O texto da badana é mesmo aliciante, como a leitura desta
reportagem irá com comprovar: “Viajam quando a cidade dorme. Entram cedo e saem
tarde. Estão em todo o lado, porque é raro o edifício, público ou privado, que
as dispense. São discriminadas, porque são, muitas delas, imigrantes. O que
fazem não produz nada de material, de palpável, de preferência nem um grão de
pó. Aqueles para quem o fazem mal sabem ou reconhecem que elas existem.” E
assim entramos no contacto com as mulheres da limpeza, há mesmo um homem, são
as tais pessoas socialmente invisíveis: As Invisíveis, Histórias sobre o
trabalho de limpeza, por Rita Pereira Carvalho, Fundação Francisco Manuel
dos Santos, 2022. A reportagem é sobre mulheres que limpam, sobre as
dificuldades que passam para gerir um magro orçamento, aspirando a uma vida
familiar com sonhos para os filhos, sobretudo que eles não se levantem de
madrugada, digerindo preconceitos, utentes crónicas de transportes públicos.
“Não se encontrará, provavelmente, um motorista da Carris ou da Vimeca, em
Lisboa, que nunca tenha levado uma empregada de limpeza ao seu trabalho ou
tenha feito com ela o caminho de regresso a casa.” A maioria vem dos subúrbios
da cidade de Lisboa, os dormitórios: Odivelas, Pontinha, Amadora, Buraca ou
Margem Sul. Observa a autora que os esforço de quem limpa aquilo que os outros
sujam vale o ordenado mínimo, ou pouco mais do que isso. Isto em Lisboa, mas
disseminam-se por todo o país. No fundamental é trabalho feminino, é trabalho
que tem diferentes categorias, o destaque vai para quem faz as limpezas de casa
ou toma conta dos filhos dos patrões, segue-se esse farto contingente das
empregadas da limpeza industrial, estas computam-se em cerca de 40 mil, não
superfície que lhes escape: centros comerciais, escritórios, hospitais, bancos,
lojas, aeroportos. Esta chamada invisibilidade não impede o assédio moral e a
violência verbal.
Elissangela é a primeira a entrar em cena, acorda pouco
depois das 4 horas e deita-se aí pelas 22h30 - 23 horas. Apanha o comboio desde
o Cacém até Sete Rios e depois o autocarro até ao Marquês do Pombal. Veio de
Cabo Verde com 12 anos, nunca teve medo de trabalhar nem de acordar quando os
outros dormem. Sente que existe algum desdém de outros, “Acham que quem faz
limpeza não vale nada e não dão valor nenhum”. Uma jovem aluna de mestrado em
Estudos sobre as Mulheres, Sanie dos Santos Reis decidiu analisar a
invisibilidade da mulher negra em Portugal. “E fez um exercício que permitiu
transformar a observação em números. Entre janeiro e março de 2019, fez 64
viagens no autocarro 793, entre Marvila e a estação de Roma-Areeiro. Em 3
meses, viu 2369 mulheres naquele autocarro às 5h30 da manhã. Desse total, 2132
eram negras ou de nacionalidade estrangeira”. A mesma conclusão tirou das
viagens que fez no comboio que liga Sintra a Lisboa. A autora desvela histórias
bizarras, uma delas passada com Carol, uma brasileira que dormia no espaço
quase camuflado de uma igreja evangélica, na Amadora, depois apareceu o SEF a
fazer buscas nas instalações, os pastores da igreja foram constituídos
arguidos. “Carol é uma das 86 158 mulheres que em 2019 trocaram o Brasil por
Portugal. Dos cerca de 40 mil trabalhadores nas empresas industriais, mais de
metade não são portugueses. A mão de obra estrangeira começa a aparecer quando
os salários baixam para o mínimo possível”.
Fala-se das mães mulheres da limpeza e dos seus filhos,
muitos deles acordam de madrugada, acompanham as mães ou vão para as amas. Mas
também não se esconde a existência da solidão. “O trabalho de limpeza é já de
si um trabalho solitário, mas torna-se ainda mais isolado quando, depois da
hora de saída, não há ninguém para ir buscar à escola, ou não está sequer
ninguém em casa para conversar, ou reclamar”. É o caso de Isaura, a quem só
falta encontrar coragem para desistir deste trabalho e voltar à terra onde
nasceu, Vieira do Minho. Isaura tem um horário bastante diferente das outras,
pois sai de casa às 6h30 da tarde e chega às 10h e tal da manhã, começa nos
escritórios da Carris, na Pontinha, e depois na Avenida da República. A idade
também conta, mas nas limpezas são mulheres dos 18 aos 80. “Durante uma das
madrugadas de reportagem, sentaram-se, em momentos diferentes, exatamente no
mesmo banco de uma paragem de autocarro na Pontinha, duas mulheres. Nada de
novo a não ser os 58 que as separavam. Às 5h30 da manhã, Madalena Soeiro
esperava o 724 para rumar a Alcântara. Faltava meia hora para entrar ao serviço
nos escritórios da Administração do Porto de Lisboa. A seu lado está Ana
Isabel, tem 25 anos, é são-tomense, tem uma enorme vontade de estudar, e faz
prodígios para trabalhar e concluir um mestrado em Gestão e Empreendedorismo.
Rita Pereira Carvalho lembra-nos que nem a pandemia deixou as trabalhadoras da limpeza em casa, foram indispensáveis nos hospitais, mas ao que consta foram poucos os que lhes bateram palmas, isto num período em que foram absorvendo-se os cuidados para travar a expansão do vírus, desde os sacos do lixo aos detergentes. Prossegue o desfile destas trabalhadoras, lembra-se o drama das empregadas de limpeza sem contrato, as lutas sindicais (que também passaram por proteger a dignidade destas trabalhadoras nos hospitais), a reportagem não esquece quem trabalha no interior e em pequenas povoações. E assim chegamos a Ismário que trabalha em duas empresas, uma no Marquês de Pombal e outra na Avenida 24 de Julho, limpa vidros, gosta do trabalho que faz, já não é criança e sente-se bem quando regressa ao aconchego familiar. Comenta para a autora: “Nas limpezas há sempre alguém que suja de dia e alguém que tem de limpar à noite”. Uma aliciante história de quem viaja ao fim da noite, passa por invisível nas limpezas industriais e se habituou a limpar o que os outros sujam sem se preocupar muito com agradecimentos. Um belo trabalho, em nome da dignidade destes invisíveis.
Mário Beja Santos
Esta gente, ou melhor dizendo os descendentes desta gente, vão ser os portugueses de amanhã. Tal como os descendentes dos nossos conterrâneos são uma boa parte da população do Luxemburgo, assim será por cá com os descendentes de cabo-verdianos, principalmente.
ResponderEliminarCom melhores condições financeiras obtidas pelas mulheres das limpezas e pelos homens na construção civil, esses emigrantes já não querem viver em barracas, antes procurando casas de aluguer e até compra de andares na periferia de Lisboa.