sexta-feira, 17 de abril de 2020

O vírus na imprensa.






Em 15/4/2020, o Observador  publicou o artigo "Visão Factual Epidemiológica: Portugal é um dos países mais perigosos do mundo na Covid-19." (aqui).

 
 O autor apresenta-se com  "cientista...Harvard...Oxford"  e diz gostar de “factos”.  Porém distorce factos, ignora os mais importantes e faz comparações parciais e seletivas entre países, colocando Portugal distorcidamente “mal na fita”.

Não é preciso ser "cientista" para apresentar os dados que ele repassa de incidência de mortos por milhão de habitantes, etc.  Porém até alguns desses dados estão incorretamente apresentados gerando conclusões erradas. Por exemplo, de acordo com os dados do Worldometer (hoje cedo, 17/4), Portugal tem 64 mortes por milhão de habitantes. O autor escreveu que “somos também dos mais letaispaíses por Covid-19 no mundo” o que está errado. Os atuais 64 por milhão de Portugal são muito menos que os de: EUA,  Itália, Espanha, Franca, R.U, Luxemburgo, Bélgica, Suíça, Holanda, Suécia, Irlanda, San Marino, Andorra  e pouco acima da Alemanha (49), Dinamarca (58), Áustria (46) etc. Segundo os dados de 17/4, 17 países têm uma taxa mortalidade por milhão de pessoas superior a Portugal. 

Além disso, esses indicadores baseados na população total são muito menos relevantes do que indicadores da susceptibilidade relativa de morrer de Covid-19 e é aqui onde Portugal está melhor (até agora) do que o autor diz estar. Se analisarmos os dados disponíveis de infetados (testados) e de mortos no Worldometer hoje, 17/4, Portugal está com taxa de mortalidade de 3.4%, abaixo de diversos países da EU: Bélgica (14.3%), R.U. (13.3%), Holanda (11.3%), Roménia (5%), Suíça (4.7%), Dinamarca (4.7%), Polónia (3.9%), Irlanda (3.7%). E alguns abaixo de Portugal não estão longe:  Alemanha (2.96%), Áustria (2.8), Rep. Checa (2.6%).  

As comparações em termos de mortos por milhão levam o autor a conclusões distorcidas, por exemplo, de que “até o Brasil parece estar bastante melhor que Portugal com muito menos mortes por milhão de habitantes” o que não é surpresa e nada quer dizer. O Brasil está hoje com uma mortalidade de 6.5% (mortos entre infetados) comparada com 1.2% em 21/3. Segundo o Jornal Nacional  (TV Globo) de ontem (16/4) à noite já não tinha mais UTIs disponíveis nos estados do Ceará e Rio de Janeiro, enquanto que São Paulo (ainda o epicentro da pandemia) já tinha mais de 70% de UTIs ocupados.  Ou seja, já existe uma alta susceptibilidade de morrer à espera de uma cama com respirador.

Em contraste com o autor desse artigo que critica veículos de informação de artificialmente esconderem a tragédia portuguesa, em 12/4, El País apresentava uma versão bem diferente neste artigo cujo título resume o conteúdo: Como Portugal mantém o coronavírus mais controlado que países europeus mais ricos...Precauções sanitárias, planos de contingência oportunos e união política combatem epidemia melhor que em outros lugares com mais recursos econômicos” - um panorama diverso de fatores que terão tido efeitos positivos em atrasar a ascendência de infetados e mortos em Portugal.

Em 15/3, O Observador publicou um outro artigo alarmista de um “matemático: “A matemática que explica o tsunami europeu e português.  Fez alusão a cenários caóticos em Portugal que, em 30/3, variariam entre 16.395 e 48.110 infetados, sendo o número superior num cenário de situação atual (status quo) e o inferior num cenário de medidas emergenciais como as que já tinham sido assinaladas na França e na Alemanha.   Porém, 17 dias depois de 30/3, os infetados atuais eram 19.022. Ou seja, a modelagem matemática é tão boa quanto os dados utilizados (i.e.: "garbage in, garbage out"). Igualmente as expectativas qualitativas de mortos apresentadas foram muito altas, por se basearem em números antiquados (2012) e projeções de camas de cuidados intensivos (UTIs/CTIs) e por desconsiderarem os imprevisíveis efeitos de ações emergenciais de contenção adotadas pelo Governo, inciativas hospitalares, aspectos qualitativos dos órgãos e profissionais de saúde, etc. 


Diversas vezes li artigos no Observador que me sugerem que qualquer free lancer ocioso consegue publicar nesse jornal desde que escreva más notícias (mesmo que parciais ou erradas) sobre Portugal, seu Governo, suas instituições, seu ranking nisso ou naquilo na UE, no mundo, etc. Pergunto-me qual a razão por que um "cientista" ou um “matemático” escreveria artigos no Observador com dados e conclusões parciais ou incoerentes ou por que razão o Observador os publicaria.

Mas é claro que o Observador não é o único veículo alarmista de mazelas portuguesas!  Em 14/4 uma fulana publicou no Público: ”Portugal está a sair-se bem no travão à covid-19, mas sobretudo por más razões", as quais ela atribuía à velhice das pessoas, sua relativa localização rural remota e baixa escolaridade, etc. - argumentos com baixa correlação com a localização de infetados e mortos de Covid-19.

Enfim, parece-me que se quisermos saber boas notícias sobre Covid-19 (e outros assuntos) em Portugal talvez seja melhor procurar nos veículos da Espanha, dos EUA, entre outros!  Más notícias já temos demais; notícias ruins só atrapalham.


 Armand F. Pereira






12 comentários:

  1. Um colunista do Observador é sempre de desconfiar. Já li nesse jornal textos de humoristas que respeitava sobre as Alterações Climáticas que me levam a pensar se a coisa dentro do crânio era mesma cinzenta.

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  2. Convém ler no Observador do dia 16 de abril, o artigo - "Portugal: o país perigoso onde todos querem estar" - do biólogo marinho João Correia.

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  3. Quem, na história, poderia subscrever a frase "notícias ruins só atrapalham"?

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  4. Bom texto. Ao pé dos riscos criados pela deficiente cultura cientifica e pela falta de espirito critico, o coronavirus é uma ninharia.

    Em resposta ao ultimo comentario acima, que se limita a ler a palavra "ruim" num dos seus sentidos, sugiro que o autor do texto emende para "noticias falaciosas so atrapalham", que me parece mais proximo do que ele quis dizer.


    Boas

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  5. Agora "endoutrinamo-nos" em ciência?
    A ciência é um reduto a não discutir? Se é assim, não é ciência!
    Ou é uma ciência muito "feyerabendiana"?

    Quem classifica algo como "noticias falaciosas só atrapalham"?
    Alguém que detém a verdade? Quem?

    Viva a liberdade! Só com ela alguém produz, segundos uns, ruindade e, segundo outros, como neste post, se produz contestação.

    A defesa do silenciamento ou a adjectivação escarnecente só cultiva o pensamento único... e isso é que é o risco maior que emerge destas pestes!

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  6. Pois, meu caro Renato P M Ribeiro, quer-me parecer que v. ilustra muito bem, neste seu ultimo comentario, o que é uma "falacia".

    Quem detém a "verdade" ? Pergunta. Todos nos, e qualquer um de nos, desde que se prontifique a examinar a realidade com rigor e com sentido critico, aceitando submeter a percepção que se tem dela ao crivo da razão. Por muito que lhe custe a acreditar, isto chega e sobra para distinguir a ciência do disparate, e tem dado provas. Por exemplo, com este singelo principio, o homem ja conseguiu ir até à lua e vir, o que não me parece nada mau.

    Não pretendo com isto calar ninguém, nem negar a liberdade de expressão, que também deve aproveitar aos idiotas.

    Apenas digo que existem alturas em que é importante distinguir a tolice da informação rigorosa e que, para tal, é util não confundir ciência com capacidade de alardear consoante o que passa pela real gana de qualquer um.

    Repare o meu amigo que, se a liberdade de discutir é, de facto, uma condição sine qua non para haver ciência, não colocar todas as opiniões e vaticinios no mesmo plano, e admitir que ha que hierarquizar as asneiras de acrordo com o seu grau de estulticia, é outra, não menos indispensavel.

    Julgo que se fara jus ao texto comentado dizendo que ele apenas procurou lembrar este tipo de considerações, que me parecem de bom senso.

    Boas

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  7. João Viegas, nem discordo em muito de si. Acrescentaria, como ponto final, que o exame da "realidade com rigor e com sentido critico, aceitando submeter a percepção que se tem dela ao crivo da razão" não é algo de imediato. A história da ciência está pejada disso. Até cria percepções que, ulteriormente, são ostracizadas em nome de outras...

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  8. E com prazer que concordo com o seu ponto final.

    Felicidades

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  9. Este comentário foi removido pelo autor.

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  10. Sem comentar ou interferir em diálogos dos comentaristas, parece-me oportuno acrescentar aqui a razão por que escrevi esse texto e por que o finalizei com a frase "...notícias ruins [ou melhor 'falaciosas'] só atrapalham!" Quando li os dois artigos do Observador com dados errados e projeções tão exageradas, e li o artigo do Público alegando que "Portugal está a sair-se bem..., mas sobretudo por más razões", fiquei a imaginar como se sentiriam os profissionais da saúde se lessem esses artigos – essa gente que, por boas razões, trabalham horas a fio com alto grau de dedicação e arriscam a vida para salvar a vida dos outros e que agora precisam de suporte material e moral para continuarem a trabalhar bem. Artigos ruins atrapalham, sim. Nas democracias, a liberdade de imprensa é essencial, mas é bem melhor que essa liberdade seja mais aproveitada para esclarecer e ajudar e menos para confundir e atrapalhar. Armand F. Pereira

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  11. "notícias ruins só atrapalham". SÓ PODE SER DE ESQUERDA QUEM DIZ ESTA ENORMIDADE

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  12. O seu post reproduzido neste blogue recentemente descoberto por mim e de que sou declaradamente fã enferma desde logo do pecado de confundir um artigo de opinião com uma notícia, a qual procura, com o distanciamento que lhe é pedido, cruzar opiniões de vários especialistas de diferentes disciplinas. Questionar a falta de crivo na publicação de artigos de opinião (que vinculam quem escreve, podendo-se, todavia,discutir o papel do jornal enquanto veículo) será exercício salutar; recusar a pertinência devidamente argumentada da visão de vários especialistas porque isso pode questionar a actuação do país no combate ao avanço do vírus é simplesmente tolo, dado saber-se que o isolamento a que estão de há décadas votados muitos dos habitantes das zonas do interior do país é, nesta pandemia, factor de protecção. E, sim, jornalismo - não confundir com opinião - também implica questionar verdades hegemónicas.
    A fulana

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