sexta-feira, 8 de julho de 2022

O pão nosso de cada dia nos deu ontem.

  




 

A sua irmã quase gémea, a Panificadora Panreal, jaz agora sob alcatrão, automóveis e carrinhos de compras, transformada que foi em parque de estacionamento de um grande supermercado. Uma em Chaves (presente do indicativo), a outra em Vila Real (tempo pretérito, como já foi referido; ainda por cima imperfeitíssimo, para nosso grande desgosto), partilharam durante décadas, além da genética transmontana, a condição de gigantes provedores do mais importante alimento da história da humanidade, umbilicalmente ligado à concórdia ou à revolução, à paz ou à guerra, à alegria ou à mais negra miséria, tema de contos, parábolas bíblicas, poemas e frases satíricas extraordinárias – como a sempre actual "panem et circenses" de Juvenal –, companheiro, em resumo, dos últimos dez, vinte, trinta mil anos, quem sabe ao certo?, da caminhada do homem na Terra. Falamos, é claro, do pão nosso de cada dia, neste caso complementado, segundo as vozes populares vila-realenses, com bolos, folares, e até assados de carne, provavelmente domingueiros, preparados nas modestas cozinhas familiares e finalizados por empréstimo naqueles fornos industriais gigantes, num casamento feliz entre grande e pequena escala, entre espírito capitalista e sentido comunitário.





A Panificadora de Chaves e a Panificadora de Vila Real, erguidas respectivamente em 1962 e 1965, são duas obras de um arquitecto especial, competente mas descontente, um homem em que a formação académica era de tal forma ultrapassada pela alma de pintor que chegava a colocar o estirador na vertical, simulando um cavalete que muito irritava os seus professores na Escola de Belas-Artes do Porto. Nadir Afonso, é dele que falamos, sonhava tirar o curso de pintura, e foi com este objectivo que aos 18 anos trocou Chaves, a sua terra natal, pela cidade do Porto. Um ataque súbito de pragmatismo, porém, numa época em que a arquitectura garantia mais prestígio e perspectivas de futuro do que as telas, tintas e pincéis, alterou-lhe a matrícula, dizem alguns que já no momento em que preenchia a candidatura na secretaria da faculdade, eventualmente por aconselhamento do próprio funcionário que o atendeu. O destino, como veremos adiante, acabou por impor o seu caminho, mas não antes de uma notável carreira no problemático estirador com tiques de cavalete.

  



A década de 40 estava a arrancar e fortes ventos de mudança passam pela escola portuense, originários muito provavelmente da Bauhaus de Walter Gropius, mas traduzidos em português pelo inovador e liberal Carlos Ramos, importantíssimo professor daquela instituição e um dos mestres que marcará o percurso do jovem transmontano. Mais longe da influência estatal e das obras públicas que estavam a transformar Lisboa, mais perto da encomenda privada que ia impulsionando a inovação na cidade, o Porto era por esta altura um local interessante para uma mente curiosa. A modernidade, ou o modernismo, termo mais acertado, instala-se no curso de arquitectura e também em outros estudantes de Belas-Artes, originando a criação de grupos artísticos e culturais como o imaginativo “Os Convencidos da Morte”, brincadeira óbvia com os oitocentistas “Vencidos da Vida” de Oliveira Martins e companhia, no qual se integram, além de Nadir Afonso, vários pintores, arquitectos e escultores. Júlio Pomar, Fernando Lanhas e Júlio Resende são alguns dos “convencidos” camaradas do flaviense, que contribuía para o colectivo, como certamente já se adivinha, com trabalhos de pintura e não com projectos de prédios ou de moradias.

Convencido de que encontraria um espaço para a sua arte de eleição numa das mecas do cavalete, parte para Paris ainda antes da prova final do curso de arquitectura, mas as galerias da Cidade Luz, eventualmente demasiado ocupadas com os consagrados, mostram-se pouco receptivas ao seu estilo e obrigam-no a procurar emprego na sua área de formação. No entanto, e comprovando empiricamente a velha máxima de que Deus abre uma janela logo após fechar uma porta, vai parar ao atelier daquele que, independentemente dos méritos ou defeitos, simpatias ou antipatias, é provavelmente o mais importante e influente arquitecto do século XX: Charles-Édouard Jeanneret, ou, como é conhecido pelo mundo inteiro, Le Corbusier. Assim, imitando um pouco a sina de Miguel Ângelo, o toscano que só queria ser escultor e que acaba por ver o seu nome amarrado à Capela Sistina, uma das grandes obras-primas da pintura universal, também Nadir Afonso, que só queria ser pintor, se vê ligado à inovadora Unidade de Habitação de Marselha, edifício essencial e emblemático da arquitectura moderna, uma quase Sistina para qualquer estudante ou teórico da disciplina, muito embora, cromaticamente, não se aventure em demasia para além da paleta das cores primárias.

  



Trabalhar com a vedeta franco-suíça permitiu-lhe, além do privilégio de aturar algumas das suas lendárias crises de mau feitio, conhecer figuras-chaves contemporâneas, como por exemplo Fernand Léger, Picasso ou de Chirico, sendo que o próprio Corbusier, homem sensível a todas as artes visuais, gostava igualmente de pintar, inclusive de rabo à mostra, tal qual veio ao mundo, como se poderá comprovar facilmente através de rápida pesquisa no Google.

  


Entretanto, como se uma janela não fosse suficiente, o todo-poderoso (falo agora, novamente, do Ser Supremo, não de Corbusier) resolve abrir uma segunda, desta vez com ampla e bonita vista sobre o Atlântico Sul. Estamos no ano de 1951 e Nadir Afonso, curioso para comparar o génio (e também o mau génio, ao que parece!) entre os dois hemisférios, inicia uma colaboração com o arquitecto brasileiro Oscar Niemeyer, já nessa altura uma estrela mundial em movimento ascendente. O amor pela pintura, no entanto, resiste a toda esta fartura de oportunidades, e leva-o de volta a Paris numa nova tentativa, novamente falhada, de subsistir economicamente apenas pelo pincel. Teria já perto de 50 anos quando finalmente consegue abandonar a arquitectura, não sem antes, agora a título individual, deixar obra feita em Portugal, nomeadamente as duas panificadoras transmontanas, uma em Chaves e a outra em Vila Real, com que se abriu este texto.

Bem afastados de Lisboa e do Porto, as duas cidades portuguesas com alguma escala e “massa crítica”, mais afastados ainda dos faróis do modernismo com quem Nadir Afonso tinha trabalhado, estes edifícios, arrojados e divergentes das tradições construtivas daquelas terras, devem ter inicialmente chocado as populações locais, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, lhes ofereciam uma esperança de futuro e uma boa dose de optimismo económico e social. Os críticos da especialidade, que nos últimos anos, talvez com algum atraso, se têm vindo a interessar por estas irmanadas fábricas de pão, salientam a forma como a geometria rígida e racional de Corbusier se mistura com a sensualidade brasileira das curvas das coberturas, formadas em larga medida por uma sucessão de abóbadas.

Em defesa dos críticos, salienta-se não existir nesta análise nenhuma desconsideração pelas curvas originárias de Chaves e de Vila Real, certamente tão ou mais sensuais do que as suas congéneres do Rio de Janeiro ou de São Paulo, mas apenas uma referência à importância vital da linha ondulada no desenho de Niemeyer, como se pode ver facilmente, por exemplo, na Igreja de São Francisco de Assis, erguida na Pampulha em 1943. Nadir Afonso, nos seus anos de trabalho no Brasil, apreendeu, como é natural, as lições do arquitecto da curva, ainda para mais sendo este seu patrono e patrão.     

  



As palavras do mestre carioca, de tão conhecidas em todo o mundo, dispensavam reprodução, mas, ainda assim, reproduzam-se, pois são bonitas e úteis à análise:

 

"Não é o ângulo recto que me atrai. Nem a linha recta, dura e inflexível criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual. A curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas nuvens do céu, no corpo da mulher amada, nas coberturas das panificadoras de Vila Real e de Chaves”.

 

Brincadeira, claro! A de Vila Real já nem chão e paredes tem, quanto mais cobertura. E a de Chaves, caso não se tenha cuidado, arrisca um destino semelhante, mera memória de tempos passados soterrada pelo progresso do alcatrão. Aparentemente bem conservada, mas com uma inquietante placa de “VENDE-SE” afixada na fachada, qual será o futuro desta obra de Nadir Afonso na sua própria terra? Curioso seria que numa cidade que investiu, há exactamente meia dúzia de anos, largos milhões de euros num novo museu dedicado ao seu filho dilecto, se assistisse à morte de um edifício interessantíssimo, ainda para mais revelador de um amplo leque de possibilidades de utilização. Talvez o tempo das grandes panificadoras, com produções diárias que atingiam os seis dígitos e que serviam quase em exclusivo vários concelhos, tenha acabado. Mas um imóvel como aquele que está em causa, bonito, amplo, luminoso e arejado, não tem obrigatoriamente de perecer em conjunto com o modelo de negócio que o inspirou.

Num mundo ideal, utópico certamente, em que os diversos interesses em causa, todos legítimos, dos proprietários aos agentes culturais passando pelos poderes públicos, estivessem mais sintonizados, poderíamos até ter, neste momento, o Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso instalado na antiga panificadora projectada pelo próprio Nadir Afonso. Não está em causa a qualidade do novo edifício de Siza Vieira, construído recentemente para esse fim, mas o arquitecto portuense, da mesma forma que acaba de recuperar e adaptar a Casa de Serralves como espaço expositivo da Colecção Miró, também conseguiria, se para isso fosse desafiado, aplicar a sua mestria a uma extraordinária fábrica de pão. Com 1500 m2 de área coberta edificada, a que se soma um terreno livre de sete ou oito ares, não teria sido tarefa impossível alcançar, com algum engenho e arte, os 2700 m2 do volume inaugurado em 2016 nas margens do rio Tâmega.



 


Mas adiante, pois águas passadas (incluindo as do Tâmega) não movem moinhos (incluindo o da Panificadora de Chaves, que ainda lá se encontra, orgulhoso das suas décadas de trabalho em prol dos estômagos flavienses). Haverá tempo para fazer toda esta história, tal como já foi feita – em livros, teses académicas, notícias de jornal, reportagens televisivas, documentários (um deles, o de José Paulo Santos, premiado em festivais de cinema) – a da sua congénere vila-realense. Ainda não sabemos se também lá ocorreram casamentos e baptizados, à semelhança da vertente comunitária identificada na Panreal, ou se os estudantes de Chaves, em fraterna comunhão espiritual com os da UTAD, também lá curaram as suas bebedeiras e ressacas à base de pães quentes e folares cozidos em fornos a lenha, mas tentemos antes, assunto mais urgente, contribuir uma pouco para a garantia do seu futuro.

 


Vestindo ligeiramente a farda de agente imobiliário, avancemos para a identificação dos méritos – ainda actuais e presentes, não apenas antigos e do passado – desta obra que pode ser integrada, utilizando a cronologia da arquitecta e historiadora Ana Tostões, na terceira (e última) fase do movimento moderno em Portugal. É certamente legítimo, e perfeitamente enquadrável na liberdade de apreciação estética, gostar muito ou não gostar nada de edifícios modernistas em geral e da Panificadora de Chaves em particular. Mais difícil, porém, pelo menos se estivermos de boa-fé, é negar que este projecto do início dos anos 60, alavancado por formas geométricas e jogos de cores, exigiu ao seu autor reflexão cuidada sobre a sua funcionalidade e, numa época pré-ASAE e pré-ACT, uma notável atenção à higiene futura dos pãezinhos e ao bem-estar dos operários que os fabricavam. Os mecanismos naturais de ventilação e de controlo da temperatura interior, a forma como a luz do sol, através de uma imensidão de janelas bem colocadas, ilumina cada canto das zonas de trabalho, o conforto transmitido pelas cores e pela generosidade das áreas e medidas, a existência de vestiários, de múltiplos sanitários, de um refeitório, etc., tudo sinaliza cuidado, estudo e humanidade.

 




Sabe-se que Nadir Afonso gostava de pensar e de teorizar, sobre arte, sobre matemática, sobre si próprio, sobre arquitectura – que não considerava uma arte, talvez por ter uma função e utilidade prática, e por ser uma experiência colectiva, com várias condicionantes limitadoras da criatividade, quer na fase de concepção quer na sua existência pública, por vezes inescapável. Não se estranha por isso a cautela e preocupação com os pormenores desta construção, ao contrário da negligência com que encarou, durante grande parte da vida, a promoção pública da sua actividade e carreira.

De feitio reservado, espartano, com tendência para o isolamento, Nadir Afonso concentrou-se mais na criação de uma obra do que na sua divulgação, o que nos deve obrigar agora, para evitar mais desgostos patrimoniais, a tentar equilibrar a balança, vestindo a tal farda de agente imobiliário, ainda que um pouco chato e repetitivo. Que apareça então um bom investidor, público ou privado, nacional ou estrangeiro, desde que iluminado por uma generosa dose de visão e de sensibilidade, para que um edifício com tamanho potencial de adaptabilidade respeitadora não acabe totalmente descaracterizado, ou, hipótese sempre possível, tenha como destino ir ter com a sua irmã de Vila Real ao sítio onde repousam as almas das fábricas mortas.     

 

Sérgio Barreto Costa  






   

Sem comentários:

Enviar um comentário