Acabei de ler a biografia de José
Cardoso Pires escrita pelo Bruno Vieira Amaral (BVA) e depois li esta recensão
de Luís Miguel Rosa (LMR). Sou amigo e admirador do Bruno há muitos anos e não
conheço Luís Miguel Rosa (que, diga-se, me parece culto, lido e informado), mas
parece-me que eu e ele não lemos o mesmo livro. Eu li Integrado Marginal, ele leu Marginal
Integrado e o facto de se enganar no título do livro (e de repetir o erro
vezes sem conta, ao longo da sua extensa recensão) talvez diga alguma coisa
sobre o rigor com que a obra foi analisada ou, melhor dito, sobre o preconceito
persecutório que anima o escrito de Luís Miguel Rosa da primeira à última
linha.
Numa obra desta dimensão, com quase 600 páginas,
haverá sempre lapsos e omissões e, se nos pusermos a esquadrinhar à lupa, falta
sempre, mas sempre, alguma coisa (dois exemplos: ao falar do Congresso para a
Liberdade da Cultura, de Pierre Emmanuel, BVA poderia falar das ligações à CIA
daquela organização, objecto de um fascinante livro de Frances Stonor Saunders,
com tradução espanhola – La CÍA y la guerra fría cultural –
ou, ao aludir ao general Matthew Ridgway, poderia mencionar que a sua visita a
França motivou um enorme protesto em Paris em 1952, «Ridgway, la peste!», com a
prisão do dirigente comunista Jacques Duclos, o que era importante para situar
o movimento pela paz onde andaram muitos intelectuais portugueses: mas coisas
destas fariam sentido numa biografia de Cardoso Pires? Não, é óbvio). Em todo o
caso, e não sendo eu especialista, parece-me que os lapsos apontados ao livro
de BVA, admitindo que têm razão de ser, não são suficientes – de modo algum! –
para descartamos uma obra desta envergadura, fruto de trabalho sério, na qual
até o próprio LMR confessa ter ficado surpreendido com muito do que nela é
revelado. E isso não vale para lhe dar nota mais do que positiva? (é
significativo que, na hora de fazer um balanço global e final, LMR se abstenha de
dizer o que pensa).
O levantamento dos erros, porém, não só não é grave
como é saudável e permitirá a BVA, estou certo disso, corrigi-los em futuras
edições da obra. Grave é o seguinte: o que implícita e até explicitamente
perpassa no texto de LMR é a crítica clássica, habitual e expectável, de que o
biógrafo não soube afastar-se do biografado. Não é verdade, não é
manifestamente verdade. Desde logo, BVA não perde oportunidade, em várias
ocasiões, para alfinetar Cardoso Pires como marido e como pai, daí resultando
um retrato nada favorável, para dizer o mínimo, o retrato de um misógino
egoísta, excessivamente centrado na sua obra e na sua pessoa, alimentada a
whiskies, cigarros e postas de pargo grelhado. Do ponto de vista humano, não é
José, mas Edite, a mulher, quem avulta como personalidade e quem tem a tirada
mais luminosa de todas, num extraordinário depoimento sobre o marido, constante
da página 543. Depois de tudo quanto lemos sobre ele nas páginas anteriores,
das suas frequentes ausências, do machismo reinante, das noitadas de
copos, das viagens a solo, da incapacidade de manifestar afecto pelas
filhas, da tirania de silêncio que impunha em casa quando estava a criar a
sua «obra», as declarações compassivas de Edite ainda se tornam mais notáveis
e, elas sim, reveladoras de uma grandeza que parece ter escapado ao
esposo.
Mais importante do que isso, BVA louva quando acha que
tem de louvar, mas não deixa de criticar os muitos fracassos literários do seu
biografado, de lhe apontar os bloqueios de escrita e os impasses de carreira,
as eternas angústias de quem se sentia ultrapassado por outros na corrida a um
estrelato literário que, à nossa escala, era caricato e risível (como, aliás,
BVA bem mostra). Mas, sobretudo, BVA não deixa de apontar a falta de qualidade
de várias coisas que Cardoso Pires produziu. Neste particular, aliás, um dos
pontos que se pode criticar é até o seguinte: por vezes, aqui e acolá, BVA cede
à tentação de fazer crítica literária dos livros de Cardoso Pires, não se
limitando a situá-los no contexto da biografia do autor; em certos momentos,
procede a uma análise interna das obras, o que talvez não seja muito canónico
num texto biográfico, mas é perfeitamente adequado e compreensível.
Mas, acima de tudo, isto: o retrato de grupo que, no
final do livro, avulta dos escritores daquela geração não é, digamos, famoso. A
Censura e o Estado Novo explicarão alguma coisa, mas não redimem os nossos prosadores de uma tremenda pequenez, pessoal e intelectual, nem os resgatam de viverem
afundados num meio periférico e paroquial, acotovelando-se uns aos outros na
busca de efémera fama e escassa fortuna, na ânsia mesquinha dos prémios e das medalhas, sem
horizontes culturais para além dos que recebiam de uma pátria remediada e
triste (goste-se ou não, basta ler as entrevistas de Michel Houellebecq,
acabadas de publicar entre nós com o título Intervenções, para
percebermos que, mesmo hoje, poucos ou nenhuns escritores portugueses têm
densidade e formação para dar as respostas que ele dá).
Curiosamente, no panteão dos desgraçados escritores do nosso século XX, talvez
sejam os menos obcecados em criar uma «obra» e em ter uma «carreira», como Branquinho
da Fonseca, Alexandre O’Neill ou Luiz Pacheco, os que melhor irão resistir à
usura do tempo. E é essa a questão que fica, a de saber se, salvo uma ou outra
excepção (De Profundis, Valsa Lenta; Lisboa, Livro de Bordo), os livros de
Pires conseguirão sobreviver por muito tempo. É possível, até provável, que
esta excelente biografia de Bruno Vieira Amaral dure mais do que as novelas do
seu biografado. O futuro (e talvez já o presente) tenderá a ver José Cardoso
Pires mais como figura-tipo de escritor uma dada época do que como um ficcionista
merecedor de leitura e admiração.
António Araújo
Acredito que seja uma biografia muito interessante de ler
ResponderEliminar.
Feliz fim-de-semana
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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ResponderEliminarEstou a ler e estou a gostar!
ResponderEliminarO Bruno Vieira Amaral é um grande escritor -eu gosto muito dele-
(só tem um defeito)
Ó Bruno (excelente escritor, li tudo) o defeito é não ser do meu clube...
ResponderEliminarAbraço
Saudações Leoninas
Sev