Qual
é coisa, qual é ela, que antes de ser já o era?
“Pescada”
não serve de resposta por hoje. A espécie da presente adivinha foi repescada, isso
sim, sob diferentes nomes em épocas e geografias variadas, além de ter inspirado
celebridades ficcionais da literatura ao teatro. Mas o habitat original do seu primeiro ciclo de vida, a Rússia dos Czares
irascíveis, não seria o mais propício a reinações no reino.
Ao
contrário daquele outro homem sem qualidades, esta é a história de um homem que
consabidamente não existe, jamais existiu, e que, não existindo, ganha todas as
qualidades e mais alguma ao longo de um percurso fulgurante, até a existência
que nunca teve ser dada por terminada em grandiosas exéquias nacionais, com
honras de Estado.
Tudo
começa com um cabeça-no-ar de um administrativo no regimento a enganar-se na transcrição
de um nome que constava na ordem de serviço. Da confusão nasce o Tenente Kijé. Poruchik Kizhe, em russo transliterado
— para não me ensarilhar em cirílico e gerar
mais um tenente no processo.
Quando
se deu por ela, já o novelo ia enrolado. A entidade assim nascida, qual Golem
de papel, ganhara entretanto densidade burocrática. Ninguém se atreve então a
desfazer o equívoco, com receio de uma hecatombe. De caminho, aproveita-se para
endossar ao personagem umas quaisquer culpas que não podem morrer solteiras.
Ao alombar
com tudo sem nunca se lhe ouvir um queixume, sem fazer ondas nem nada reclamar
para si, o discreto e abnegado tenente passa por militar modelo e vai
ascendendo a capitão, a coronel, e por aí acima de patins até o Czar o nomear
general e o cobrir de mordomias. Pouco depois de comunicar à sua entourage o desejo de conhecê-lo, o
soberano é informado de uma tristíssima coincidência. Kijé, afinal, acabara de
morrer de doença súbita. Não resta pois ao Czar senão lamentar, pesaroso, serem
sempre os melhores que se vão.
Passo
por cima de um sem número de peripécias ilustrativas da mistura de zelo
burocrático com terror autocrático, incluindo uma escolta inteiramente
guarnecida para conduzir o tenente fantasma à Sibéria. Consta haver ingredientes
verídicos na historieta, mas se há sátiras que emulam a realidade ou ficam mesmo
aquém dela são as que versam sobre burocracia e seus infinitos absurdos.
Em
todo o caso, foi nesse enredo que se baseou Yury Tynyanov para um romance que publica
em 1928, do qual nascerá poucos anos depois um filme com música expressamente composta
por Sergei Prokofiev. É com ela e com o Tenente
Kijé que o cinema sonoro dá os primeiros passos na União Soviética.
É
também por via dela que Prokofiev, então expatriado em Paris, se reaproxima do
país que considerara a sua música demasiado vanguardista. Começara por recusar
o convite, mas o enredo do filme acaba por apelar ao seu próprio humor
cáustico. Compõe assim uma suite sinfónica com 5 andamentos que pretendeu –
disse – melodiosa, simples e compreensível sem ser repetitiva e trivial. A
simplicidade que buscava, precisou, “não deveria ser uma simplicidade antiquada,
mas uma simplicidade nova”. A produção, essa, descreveu-a como diabólica.
Temas
da Suite do Tenente Kijé seriam glosados mais tarde em filmes, concertos e
canções, em especial em torno da Guerra Fria ou das suas arrepiantes lógicas.
Uma das mais conhecidas é Russians,
de Sting, que em 1985 retoma o tema do segundo andamento (Romance) no álbum The Dream of the Blue Turtles. “We share
the same biology” tornou-se uma das suas linhas mais trauteadas.
Em
par, o original e a glosa:
- Lieutenant
Kije Symphonic Suite, Op. 60: II.
Romance, de Sergei
Prokofiev, pela Chicago Symphony Orchestra, conduzida por Claudio Abbado.
-Russians, de Sting.
Manuela
Ivone Cunha
Episódios saborosos. Lembro só que na Rússia, a partir de oitocentos, as sátiras sobre a burocracia alcandoraram-se quase a género literário - e tiveram em Gogol o expoente máximo (lembra-te de «O Nariz», que depois serviu a ópera de Shoshtakovich). O jovem bolchevismo rentabiliza essa tradição na sua crítica e esconjuro do passado; como no estalinismo o humor não dava saúde, o tema só ressurgiria nos anos cinzentos de Brejnev, qual Petrushka a assombrar o regime. Águas passadas? Nem por isso: lembrei-me desta história bem recente (2018), https://www.bbc.com/news/blogs-news-from-elsewhere-45627783 : um cartaz teatral a anunciar «O Inspetor Geral» de Gogol (a obra-prima do género) bastou para acirrar os maus fígados da administração regional putinista...
ResponderEliminarEstive quase para meter O Nariz nisto. Ainda bem que foi para aqui chamado, com toda a propriedade.
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