domingo, 10 de maio de 2020

O homem de papel.





Qual é coisa, qual é ela, que antes de ser já o era?

“Pescada” não serve de resposta por hoje. A espécie da presente adivinha foi repescada, isso sim, sob diferentes nomes em épocas e geografias variadas, além de ter inspirado celebridades ficcionais da literatura ao teatro. Mas o habitat original do seu primeiro ciclo de vida, a Rússia dos Czares irascíveis, não seria o mais propício a reinações no reino.

Ao contrário daquele outro homem sem qualidades, esta é a história de um homem que consabidamente não existe, jamais existiu, e que, não existindo, ganha todas as qualidades e mais alguma ao longo de um percurso fulgurante, até a existência que nunca teve ser dada por terminada em grandiosas exéquias nacionais, com honras de Estado.

Tudo começa com um cabeça-no-ar de um administrativo no regimento a enganar-se na transcrição de um nome que constava na ordem de serviço. Da confusão nasce o Tenente Kijé. Poruchik Kizhe, em russo transliterado —  para não me ensarilhar em cirílico e gerar mais um tenente no processo.

Quando se deu por ela, já o novelo ia enrolado. A entidade assim nascida, qual Golem de papel, ganhara entretanto densidade burocrática. Ninguém se atreve então a desfazer o equívoco, com receio de uma hecatombe. De caminho, aproveita-se para endossar ao personagem umas quaisquer culpas que não podem morrer solteiras.

Ao alombar com tudo sem nunca se lhe ouvir um queixume, sem fazer ondas nem nada reclamar para si, o discreto e abnegado tenente passa por militar modelo e vai ascendendo a capitão, a coronel, e por aí acima de patins até o Czar o nomear general e o cobrir de mordomias. Pouco depois de comunicar à sua entourage o desejo de conhecê-lo, o soberano é informado de uma tristíssima coincidência. Kijé, afinal, acabara de morrer de doença súbita. Não resta pois ao Czar senão lamentar, pesaroso, serem sempre os melhores que se vão. 

Passo por cima de um sem número de peripécias ilustrativas da mistura de zelo burocrático com terror autocrático, incluindo uma escolta inteiramente guarnecida para conduzir o tenente fantasma à Sibéria. Consta haver ingredientes verídicos na historieta, mas se há sátiras que emulam a realidade ou ficam mesmo aquém dela são as que versam sobre burocracia e seus infinitos absurdos.

Em todo o caso, foi nesse enredo que se baseou Yury Tynyanov para um romance que publica em 1928, do qual nascerá poucos anos depois um filme com música expressamente composta por Sergei Prokofiev. É com ela e com o Tenente Kijé que o cinema sonoro dá os primeiros passos na União Soviética.

É também por via dela que Prokofiev, então expatriado em Paris, se reaproxima do país que considerara a sua música demasiado vanguardista. Começara por recusar o convite, mas o enredo do filme acaba por apelar ao seu próprio humor cáustico. Compõe assim uma suite sinfónica com 5 andamentos que pretendeu – disse – melodiosa, simples e compreensível sem ser repetitiva e trivial. A simplicidade que buscava, precisou, “não deveria ser uma simplicidade antiquada, mas uma simplicidade nova”. A produção, essa, descreveu-a como diabólica.

Temas da Suite do Tenente Kijé seriam glosados mais tarde em filmes, concertos e canções, em especial em torno da Guerra Fria ou das suas arrepiantes lógicas. Uma das mais conhecidas é Russians, de Sting, que em 1985 retoma o tema do segundo andamento (Romance) no álbum The Dream of the Blue Turtles. “We share the same biology” tornou-se uma das suas linhas mais trauteadas.

Em par, o original e a glosa:

- Lieutenant Kije Symphonic Suite, Op. 60: II. Romance, de Sergei Prokofiev, pela Chicago Symphony Orchestra, conduzida por Claudio Abbado.



-Russians, de Sting.




Manuela Ivone Cunha







2 comentários:

  1. Episódios saborosos. Lembro só que na Rússia, a partir de oitocentos, as sátiras sobre a burocracia alcandoraram-se quase a género literário - e tiveram em Gogol o expoente máximo (lembra-te de «O Nariz», que depois serviu a ópera de Shoshtakovich). O jovem bolchevismo rentabiliza essa tradição na sua crítica e esconjuro do passado; como no estalinismo o humor não dava saúde, o tema só ressurgiria nos anos cinzentos de Brejnev, qual Petrushka a assombrar o regime. Águas passadas? Nem por isso: lembrei-me desta história bem recente (2018), https://www.bbc.com/news/blogs-news-from-elsewhere-45627783 : um cartaz teatral a anunciar «O Inspetor Geral» de Gogol (a obra-prima do género) bastou para acirrar os maus fígados da administração regional putinista...

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  2. Estive quase para meter O Nariz nisto. Ainda bem que foi para aqui chamado, com toda a propriedade.

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