», observando
que a gripe convergiu geograficamente para uma área alargada localizada na
bacia do Tejo, entre Lisboa e Santarém, onde ocorreram as maiores taxas de
mortalidade, com percentagens assustadoras de 7% (Benavente), 4% (Azambuja),
3,2% (Vila Franca de Xira) e 2,9% (Salvaterra). À
excepção de Melgaço, todos os concelhos da região Norte são, de um modo geral,
poupados pela doença e a gripe atingiu as populações independentemente da
densidade demográfica. «Este mal ultrapassou as expectativas mais pessimistas,
tanto pela sua extensão como pela sua intensidade (...); desta vez, o tipo
pneumónico foi mundial e a sua aparição quase simultânea. O volte-face deu-se
por todo o lado e de uma maneira sincrónica, como sob a acção de uma força
universal e misteriosa». Ricardo Jorge diz que nem ele mesmo, quando nos
relatórios de Junho previa a recidiva da doença, pensara que «Tróia cairia tão
depressa». Pior do que tudo, não havia uma explicação plausível para o
tenebroso fenómeno: nem os movimentos de guerra nem o desgaste físico das
populações por causa das crises de subsistências conseguiriam explicar o
retorno tão rápido da doença e a sua mutação devastadora; mais do que isso, não
conseguiam explicar a circunstância de a primeira vaga ter tido uma origem
externa – a Espanha – e a segunda, ao que tudo indiciava, uma génese autóctone,
além de ser difícil perceber o ritmo veloz da primeira onda, propagada através
das vias de comunicação, e a progressão mais lenta da segunda, bem como os
diferentes itinerários de ambas. Ricardo Jorge avançava apenas umas noções
vagas sobre factores agravantes, como as migrações militares (fenómeno também
ocorrido em Espanha),
movimentações populares, agrícolas, balneárias e navais, aludindo aos
movimentos dos recrutas, às feiras e peregrinações, aos trabalhos nas vindimas,
às idas a praias e estâncias termais, à exportação e importação de mercadorias
através dos portos. A isso acresciam outros factores: nos Estados Unidos, por
exemplo, a gripe apareceu fulgurante numa altura em que dezenas de milhares de
médicos e enfermeiras se encontravam ausentes, mobilizados para a guerra; o
ajuntamento das tropas para entrar em combate potenciou, de forma inegável, a
difusão da doença, bastando referir que em certos pontos de embarque, como
Hoboken, na Nova Jérsia, por onde passavam cerca de 300.000 soldados por mês, a
taxa de mortalidade pela pneumónica atingiu o impressionante valor de 20%.
Havia, de facto, a consciência clara de que os
ajuntamentos facilitavam a difusão da doença. O problema é que a epidemia
levava à aproximação das pessoas (v.g.
dos familiares aos doentes) e, nesse sentido, o contexto social em que aquela
se movia era um agente disseminador. Como escrevia o médico António Martins:
«A gripe propaga-se pelas gotículas, que não atingem grandes distâncias.
Quem fugir, por conseguinte, dos doentes e evitar o contacto com grandes
aglomerações, onde existem frequentissimamente pessoas que têm estado em
relação com atacados e objectos a eles pertencentes, está livre de ser
contagiado. Aqui temos a justificação das medidas governativas proibindo os
mercados, o funcionamento das escolas, dos teatros, dos animatógrafos, tudo,
enfim, que provoque um concursus populi.
Estas medidas eram boas se fossem realizáveis. Nas cidades é impossível
evitar as afluências humanas; por outro lado, quando uma epidemia alastra como
a de 1918, é impossível evitar as aproximações com os contaminados porque,
nestas condições, eles existem em todas as famílias».
Um fenómeno
semelhante encontrou-se noutros lugares. Em Espanha, a concentração de pessoas
por ocasião da festa da Virgen de Balme semeou a gripe numa região extensa, a
partir de focos epidémicos situados na zona de Valência; em
Madrid, a trasladação do Cristo de la
Salud para a sua nova capela, cerimónia a que acorreram milhares de fiéis,
de todas as condições e classes sociais, proporcionou um «democrático
intercâmbio de gérmens», na expressão irónica de Beatriz Dávila. Na
Índia, o percurso da doença, iniciado em Bombaim, acompanha claramente as vias
ferroviárias, sendo poupadas as zonas mais distantes do caminho-de-ferro. Na
África do Sul, a gripe é detectada pela primeira vez na área do porto de Durban.
Diz-se ainda que a doença foi levada para a Argentina e para o Brasil a bordo
de um navio espanhol,
tendo a segunda vaga sido transportada de um navio saído de Lisboa, o Demarara, que chegou ao Rio de Janeiro a
17 de Setembro de 1918, e pelo Reina
Victoria Eugenia, que aportou a Buenos Aires a 26 desse mês.
Relembre-se que, na Europa, esta segunda vaga gripal foi detectada em Agosto de
1918, segundo parece, na zona portuária de Brest. Um
dos principais pontos de localização da gripe foi Freetown, na Serra Leoa, o
mais importante porto da África ocidental.
Para mais, o estabelecimento de um cordon
sanitaire garantido pela força das armas era inviável em face do
desenvolvimento das comunicações – com predomínio dos transportes colectivos
(comboios e navios),
não estando ainda generalizado o uso de automóveis particulares – e do grau de
interdependência entre os países; não por acaso, em 1918 os controlos
fronteiriços foram tardios e ineficazes, de um modo geral.
Foi isso que, segundo alguns observadores, conduziu a uma «igualização viral»
que abrangeu todas as categorias sociais, civis e militares, bem como todas as
regiões do mundo.
Morria-se em
colapso, às vezes subitamente, outras com cruciantes hemorragias pulmonares, o
que ainda mais atormentava os espíritos, dado que as vítimas eram, na
esmagadora maioria dos casos, jovens fortes na plenitude das suas faculdades
físicas e mentais. E
morria-se novo: em 1920, 70,02% dos que faleceram tinham menos de 60 anos e,
dentro desse grupo, 43,15% tinham menos de 15 anos.
«Nas epidemias anteriores à de 1918 a gripe era, duma maneira geral, mais grave
nos velhos que nos adultos saudáveis.
Nesta última sucedeu o contrário: os novos foram os que maior contingente deram
para a mortalidade causada por esta terrível pirexia», escreveu um médico na
altura. Confrontada com isso,
em Kiev, uma adolescente de catorze anos anotaria desolada no seu diário: «é
especialmente triste quando um jovem morre. Os velhos tiveram a sua época; mas
aqueles estão ainda no começo da vida». Por sua vez, um jovem de Boston
escreveria, em Outubro de 1918: «percebi que a vida não é um eterno presente, e
que até o amanhã fará parte do passado, que, apesar de todos os dias e anos que
irei viver, também um dia morrerei».
Para a
propagação da doença contribuíram, como se disse, diversos factores: os movimentos
dos soldados, a atitude imprevidente das autoridades militares ao concederem
licenças aos recrutas para regressarem às suas terras, a concentração de
pessoas nas feiras e romarias em Agosto e Setembro, bem como, quanto aos
estratos mais elevados, dos veraneantes nas estações balneares, a deslocação de
trabalhadores rurais na época das vindimas.
Mas o factor mais decisivo talvez tenha sido a falta de resposta das
autoridades sanitárias, onde imperou a improvisação – o que, reconheça-se, não
foi um exclusivo nacional, ocorrendo em muitos outros lugares, salientando-se a
incúria das autoridades neozelandesas (responsável pela morte de 20% da
população da Samoa Ocidental, o lugar do mundo mais afectado pela pandemia de
1918) ou
a descoordenação dos serviços em São Francisco, nos Estados Unidos. A
Austrália foi dos raros lugares em que as autoridades actuaram de forma eficaz,
o que talvez explique a mortalidade relativamente baixa aí registada. Na
capital portuguesa, ao invés, alguns doentes, gravemente enfermos, chegavam a
ser transportados em side-cars,
expostos ao frio e ao vento, o mesmo sucedendo com os que eram levados em
camiões do Exército, sem cobertura, nas noites de Outubro e Novembro. «A “cruz
de pau” foi o remate de muitos desses transportes», concluiria um médico no seu
relatório.
No retrato do
sidonista Teófilo Duarte:
«O contágio não poupava ninguém, e por isso, os hospitais regorgitavam de
doentes, as habitações particulares transformavam-se em sucursais de tais
estabelecimentos – pois eram vulgares os casos em que toda a família caía de
cama – e os coveiros não tinham mãos a medir.
(…)
Em Lisboa, o número de entradas diárias nos hospitais chegou a ser de 389
e de enterros de 250, diziam os jornais. Fecharam escolas, repartições, bibliotecas,
fábricas e grandes estabelecimentos comerciais. Proibiram-se as feiras, as
romarias e tudo quanto servisse de pretextos para ajuntamentos, mas parecia que
a cólera do Céu não desarmava. Médicos e enfermeiros escasseavam, pois eles
também contribuíam com a sua quota-parte para engrossar o número das vítimas.
Os medicamentos a breve trecho se esgotaram e a sua substituição tornou-se
quase impossível devido ao estado de guerra. O leite, o açúcar e outros
alimentos, imprescindíveis a doentes, faltavam no mercado».
No Hospital
Militar de Campolide, um médico disse ter assistido «ao facto inacreditável e
marroquino de serem chamadas a Lisboa forças da província, vindas de focos
epidémicos gravíssimos». Em
muitas ocasiões, recorreu-se a um excesso de medicação – ao uso da metralha toda, na gíria médica da altura
– que teve efeitos contraproducentes.
Alguns pormenores são elucidativos do modo artesanal como a sociedade respondeu
a esta praga: a Comisssão Central dos Socorros às Vítimas das Epidemias, que
viria a ser presidida por Ricardo Jorge, só se constituiu em Novembro, quando a
pior fase da epidemia tinha passado. Em Outubro, a revista Medicina Contemporânea garantia: «pelas informações recebidas,
sabemos que no geral a doença não reveste gravidade de maior». Alguns médicos
aconselhavam aos doentes a simples ingestão de chá, café ou álcool. Houve quem
sugerisse retirar da circulação as notas de tostão, para evitar o contágio.
Outros ainda – e não apenas em Portugal – optaram por respeitar o curso natural
da doença (vis medicatrix naturæ),
controlando apenas a febre e sujeitando o doente a repouso e dieta adequados. No
Brasil, acreditava-se nos poderes curativos do alho, da cebola, da canela e, em
especial, do limão. Adoptaram-se medidas inúteis, como a desinfecção das ruas
com cal ou produtos desadequados, como folhas de eucalipto ou alcatrão, que
remontavam aos tempos das pestes medievais, em os médicos recomendavam que se
queimassem ervas aromáticas nas ruas,
crendo que era a corrupção do ar o
principal agente transmissor da doença.
Não foi um exclusivo nacional. Em face
da desorientação da comunidade médica quanto à terapêutica mais adequada, o
refúgio na medicina caseira, «alternativa diante do mal incompreensível», a par
da proliferação de receitas milagrosas vendidas a preços especulativos, marcou
o surto da epidemia no Brasil, por exemplo.
Proliferaram os casos de charlatanismo,
que as revistas médicas denunciavam sempre que podiam.
Também a ideia
da corrupção do ar corrompeu muitos
espíritos por todo o mundo. O próprio Presidente Wilson citaria uma quadra que
era entoada por todos os parques infantis norte-americanos: «I had a little
bird,/Its name was Enza,/I opened the window/And in-flu-enza». De Hong-Kong à
América profunda, as pessoas fechavam-se em casa, calafetavam portas e janelas,
aqueciam-se com caloríferos alimentados a querosene que queimavam o oxigénio e,
não raro, acabavam por morrer sufocadas.
Nos antípodas deste método, recomendava-se como panaceia a exposição ao ar
livre: sobretudo na Grã-Bretanha, espalhou-se a crença de que o ar livre era o
melhor remédio para a gripe, chegando a aconselhar-se o chamado «tratamento do
telhado» (roof treatment) nos
hospitais infantis, em que as crianças eram colocadas no topo dos edifícios
hospitalares, protegidas do frio apenas com borrachas de água quente e lonas
para cortar o vento gélido da estação fria. Na Dinamarca, um alto responsável
médico recomendou que as janelas fossem pura e simplesmente retiradas dos seus
lugares enquanto a gripe não abrandasse; médicos dos hospitais de Milão
reconheceram que os doentes que dormiam em tendas nos pátios das casas de saúde
tinham maior facilidade de convalescença do que os que permaneciam encerrados
no interior dos edifícios. Obedecendo a este dogma do ar livre, em muitos
lugares dos Estados Unidos as audiências dos tribunais foram transferidas para
praças e jardins públicos. Na
linha «desinstitucionalizadora» que caracterizou a apologia do ar livre,
médicos dinamarqueses, a par da Academia Francesa de Medicina, sustentavam que
o internamento hospitalar agravava o contágio – o que, de resto, era uma
verdade, bastando recordar que o Hospital de Boston, por exemplo, começou a
registar uma incrível taxa de mortalidade de 50% dos internados e que até na
asséptica Suíça um terço dos internados no Hospital de Zurique acabou por
padecer de pneumonia.
Não é difícil imaginar o que sucedeu em países com menos recursos: na Letónia,
os doentes de gripe eram internados ao lado dos que se encontravam mortalmente
infectados com tifo ou cólera.
Percebe-se, assim, que muitos se recusassem a deixar-se internar ou aos seus
próximos – numa localidade italiana, um pai colocou-se à porta de casa com um
machado, dias a fio, no firme propósito de matar todo aquele que quisesse vir
buscar a sua filha para interná-la num hospital.
Se uns se
fechavam em casa, outros fechavam os olhos à realidade, negando a existência de uma pandemia. No Brasil, o
secretário de Estado do Interior, Justiça e Instrução Pública do Estado da Baía
descartou qualquer possibilidade de existir uma epidemia de gripe em São
Salvador, argumentando que, caso tivesse ocorrido algo de anormal, teria sido
avisado pelas autoridades sanitárias, pelo que não acreditava na «devastação
anunciada» na imprensa oposicionista; no
Rio de Janeiro, responsáveis pela saúde pública diziam, revoltados, que a
censura imposta pelos militares muito contribuiu para a propagação da doença; em
Espanha, as autoridades de Pamplona ocultaram a existência da epidemia,
enquanto o munícipio de Madrid se vangloriava de regar as ruas com 6.000
frascos de desinfectante por dia. Na
Alemanha, por razões ligadas à guerra, as autoridades do Reich impuseram, desde Janeiro de 1918, uma censura draconiana às
estatísticas das doenças infecciosas e só a partir de Março começaram a
circular notícias esparsas sobre a doença que se aproximava. Em
Espanha, o Inspector-Geral da Saúde Pública optou pelo negacionismo, afirmando
que tinham sido turistas estrangeiros a disseminar a gripe pelas ruas de Madrid.
Ainda que tal não corresponda à verdade, o
certo é que a ideia de que a doença tivera origem em Espanha acabou por correr
mundo: na Rússia, o Pravda noticiava
«Ispanka (a espanhola) está entre nós», apesar de os médicos hispânicos tudo
fazerem para mostrar que a fonte da doença se encontrava justamente no
Turquemenistão.
Mas, passada a fase dos nacionalismos, em que vários países se acusavam entre
si sobre a origem da epidemia, acabou por se gerar uma onda de cooperação sem
precedentes a nível planetário. «Hoje em dia, todas as nações espirram como se
fossem uma só», escreveu certeiramente um diário de Atenas. Basta recordar, por
exemplo, que a Cruz Vermelha dos Estados Unidos fez uma doação de 125.000
dólares à Suíça e enviou médicos, enfermeiras e fármacos para Portugal. Uma
missão brasileira deslocou-se a França, ainda que todos os que a integravam
tenham adoecido na viagem e quatro hajam morrido a bordo. Em Madrid, o
embaixador da Alemanha ofereceu o préstimo de todos os médicos daquele país que
se encontrassem nos navios ao largo da costa espanhola. O famoso
bacteriologista August von Wassermann deixou afirmado, lapidarmente: «Para mim,
não existem alemães nem ingleses – só homens que sofrem e têm de ser ajudados». Ao
invés de impedir a entreajuda à escala internacional, a guerra e pode ter
contribuído para a fomentar. Se o ódio aos alemães ainda não estava
ultrapassado – no Rio de Janeiro, por exemplo, após o episódio do Lusitania era quase obrigatório cuspir
no chão sempre que se passava à porta do consulado germânico – o espírito do
tempo foi captado, de forma admirável, justamente por um alemão: «estávamos
demasiado exaustos até para odiar», disse o burgomestre da cidade de Colónia,
de seu nome Konrad Adenauer; o
problema é que, como dizia um seu concidadão, o general Ludendorff, «quem está
cansado sucumbe ao contágio muito mais facilmente do que um homem forte e
vigoroso».
A busca de
novas terapêuticas não pararia. O médico César Torres, que em 1918 acompanhou a
gripe em Sabrosa, onde acabaria por ser contagiado por tifo exantemático,
depois de reconhecer que onde se encontrava não tinha acesso aos progressos da
medicina, refere, entre o mais, que teve dificuldades em convencer os doentes e
os seus familiares a autorizarem que lhes fossem aplicadas compressas frias;
quanto à dieta, César Torres aconselhava caldos de frango, farinhas, maçãs
assadas e, a cada refeição, um cálice de Porto velho.
Durante a epidemia,
que progrediu de modo fulminante (a ponto de um médico ter dito que «o que
caracterizaou especialmente esta infecção epidémica foi o seu grande, o seu
enorme poder de expansão!»),
apesar de no Parlamento se ter falado da «terrível deflagração» da gripe e
do «pavoroso desenvolvimento da epidemia pneumónica», o
Estado manifestamente não consegue satisfazer as necessidades, sendo grande
parte do combate à doença deixado a cargo das instituições tradicionais de
assistência, com destaque para as associações mutualistas, os bombeiros, as
sociedades recreativas e as então criadas comissões locais de socorro, ou mesmo
instituições como o Diário de Notícias,
a companhia de seguros «A Oriental», o Banco Português e Brasileiro, o Sport
Lisboa e Benfica ou o Partido Republicano, além da acção caritativa de
particulares, como a condessa de Burnay. Destacou-se, neste contexto, a Obra de
Assistência 5 de Dezembro, apadrinhada por Sidónio Pais, e a Cruz Vermelha. Ao
Senado da República chegaram ecos de uma exposição dos farmacêuticos de Alijó,
que alegavam ter fornecido medicamentos aos habitantes dos concelhos limítrofes. O
senador Desidério Beça advertiria que «no distrito de Vila Real estão grassando
com intensidade as epidemias de varíola, tifo e gripe; e alguns concelhos
importantes, como Murça, não tem médico permanente; e mesmo que tivesse não era
suficiente para atender às chamadas constantes num concelho de grande área e
maus caminhos. É pois indispensável que para aquela região sejam enviados
medicamentos, agasalhos e socorros monetários».
Outro senador diria que «o cemitério de Aveiras de Cima, concelho de Azambuja,
não tem as condições necessárias para receber os mortos da povoação que tem
hoje perto de mil fogos, principalmente depois da pneumónica, pois, quando
dessa epidemia, houve dias em que se enterraram sessenta pessoas, dando isto
lugar a que se passem cenas como as de Edgard Poe, cenas que põem os cabelos em
pé».
Anos depois, as doenças de 1919 continuariam a ser faladas do Parlamento
português: «ainda estão na memória de nós todos as duas epidemias que grassaram
no País há uns 5 anos; a epidemia do tifo no Porto e a epidemia da pneumónica»,
disse-se em 1925 no Senado da República. E lembrou-se, inclusivamente, o papel desempenhado
por alguns religiosos, como o padre Amaral: «há um homem em Espinho cuja
extraordinária benemerência é necessário proclamar. É o reverendo padre Amaral,
abade da freguesia, por todos respeitado que, por ocasião da epidemia da
pneumónica em 1918, quando as autoridades civis viam baldados os esforços para
conseguirem hospitalizar os doentes, ele usando do seu prestígio, ia
arrancá-los aos seus casebres, improvisou um hospital, de que se fez
enfermeiro, angariou donativos, etc., pelo que toda a população lhe estava muito
grata e admirava a sua conduta heróica».
O esforço e a
mobilização da sociedade civil, atrás referidos, são expressivamente
reflectidos no Relatório e Contas da
Comissão de Socorros em Alcácer do Sal, que conta casos de farmacêuticos
doentes que, em vez de se recolherem à cama, preferiram continuar a trabalhar,
de um serviço de abastecimento de água ao domíclio montado por um cabo da
Guarda Republicana, um funileiro e um fiscal dos impostos, dos inúmeros
empréstimos (animais de carga, veículos, barris) feitos pelos habitantes da
vila, de ofertas de carvão feitas por um comerciante recém-chegado a Alcácer,
de viúvas que se alistaram como enfermeiras, das brigadas que se formaram para
cortar rama de eucalipto, da dádiva de alcatrão para o serviço de fogueira, dos
médicos que, apesar de infectados, continuavam a trabalhar incansavelmente, de
um funcionário municipal que se voluntariou para substituir o farmacêutico, das
senhoras que ofereceram os seus préstimos na confecção de roupas brancas para o
hospital e da que abriu em sua casa um asilo para crianças desvalidas. Apenas
uma mulher, que se encontrava na cadeia e a quem foi oferecida a liberdade a
troco de ajuda, se recusou a colaborar. A
Comissão enaltece a ordem que se conseguiu manter em Alcácer do Sal, salientando
o facto de os enterros se terem feito dentro dos prazos legais, de não terem
existido reclamações contra os serviços do Registo Civil, de o lavadouro
público ter sido limpo todas as noites, de não ter havido especulação no preço
da carne, do açúcar, do leite e do pão. Sublinha-se que «os socorros da Igreja
foram pontualíssimos, e evangelicamente caridosos» e, para respeito da
tranquilidade, que «os sinos conservaram-se caladinhos».
Alcácer do Sal vangloriava-se do seu civismo, não deixando de o contrastar com
o que se passava noutros lugares:
«O que muita gente aqui sabe é que duma importante vila que fica a menos
de 10 quilómetros da capital do distrito, escreviam para Alcácer, pouco mais ou
menos nestes termos:
“Meu pai
Isto é um inferno! Horroriza o que
aqui vai com os vivos e também com os mortos...
Peço-lhe que me mande, pelo correio,
um ou dois pães. E se puder obter linhaça, mande-me também”.
Ora, terras daquelas são, no sentir geral, desqualificadas. Terras em que
assaltam as lojas. Atiram bombas. Entornam o azeite. Derramam trigo. Onde, com
as altas e baixas da política, se agridem uns aos outros, e enchem as cadeias!
Glorifiquemos, pois, Alcácer, esta terra modelar, em que nunca houve um
desacato, uma prisão política, qualquer vingança».
Na capital, as
primeiras hospitalizações têm lugar a 24 de Setembro, com uma particular
incidência de jovens adultos – e, curiosamente, em números quase idênticos
entre homens e mulheres, mas sendo muito mais elevada a mortalidade masculina –,
contrastando com um reduzido internamento de idosos e crianças, o que, como já
se referiu, constitui uma singularidade da epidemia de gripe de 1918 em
confronto com todas as outras estudadas até hoje. Em
Lisboa, a esmagadora maioria dos internados era oriunda da própria capital, mas
foi nos meios rurais que a mortalidade atingiu níveis mais elevados, o que é
tanto mais curioso quanto esses meios são os que registam menores taxas de
incidência da doença. De
início, foram usados os dois pavilhões de doenças infecto-contagiosas do
Hospital do Rego mas, numa «cidade suja e infecta, sem higiene e quase sem
água, rica de toda a casta de espécies mórbidas», nas palavras do então
director-geral dos hospitais civis, cedo se sentiu a necessidade de novas
instalações. Foi rapidamente reactivado, em condições precárias, o velho
Hospital de Arroios, usando-se ainda in
extreminis parte do antigo Convento das Trinas e o Liceu Camões. Um médico
em serviço neste liceu sintetizou numa frase toda a sua impotência: «os doentes
morriam e nós não sabíamos como evitar a morte». O
director-geral dos hospitais civis recordou o cenário dantesco vivido nas
Trinas:
«Conservo ainda na memória a impressão que senti com a chegada da
primeira leva de doentes epidemiados, despejados cerca da meia noite por três
automóveis da Cruz Vermelha no pátio do improvisado Hospital, ainda nesse
momento iluminado apenas pela luz baça dalguns lampiões e atulhado de material
de hospitalização a distribuir ainda pelas várias salas de enfermagem e serviços
diversos. Eram todos doentes em estado grave e alguns moribundos que admiti e a
que prestei os primeiros socorros – pois ainda não havia clínico de serviço, só
36 horas mais tarde devendo abrir-se o Hospital – providenciando e tudo
dispondo para esses doentes (homens, mulheres e algumas crianças) serem
transportados do pátio onde se socorreram de pronto com enxergas e cobertores,
para as camas de duas enfermarias que assim forçadamente se inauguravam;
esforço realizado depois de um dia e noite de trabalho extenuante para todo o
pessoal em serviço de instalação desse novo hospital.
O quadro de viva tragédia que naquele pátio se viu, no cenário soturno do
velho convento de freiras, era bem digno do pincel dum grande artista e bem
merecia ser descrito por quem fosse escritor e o tivesse sentido».
Nem
mesmo os médicos deixaram de se impressionar com os efeitos destas epidemias
nos pacientes. «Num primeiro momento», escreve a investigadora Beatriz Dávila,
«a reacção dos médicos foi de confusão e de incerteza». As
análises laboratoriais, para mais, apresentavam resultados inconcluentes: nas
lesões pulmonares, encontrava-se uma variada fauna bacteriológica –
estreptococos, pneumnococos, estafilococos ou bacilo de Pfeiffer – umas vezes
combinada, outras isolada. Em 1890, julgava-se que o bacilo de Pfeiffer era a
causa da gripe.
Agora, com o mundo mergulhado na gripe, o bacilo nem sempre surgia.
Falava-se de cólera, dengue, febre de Pappataci, peste pneumónica.
Ninguém se entendia. Mas todos presenciavam os efeitos devastadores da doença.
Simões de Macedo, que observou mais de trezentos casos de tifo exantemático,
recordou, entre o mais, o imobilismo dos afectados pelo torpor ou estupor tífico:
«quem visitava as enfermarias de tifosos, ficava impressionado pelas máscaras
imóveis dos pobres farrapos humanos que a época de desgraças para ali atirou. E
digo máscaras imóveis porque, embora crispações de músculos as agitassem,
abalos de tendões as sacudissem, eram vazias de olhar, sem expressão, ocas de
sentimentos. Aqueles olhos parados, obstinadamente fitos num ponto, ou
movediços como o pêndulo dum relógio, davam a impressão de não terem retina que
fixasse uma imagem; aquelas rugas da fronte, aqueles vincos dos lábios, não
eram gerados por um pensamento ou formados por um sentimento». Os
outros sintomas não eram mais animadores: enfraquecimento e astenia, dores do
pescoço que impedem ou dificultam a deglutição (disfagia), graves perturbações
na fala (a ponto de Simões de Macedo afirmar que os doentes pareciam «ter um
corpo estranho na boca»),
escrita trémula, diminuição da acuidade auditiva, trémulos fibilares nos
músculos da face, da região toráxica e dos membros, contracção dos músculos da
nuca, relaxação do esfíncter, perdas parciais ou totais de equilíbrio, erupções
cutâneas muito visíveis e disseminadas, um hálito sui generis. Curiosamente, um dos sintomas observados por Simões de
Macedo foi um súbito aumento de apetite, com tendência para se converter em
aparente bulimia.
Este médico, que observou mais de trezentos casos, concluiu que «a invasão [do
tifo] é brutal, violenta» e que «a prostração é muito marcada desde o
princípio». Existia outro sintoma
peculiar: o medo. «O doente apresenta-se-nos aterrado não só pela rapidez do
ataque – como se tivesse levado uma grande pancada, que não sabe de onde caiu,
disseram-me alguns –, mas ainda pelo internamento num hospital de que o povo
tem uma ideia horrível – um inferno povoado por diabos de casaco branco».
Acrescenta ainda este médico: «quem visitava as enfermarias de tifosos ficava
impressionado pelas máscaras imóveis de pobres farrapos humanos que a época de
desgraças para ali atirou».
Também Adérito Madeira assinalaria que, nos contaminados por tifo exantemático,
uma «doença de excessiva gravidade», «a
expressão do rosto (...) é triste, estúpida e parada»,
notando-se ainda como outros efeitos a anorexia, a sede intensíssima, a
respiração acelerada, as vertigens, o cheiro característico da pele (a «palha
podre», segundo aquele médico), as insónias, os delírios, a incontinência.
Acrescente-se
que em 1911-1920 morreram em Portugal 100.000 pessoas vítimas da tuberculose e
que, se as estatísticas fossem mais rigorosas (45% dos portugueses morriam sem
certidão de óbito), os números seriam certamente muito mais elevados. Não é por
acaso que o número de mortes por doenças desconhecidas, mas indubitavelmente
associadas so surto epidémico, subiu vertiginosamente de 55.791 em 1917 para
uns assustadores 96.562 em 1918. Em 1912, a população vivera alarmada por uma
epidemia de tifo que, em apenas dois meses e meio, matou 254 pessoas, mas o
pior estava para vir. Os anos de 1918-1919 caracterizam-se, como se viu, por
grandes epidemias: o tifo, a gripe, a pneumonia, a varíola, por ordem cronológica;
a gripe, a pneumonia, a varíola, o tifo, por ordem de mortalidade. Oliveira
Marques fala de um «estado geral de pânico» que se instalou no País, em
especial nas grandes cidades. Associado a essa onda de medo, viveu-se um
sentimento de revolta pelos especuladores que se aproveitavam do drama das
famílias: os jornais escandalizavam-se com a notícia de médicos que cobravam
50$00 pelas consultas, enquanto em alguns locais o preço do quinino subia de
65$00 para 300$00. O Século
denunciava que cada litro de leite dava uma margem de lucro de 200%. O elevado
preço dos medicamentos era, pelo menos desde o século XIX, um problema crónico:
as populações de menores recursos, não podendo custear os remédios prescritos
pelos médicos, refugiavam-se em terapêuticas alternativas, nomeadamente à base
de plantas medicinais. Em
tempos de epidemia, não só os medicamentos mas todos os géneros são alvo da
avidez dos especuladores, realidade que Camus descreverá admiravelmente em A Peste: «a especulação aproveitara-se
do facto e oferecia a preços fabulosos os géneros de primeira necessidade que
faltavam no mercado habitual. As famílias pobres encontravam-se, assim, numa
situação muito difícil, enquanto às ricas não faltava praticamente nada, porquanto
a peste, pela imparcialidade eficaz que punha no seu ministério, devia ter
reforçado a igualdade entre os nossos concidadãos mercê do jogo normal dos
egoísmos, ela, pelo contrário tornava mais agudo no coração dos homens o
sentimento da injustiça. Restava, bem entendido, a igualdade irrepreensível da
morte, mas essa ninguém a queria». Certamente, não terá sido muito diverso
deste o cenário que se viveu em Portugal durante as epidemias de 1918, um tempo
em que a onda de mortalidade foi tal que os funcionários da morgue e dos
cemitérios, assoberbados de trabalho, chegaram a ser acusados de falta de
dignidade no cumprimento das funções. Na cidade de Lisboa circulam carroças
apinhadas de cadávares cobertos apenas com uma serapilheira, enquanto nos
cemitérios se têm de abrir valas comuns. Os Armazéns Grandella fazem uma
campanha de redução de 10% no produto que as famílias mais necessitavam:
vestuário de luto. Os oportunistas anúncios da Casa Áurea diziam que o melhor
remédio para a gripe era os casacos de malha que aí se vendiam.
O médico
Juvenal Esteves recorda o ambiente fúnebre que envolveu Lisboa – e, muito
provavelmente, todo o País – por ocasião do surto da pneumónica:
«Instalara-se a epidemia de gripe pneumónica que provocou inúmeras
vítimas e enorme mortalidade. O ambiente era de contenção exterior, mas o
pânico reinava no íntimo das famílias. Os que podiam ausentavam-se para a
província ou arredores enquanto os que permaneciam tentavam resistir ao flagelo
por meio de rezas e mezinhas. Empregados municipais deitavam cloreto de cálcio
em fiada mais ou menos contínua nas ruas, na junção do pavimento com as paredes
dos prédios. Esta tira esbranquiçada contracenava de imediato com os anúncios
de falecimento em papel de orla e cruz pretas, afixados em porta sim porta não
dos estabelecimentos comerciais. A soturna panorâmica urbana completava-se em
infindáveis cortejos fúnebres de viaturas com panejamentos negros puxados por
cavalos e mulas e se cobriam dos mesmos e desfilavam lentamente, unidos uns aos
outros, desde a manhã ao cair da tarde em trajectos de quilómetros até aos
cemitérios».
No
mesmo sentido, Amândio de Campos, que na altura exercia funções como médico no
Hospital da Misericórdia da Mealhada, dá nota do pânico instalado em virtude da
rapidez da expansão desta doença letal. Refere, desde logo, o papel da imprensa
na difusão do medo: «nessa altura as gazetas anunciavam uma epidemia
desconhecida, mas que fazia inúmeras vítimas, lá para as regiões do Douro»; «os
jornais soltam o alarme». Depois, foi a vez da enfermidade chegar à região onde
trabalhava, semeando o terror entre as populações: «A onda epidémica lança-se
velozmente, desde o Luso até aos confins da Bairrada. Estabelece-se o pânico na
região. Todos vêem em volta de si o quadro sinistro da morte, e não sem razão,
porque o número de obituários diários é elevado. A epidemia rasteja sem cessar,
levando na sua obra devastadora a desgraça, o luto e o terror. Os mais fortes
fraquejam. Precisa-se pessoal de enfermagem e todos se recusam. Os operários na
sua maioria não trabalham, esperando qie o terrível mal lhes caia abruptamente
e os leve». Em face disso, a classe
médica teve de, por momentos, deixar de lado alguns princípios e, não sem uma
certa mágoa, recorrer aos velhos tratadores de doenças: «os barbeiros, alguns
quase reformados, entram em actividade
clínica, visitando e tratando um sem número de doentes. Passam à alta
categoria de Clínicos e em certos pontos, por falta de assistência médica,
tomam a pose que uma tal situação lhes proporcionou, olhando-nos a nós, por
vezes, como um colega, contando um ou outro caso da sua civilizada clientela».
Interessa
perceber que a terrível devastação provocada pela pneumónica não se traduziu
apenas, ou no imediato, no relembrar do papel da Igreja e do conforto
espiritual da fé cristã. Por todo o mundo, as igrejas não se alhearam do
combate à doença. Muitos templos encerraram, as missas foram proibidas – por
exemplo, em Winnipeg, Budapeste, Dunedin ou na Nova Zelândia –, impuseram-se
serviços religiosos de apenas trinta minutos com o sacerdote devidamente
afastado dos fiéis. O arcebispo católico de Sidney, à frente de um conjunto de
padres, trazendo consigo um altar portátil e um saco-cama, desafiou abertamente
as autoridades que, cumprindo ordens superiores, impediam que os sacerdotes se
aproximassem dos moribundos para celebrar missas e ministrar a extrema-unção. O
Parlamento acabaria por permitir o acesso dos padres, «seguindo certas
precauções», aos crentes que se encontravam colocados em quarentena. Por sua
vez, o arcebispo de Filadélfia ordenou que duzentas freiras da Ordem de S. José
fossem mobilizadas para auxiliar os doentes;
nessa cidade, as autoridades sanitárias acabariam por proibir quaisquer
serviços religiosos. O bispo de São Francisco ofereceu à Cruz Vermelha todos os
meios da diocese: quarenta igrejas e centenas de padres e freiras. Já
o bispo de Milão se destacaria pelas suas cautelas profilácticas: desinfectava
os paramentos, mudava diariamente a água-benta, retirou de uso o cálice da
comunhão. Alguns discordavam destas medidas, e não com argumentos religiosos,
mas clínicos: um padre do Canadá advertiu que, se acaso as missas fossem
proibidas, os fiéis deixariam de ter um motivo para tomar aos domingos o banho semanal,
o que a prazo poderia ter efeitos ainda mais perniciosos para o combate à
pandemia. Outros avançaram argumentos económicos: com a supressão das missas e
da colecta de donativos pura e simplesmente deixaria de haver dinheiro para
pagar aos párocos.
Entre nós, os
bispos ordenaram preces públicas para que o surto epidémico amainasse e o povo
português fosse poupado a mais provações. Alguns sacerdotes, mais práticos,
como o Pde. António Maria Pinho, tratam do isolamento dos pobres, reclamam e
obtêm subsídios do Governo, fazem distribuir pelas farmácias açúcar granulado
para preparação de medicamentos.
Outros, como o bispo do Porto, emitem circulares ordenando medidas de
desinfecção nas igrejas da diocese contra o surto de tifo.
Neste
contexto, e à semelhança do que ocorria nas trincheiras da Flandres, tenta- se
ultrapassar o medo através do humor. Dos sobreviventes da gripe dizia-se que
haviam estado «na cama com a espanhola»,
enquanto em Madrid se chamava à doença «soldado de Nápoles», nome de uma
popular canção de opereta da altura que se dizia ser tão contagiosa como a
enfermidade. Noutros casos, há uma
redescoberta do sobrenatural ou de causas extraterrenas, não sendo por acaso
que a expressão influenza foi cunhada
no início do século XVI em Itália para exprimir justamente a ideia de que a
gripe sofria a influência das
estrelas. Por uma crença algo
obscura, os maioris da Nova Zelândia só aceitavam medicamentos castanhos, da
cor da sua pele; à semelhança dos médicos ocidentais, os lamas do Tibete
velavam os doentes dia e noite, rufando tambores e tocando címbalos. Os russos
continuavam a beijar os seus ícones, julgando que durante uma missa era
impossível contrair a doença. Em
Nova Orleães, cidadãos de todas as classes passaram a abastecer-se de
artefactos ligados à prática do vudu e a entoar uma prece capaz de esconjurar a
praga (Sour, sour, vinegar-V / Keep the
sickness off’n me.). O Public Health Service recebia cartas de
cidadãos propondo que fosse aconselhado o uso de uma fita vermelha ao pescoço,
com o argumento irrespondível de que «a gripe é o diabo e o diabo não ataca o
vermelho». Os Cientistas Cristãos
questionaram as «terapêuticas materialistas» – que, de facto, se mostravam
incapazes de vencer o flagelo – e viraram-se para uma abordagem espiritualista
da doença. Um soldado norte-americano, ao ver a morte grassar entre os seus
camaradas de armas, reconfortou a sua mãe numa carta em que dizia estar a salvo
da epidemia pois acreditava no «poder da mente sobre a matéria», acrescentando:
«se todos tivessem a mesma fé no Pai-Mãe Deus tudo seria… diferente». Os
Cientistas Cristãos de Nova Iorque sustentaram que a epidemia era a prova do
triunfo do espírito sobre a matéria: se os chineses da cidade eram tão
afectados pela doença, não resultava isso da sua iliteracia, do facto de terem
dificuldade em ler sequer os cabeçalhos dos jornais? O muito popular pregador
evangélico Billy Sunday clamou que as preces públicas eram o único meio eficaz para
travar o avanço da doença. Para as Testemunhas de Jeová, cumpria-se a profecia
das «pestilências e sofrimentos» que Cristo anunciara no Monte das Oliveiras.
Um astrólogo considerou que o culpado de tudo era o planeta Júpiter: o seu
efeito sobre o electro-magnetismo da Terra fez crescer e desenvolver-se um
microorganismo letal. Já em África, os astrólogos avançaram uma explicação
diversa, que se baseava na existência de uma estranha conjunção de Saturno e
Neptuno. Proliferaram crenças antigas: os ingleses que habitavam Gibraltar
entraram em pânico ao verem os macacos adoecer, já que uma velha lenda dizia
que, quando os símios desaparecessem do rochedo, também, os súbditos de Sua
Magestade o abandonariam para sempre; em certas aldeias da Noruega, retomou-se
a tradição viking de deixar alimentos junto às campas dos mortos; em Cracóvia,
na Polónia, um trauseunte assistiu a uma cerimónia bizarra em pleno cemitério
judaico: com vista a perpetuar a espécie e resgatar a Humanidade da pandemia,
dois jovens órfãos, ainda adolescentes, rodeados por centenas de judeus,
uniram-se num «casamento sacrificial; na China, um antigo soldado imperial,
para esconjurar a praga, cometeu um acto de loucura, lançando o seu filho às
chamas do caldeirão de incenso do templo de Cheng Huang.
O refúgio no
sobrenatural, não raras vezes, esteve associado à crença em produtos
milagrosos: além de chegarem a anunciar uma vacina para a gripe, os jornais
publicitam cigarrilhas medicinais «ultra-elegantes» contra a bronquite; em
Paris, as senhoras usavam ao pescoço, como amuletos, saquinhos cheios de
cânfora, de cores bizarras; muitos médicos ingleses acreditavam que o tabaco
tinha virtualidades germicidas e, por isso, não só o consumo de cigarros foi
permitido pela primeira vez nas fábricas de armamento como na Austrália muitos
médicos realizavam as autópsias dos mortos pela pneumónica envolvidos numa
atmosfera impregnada de tabaco de cachimbo; por conselho médico, um industrial
holandês tornou obrigatório o consumo de tabaco para os seus trabalhadores;
quanto a bebidas alcoólicas, as opiniões divergiam, mas logo muitos se
aproveitaram da redução do preço do brandy
medicinal para passarem a consumi-lo em abundância; outros clínicos
recomendavam o quinino e a estricnina, que alguns colegas consideravam
perfeitamente inúteis.
Houve, como é
evidente, tentativas de aproveitamento e muitos enriqueceram à custa da
pneumónica, desde autores de obras que ensinavam a evitar o contágio (o livro «A Gripe Espanhola e Como Curá-la», de
Henrik Berg, vendeu só na Suécia 20.000 cópias logo nos primeiros tempos de
lançamento), passando por empresas que publicitavam cursos de estenografia para
os que estavam confinados às suas casas, até médicos que cobravam consultas a
preços exorbitantes,
para não falar dos que se aproveitaram das máscaras de gaze para assaltarem
bancos e estabelecimentos comerciais ou, como ocorreu com um grupo de raparigas
em Calgary, para se fazerem passar por profissionais de saúde e assim exigirem
os seus honorários. Em muitos casos, farmacêuticos venderam medicamentos
adulterados.
Na cidade de
São Francisco, nos Estados Unidos, acreditava-se piamente no poder profilático
das máscaras de gaze,
tendo a Cruz Vermelha vendido mais de 100.000 máscaras, fabricadas pela Levi
Strauss and Company. No dia do armístico, as ruas da cidade californiana
encheram-se de cerca de 30.000 cidadãos que, com máscaras nos rostos,
celebravam a vitória militar em desfiles e bailes. Nos jornais, o Presidente da
Câmara, o Departamento de Saúde, a Cruz Vermelha e a Câmara de Comércio
publicavam avisos dizendo «Use uma máscara e salve a sua vida!» ou «Uma máscara
de gaze é 90% eficaz no combate à gripe».
Quem não usasse a máscara salvadora, advertiam os jornais, iria ser ostracizado. A polícia
fez centenas de detenções de cidadãos que percorriam as ruas de cara
descoberta, correndo o risco de pagarem uma multa de cinco dólares ou mesmo de
serem encarcerados.
Mas, quando chegou a segunda vaga epidémica, já quase ninguém levava consigo a sua
máscara de protecção.
Por outro
lado, a epidemia vinha pôr em causa os próprios fundamentos de transformação da
sociedade e as promessas de um futuro radioso construído à luz da razão e da
ciência que constituíam o património cultural do republicanismo. Não era por
acaso que A Capital escreveu, nessa
altura, que se estava perante uma «epidemia que zomba da medicina» e
que ainda hoje os historiadores afirmem que «a medicina, perplexa, mostrou uma
impotência total». Na
altura, com efeito, as deficiências de diagnóstico faziam, por exemplo, com que
40% dos óbitos ocorridos em 1920 hajam sido atribuídos a «doenças ignoradas ou
mal conhecida». A
medicina mostrava os seus limites. Por isso já se observou, e com razão, que o
fenómeno da gripe pneumónica é tocado por uma contradição fundamental, «ocorre
numa sociedade com maiores ambições políticas e civilizacionais, mas muito
arcaica em termos estruturais»; «para os princípios civilizacionais de que a
sociedade burguesa republicana se reclamava, a epidemia não podia deixar de
repugnar». A religião veio ocupar
o espaço deixado vazio por este súbito e dramático recuo da ciência, não sendo
por acaso que os habitantes de algumas aldeias piscatórias espanholas viam na
origem da doença a mão de Deus.
A este
respeito, além de lembrar, entre tantas outras iniciativas, as comissões
diocesanas de apoio às vítimas de epidemia, criadas em Portalegre em 1918 por
D. Manuel Mendes da Conceição Santos,
poderá invocar-se a personalidade do sacerdote Pereira dos Reis.
Sintomaticamente, Pereira dos Reis ofereceu-se como capelão militar na Grande
Guerra, mas ao que tudo indicia os seus superiores não o deixaram partir, o que
lhe causou grande mágoa. Nomeado pároco da freguesia de Nossa Senhora dos Anjos,
em Maio de 1917, um tempo em que por todo o País, e em especial na cidade de
Lisboa, grassava a epidemia da pneumónica. Pereira dos Reis destaca-se na
assistência aos doentes, entre os quais Jacinta Marto, a vidente de Fátima que
acabaria por falecer no Hospital de Dona Estefânia.
Essa acção traz-lhe um prestígio que invade até os círculos anticlericais, como
recorda Marcello Caetano, uma personalidade cuja formação foi fortemente
marcada por Pereira dos Reis:
«Pereira dos Reis deu então um extraordinário exemplo. Explicando-nos que
nada havia pior para contrair uma doença epidémica do que o medo, exortou-nos a
não faltar à caridade devida aos doentes. Precauções, as elementares: abolido o
aperto de mão, lavagem frequente das mãos com sabão azul e branco... Ei-lo a
percorrer os bairros mais pobres, a visitar famílias necessitadas, quer o
chamassem, quer não, para lhes dizer
a palavra de ânimo e lhes levar o socorro possível. Muita gente afastada da prática religiosa pediu ao visitante os
sacramentos. Acompanhei-o bastantes vezes, fui com ele levar muitos
viáticos. Não tivemos a pneumónica... Mas
quando a epidemia passou, o novo Prior dos Anjos tinha ganho nos meios mais
hostis da sua paróquia (onde, no Largo do Intendente, tinham a sua sede a Liga
do Registo Civil e a Associação do Livre Pensamento) uma atmosfera geral de
respeito, admiração e gratidão».
Um
estudo sobre os efeitos da pneumónica no Algarve – que, note-se, foi uma região
que muito beneficiou economicamente com a Grande Guerra –
salienta o papel da Igreja na assistência às vítimas da doença: «a Igreja
Católica teve uma acção importante, sobretudo em zonas rurais e isoladas onde
as dificuldades de assistência médica eram maiores. A transmissão de conselhos
e de informações profiláticas era feita por párocos nas missas e as visitas
domiciliárias realizadas por estes eram, por vezes, o único contacto dos
doentes com o exterior. O mesmo sucedeu, aliás, nas zonas rurais espanholas: só
em Palencia, morreriam doze párocos por causa da pandemia gripal. Umas
quadras da época evocam essa situação: «Del año de 1918 quedará/memoria en toda
España/que nunca se olvidará. // Han muerto curas y frailes,/médicos y
boticarios./Han muerto muchas personas/que estaban en buen estado.».
Em algumas
situações, cabia à Igreja a promoção de obras de caridade para auxílio das
famílias vítimas da gripe pneumónica. Dada a dimensão internacional da
epidemia, até o próprio Vaticano sentia que tinha que participar na cruzada
contra a doença.
Tratava-se, de resto, de uma realidade que remontava, pelo menos, ao início do
século XIX, quando os padres foram frequentemente convocados para darem a sua
colaboração às autoridades sanitárias no combate às epidemias. O
Papa ordena a todos os sacerdotes que realizem preces e orações nas igrejas em
busca de auxílio divino; e se em Espanha os párocos locais tiveram muitas vezes
de fazer de médicos, assistindo clinicamente os doentes, e de realizar enterros,
entre nós verifica-se, por exemplo, que algumas dioceses, como a de Faro,
apoiaram a acção de associações caritativas de senhoras. No final de Outubro de
1918, o bispo do Algarve enviava uma circular aos párocos da região para que
estes prestassem todo o apoio possível aos paroquianos, apelando às orações, à
penitência e à caridade. «Alguns párocos envolveram-se nas campanhas de
assistência aos doentes, quer em ligação com as associações locais de caridade,
quer através de visitas domiciliárias. Por vezes, o contacto com os doentes
facilitava o contágio da doença e alguns párocos ficavam doentes, ocorrendo em
algumas situações a morte. Sendo, muitas vezes, o último recurso dos doentes, o
sacrifício de alguns padres não pode deixar de ser realçado na sua missão de
acompanhamento espiritual e assistencial durante os meses em que a gripe
pneumónica assolou o distrito de Faro» - diz o investigador Paulo Girão. O
mesmo autor refere que, na região do Algarve, à semelhança do que ocorreu um
pouco por toda a parte, ocorreu uma redescoberta do sobrenatural e do
religioso.
«Face às dificuldades de actuação médica e perante a incerteza do futuro
próximo, muitas pessoas, amedrontadas e desesperadas, viraram-se para a
religião, afinal, como tantas vezes acontece em situações semelhantes. A
Igreja, nestes tempos conturbados, ganhava fiéis. Apelos à penitência, à oração
e à prática da caridade multiplicavam-se».
Um
exemplo curioso encontra-se na edição de 1 de Dezembro de 1918 do periódico de
Silves Ecos do Além, de carácter
espiritualista, que clamava: «Convulsionados por esta grande devastação
epidémica, quntas almas afastadas de Deus não se acolheram à sua protecção?
Quantos blasfemadores do poder do céu não imploraram fervorosamente o auxílio
do grande poder? Quantas almas, há tanto transviadas pelas ilusões mundanas, não
acharam salvação naquela espécie de morte? Quantas?».
Os
sinos, uma vez mais, marcariam presença neste tempo de crise. De tal forma que
as autoridades administrativas algarvias aconselharam a que não se tocassem os
sinos das igrejas enquanto durasse a epidemia, para não recordar às pessoas o
falecimento dos seus entes queridos e para afastar a ideia de que a morte se
encontrava presente a qualquer momento. O
mesmo ocorreu em Itália (provavelmente, o país europeu com maior taxa de
mortalidade, a seguir à Rússia), onde foram oficialmente proscritos os toques
dos sinos, os cortejos fúnebres, os velórios e até a publicação de obituários
nos jornais (o que, de resto, ocorreu igualmente na Suíça).
Silenciar os sinos – algo que também foi feito em França, Espanha e Holanda –
era, numa ocasião como esta, uma medida elementar de profilaxia social, que
noutras paragens e noutros tempos também havia sido tomada: em 1832, no pico de
uma epidemia de cólera declarada em França, o prefeito de Bettancourt decidiu
proibir o toque do grande sino da igreja, bem como do carrilhão, seguindo
exemplos de outros oficiais públicos que no passado vedaram o ruído dos sinos
com o fundamento de que existia uma correlação entre a saúde física e a
fortaleza moral, e que, por isso, ambas seriam afectadas se a presença da morte
fosse recordada a toda a hora por incessantes dobres de finados.
Um
estudo que incide em especial no concelho de Leiria (a cidade-concelho de
Portugal continental mais afectada pela pneumónica, a seguir à Covilhã) nota a
omnipresença da tuberculose, o surgimento em Maio de 1918 de um surto de febre
tifóide, aparecendo as primeiras mortes por pneumónica no início de Junho desse
ano. Os jornais, possivelmente por pressão das autoridades, não dão conta da
situação calamitosa provocada pelaa segunda fase da gripe. Se a imprensa era
silenciada, o mesmo sucedia com os toques dos sinos, algo que, como se disse,
ocorreu também no Algarve. «Deve [...] ser intimado o sineiro dos Marrazes a largar
o sino, para não apavorar mais a população do lugar, assim como não deve
permitir-se o toque de campainha naquela cerimónia e nos enterros que ali se
realizam», escrevia o Jornal de Leiria
na sua edição de 10 de Outubro de 1918. As autoridades sanitárias mostraram-se
incapazes de enfrentar a epidemia, até porque foram falsamente tranquilizadas
pela relativa brandura da primeira vaga. Em todo o distrito existiam apenas
sete médicos, o que dava uma média de um médico para 40.000 habitantes. As
farmácias não conseguiam fornecer os inúmeros fregueses e rapidamente se esgota
o açúcar, substância de importância vital para o fabrico da maioria dos xaropes
prescritos aos epidemiados (a ponto de muitos médicos, como Arantes Borges, se
oporem à terapia indiscriminada à base de soro glicosado, dados os riscos de
desenvolvimento de diabetes açucarada). As organizações que actuavam nas
grandes cidades de Lisboa e do Porto – a Cruz Vermelha, a Cruz Verde, a Cruz
Branca, a Cruz Roxa e a Cruz de Malta – não realizaram missões de relevo em
Leiria. Também aqui as
populações se voltariam para a religião e o sobrenatural, exercendo a Igreja um
papel de extraordinário relevo:
«A Igreja, pela sua própria missão espiritual, desempenharia um trabalho
de grande significado durante a epidemia.
Respondendo ao apelo dos seus fiéis e identificando-se com os anseios e
crenças que marcavam a cultura e a mentalidade do seu tempo e, particularmente,
aquela época de crise, os párocos desdobravam-se em devotas liturgias,
penitências, procissões e missas, suplicando a Deus a sua intercessão para pôr
fim à peste.
Procurando balsamizar o sofrimento da alma e também do corpo dos seus
crentes, a Igreja participou na consciencialização higiénica das populações,
alertando-as para um conjunto de normas sanitárias de grande significado
profiláctico».
No
distrito de Leiria, além de uma grandiosa procissão penitencial que percorreu a
cidade em meados de Novembro, realizaram-se-iam idênticos actos de penitência.
Em Monte Real, onde a epidemia poucas ou nenhumas vítimas havia causado, fez-se
uma procissão de agradecimento com a imagem da padroeira, a Rainha Santa. A
comissão sanitária local integrava o vigário geral, além do governador civil e
do administrador, entre outras notabilidades, como o visconde da Barreira. O
médico César Torres conta que alguns costumes populares, como as visitas
prolongadas aos doentes, foram um dos factores que mais contribuiu para a
difusão da gripe. Os actos de culto externo, sempre muito concorridos, também
disseminaram a doença; César Torres refere que os habitantes da sua aldeia
foram contagiados por se terem dirigido a Vilar de Maçada, uma povoação vizinha
onde a gripe grassava com grande intensidade, para participarem numa festa
religiosa aí realizada em honra do santo advogado da peste.
Noutros locais
do distrito de Leiria, as autoridades civis, sabedoras do ascendente que os
párocos tinham sobre as comunidades, solicitaram-lhes que durante as
celebrações litúrgicas dessem a conhecer aos fiéis um conjunto de medidas
profilácticas e terapêuticas, recomendado-lhes que evitassem entrar em casa de
pessoas doentes, que removessem as estrumeiras e lançassem sobre as fossas
solutos de cal virgem, que tivessem cuidado com as mudanças bruscas de
temperatura e desinfectassem a boca e o nariz; caso isso não fosse suficiente,
os pobres deveriam internar-se imediatamente no hospital. O
surto de religiosidade, ao contrário do que sucedera com anteriores epidemias,
não se materializou, no entanto, num aumento das doações ou legados
testamentários a favor da Igreja. E
esta também sofreu os efeitos da pneumónica, sendo expressiva, a este
propósito, a carta que em Setembro de 1919 o Patruiarca Mendes Belo endereça ao
Núncio Apostólico. A situação vivida no seminário de Santarém ilustrava as
dificuldades que o País atravessava, da gripe à falta de géneros: «julgo
conveniente declarar a Vª Emª Verª que, em consequência da febre epidémica que
grassou neste País no ano de 1918, as aulas do Seminário [de Santarém] só
principiaram a ser frequentadas em meado de Dezembro de 1918, sendo encerradas
no fim de Junho do ano corrente. Tudo ali decorreu com a possível regularidade;
é, porém, muito para lamentar que, por força da carestia enormíssima dos
géneros alimentícios, as contas finais fecharam com um deficit terrível».
António
Araújo