Consensualmente
considerado como um dos expoentes literários britânicos do século XX, admirado
universalmente pelas suas distopias 1984 e Quinta dos Animais,
pesadelo e sátira em torno das ameaças totalitárias, com quem Orwell conviveu,
tenho para mim que é Homenagem à Catalunha, o seu testemunho como
combatente na Guerra Civil de Espanha, que está a sua escrita mais admirável, a
forma apaixonada como ele se mostra mobilizado para a causa das liberdades. Em Homenagem
à Catalunha, por George Orwell, Livros do Brasil, 2021, teremos seguramente
descrições inultrapassáveis nos medonhos cenários da frente catalã, mas também
a clareza e o rigor com que ele descreve as perseguições ideológicas, mormente
dos comunistas contra os anarquistas, e os frescos espantosos que nos oferece
sobre os militantes internacionalistas que deram a vida em nome dos seus credos
democráticos, a par dos cenários dessa Barcelona militarizada, insegura, mas
sempre cosmopolita, onde se mistura elegância com tiroteios de rua.
Logo a
descrição de um miliciano italiano nos Aquartelamentos Lenine: “A sua boina de
pele em bico estava repuxada agrestemente sobre um dos olhos. Encontrava-se de
perfil para mim, queixo encostado ao peito, olhando com perplexidade um mapa
que um dos oficiais abrira sobre a mesa. Alguma coisa no seu rosto me causou
profunda emoção. Era o rosto de um homem tanto capaz de matar outro homem como
de dar a sua vida por um amigo – o tipo de rosto que se espera encontrar num
anarquista, embora talvez fosse um comunista. Havia nele um misto de candura e
ferocidade; e também a reverência patética que os iletrados alimentam pelos
seus pretensos superiores”. Estamos em dezembro de 1936, o autor situa-se: “Eu
chegara a Espanha com uma vaga intenção de escrever artigos de jornal, mas
alistei-me na milícia quase imediatamente, porque naquela altura e naquela
atmosfera pareceu-me a única coisa a fazer. Os anarquistas continuavam em posse
do controlo virtual da Catalunha e a revolução perseguia em pleno curso”. Ele é
um miliciano entusiasta, pensa que Barcelona é uma cidade controlada pela
classe operária, empolgante descrição que nos dá do ambiente de quartel e da
cidade. E um comboio leva-o para a linha da frente, para Alcubierre, ele e os
companheiros aguardam que lhes deem espingardas, deram-lhe uma Mauser de
1896, segue-se um arremedo de instrução, e avançam para as trincheiras. “Na
guerra de trincheiras cinco coisas são importantes: lenha, comida, tabaco,
velas e o inimigo”. Observa a paisagem, comenta as noites gélidas, a penúria de
meios, a impreparação militar. “O estado das coisas na linha da frente
deixou-me horrorizado. Como seria possível ganhar a guerra com um exército
deste género?”. É minucioso na apreciação que faz das grandes carências, da
questão dos armamentos, dos sobressaltos nas trincheiras, na existência dos
atiradores furtivos que os faziam viver em permanente sobressalto. E as más
notícias, como a queda de Málaga. Assim chega a primavera, ele sempre atento ao
azul do céu mais leve, aos rapazes do campo que saiam com os seus baldes à
procura de caracóis, as noites sem dormir dentro daqueles lamaçais, a tentativa
de surpreender os fascistas em Huesca, à surpresa nem tudo corre bem. Há também
um olhar sobre aquele mundo em ruínas em que nem as igrejas escaparam. Numa
pausa, visita Barcelona, nota que há uma certa hostilidade às milícias, há uma
opinião mais favorável ao Exército Popular, a vida cosmopolita fervilha. E é neste
ambiente que se incendeiam os ânimos, vai começar a caça aos simpatizantes
anarquistas, há barricadas, estoiram bombas, há gente pelos telhados, o alvo é
tomar a central telefónica, o drama da cisão entre as forças da esquerda
instalou-se, as prisões vão-se encher de anarquistas, haverá execuções. É de
novo na frente que George Orwell é ferido na garganta e com gravidade, será
transferido para Tarragona, o médico diz que não vai recuperar a voz, estava
enganado, o escritor não voltará a falar como no passado, mas os sons irão sair
audíveis. Em Barcelona cresce uma atmosfera de suspeita, de incerteza e ódio
velado. O dirigente anarquista será executado. Faltava pão, reduziram-se as
rações de leite e açúcar, grassava o contrabando, instalara-se a intolerância
onde outrora houvera solidariedades. Orwell visita os seus camaradas em prisões
abomináveis, anda a monte, teme ser preso, consegue uma viagem para França com
a mulher, chegara a hora de fazer um relato da sua experiência catalã, não
perpassa na sua narrativa qualquer farronca ou tentativa de notoriedade pela
sua vida de combatente. “Não consigo registar os sentimentos que ficaram dentro
de mim. É toda uma mistura de vistas, cheiros e sons que não pode ser passado a
escrito: os cheiros das trincheiras, as madrugadas nas montanhas estendendo-se
a distância inimagináveis, o crepitar gelado das balas, o estrondo e o clarão
das bombas, a luz clara e fria das manhãs de Barcelona, e o estampido das botas
no pátio do quartel, em dezembro, quando as pessoas acreditavam na revolução; e
as bichas para comprar comida e as bandeiras vermelhas e negras e os rostos dos
milicianos espanhóis; acima de tudo, os rostos dos milicianos – homens que eu
vim a conhecer na linha da frente e que estarão agora espalhados só Deus sabe
onde, alguns mortos em combate, outros estropiados, outros ainda presos. Quando
se teve um vislumbre de um tal desastre – e, seja lá como for que acabe, a
guerra espanhola nunca passará de um terrível desastre, para não falar do
sofrimento físico e da matança -, o resultado não é necessariamente desilusão e
cinismo. Toda esta experiência não me deixou menos convicto da decência do ser
humano; aliás reforçou essa convicção e só espero que o relato que aqui deixo
não seja enganador. É difícil dar a certeza a respeito seja do que for, a não
ser daquilo que vimos com os nossos próprios olhos. Para o caso de não já ter
dito isto antes, digo-o agora: cuidado com o meu partidarismo, as minhas
imprecisões, a distorção que resulta inevitavelmente de se olhar para as coisas
de um ângulo só”.
George
Orwell despede-se do leitor, está já a viver em Inglaterra, e pede-lhe atenção
para dois volumosos apêndices onde narra detalhadamente o lado político da
guerra e os acontecimentos posteriores à perseguição comunista aos anarquistas,
uma sanha ideológica descomunal, reprova o comportamento dos meios de
comunicação social, a começar pela propaganda comunista britânica que
permanentemente criticava os anarquistas dizendo que estavam a soldo dos
fascistas. “A difamação não resolve nada”.
De leitura
imperdível.
Mário Beja
Santos
Só uma correção - a maior parte das perseguições, prisões, execuções, acusações de aliança com o fascismo, etc. descritas no livro não são aos anarquistas, mas ao POUM (comunistas dissidentes), onde Orwell estava integrado (largamente por acaso...)
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