Para
melhor se entender este romance policial, a segunda obra de John le Carré, a
que se seguirá dos livros mais espantosos da literatura de espionagem, O Espião Que Veio do Frio, há que ter em conta
alguns aspetos curriculares do autor: passou uma boa parte da infância num
colégio interno; estudou nos meios universitário de Berna e Oxford; foi docente
em Eton e mais tarde andou pelo MI5 e MI6, seguramente aqui colheu muitos elementos
para a extraordinária literatura que se seguiu, primeiro a de espionagem e
depois da Guerra Fria a descrição de cenários
desse mundo tumultuoso das ganâncias da indústria farmacêutica, da
lavagem de dinheiro, dos conflitos étnicos, e muito mais. O que sobressai no
seu romance Um Crime de Categoria,
por John le Carré, Publicações Dom Quixote, 2022, é um certo ajuste de contas
com a classe de professores de um meio colegial altamente tradicional,
vergasta, trata de forma demolidora os preconceitos de uma classe social onde
irá ocorrer um crime tenebroso. A abertura do romance é elucidativa: “A
grandeza do Colégio de Carne é consensualmente atribuída a Eduardo VI, cujo
fervor pela educação a história outorga ao duque de Somerset. Contudo, Carne
prefere a respeitabilidade do monarca à discutível política do seu conselheiro,
respaldado pela convicção de que os Grandes Colégios, tal como os reis da
dinastia Tudor são predestinados no Céu (…) Em Carne toda a gente estava
constantemente a carpir: os rapazes mais novos porque tinham de ficar e os mais
velhos porque tinham de partir e os professores porque a respeitabilidade era
mal paga”.
Necessariamente
entramos logo num jantar de má língua dado por alguém que dentro de 6 meses se
aposentará, são comentários depreciativos, afloram sentimentos de classe,
ressentimentos que não se apagam. E passamos para a redação da revista
“Christian Voice”, a diretora acaba de receber uma carta de uma senhora que
pede ajuda, sabe que o marido anda a tentar matá-la. Miss Brimley fica
siderada, pede ajuda ao seu amigo George Smiley, aqui fica o seu primeiro
elemento identificativo: “Dantes achava-o a pessoa mais insignificante que
alguma vez conhecera: baixo e roliço, com uns óculos grosso e cabelo ralo, era
à primeira visto o protótipo de um malsucedido solteirão de meia idade com uma
ocupação sedentária. O seu acanhamento natural na maior parte das questões
práticas refletia-se na indumentária, que era cara inadequada, visto ele ser um
joguete nas mãos do alfaiate, que o explorava”. George Smiley promete ir até
Carne, telefona para o irmão de um camarada de guerra. A senhora que enviara a
carta fora assassinada, jantara mesmo em casa do professor Fielding, que se
iria reformar. Mas Smiley parte para Carne, apurou acontecimento junto do
subchefe da polícia, este mede Smiley de alto a baixo, baixo e atarracado, mal
vestido. O inspetor Rigby não perde oportunidade para dizer o que pensa daquela
gente de Carne: “Há um grande fosso entre a gente da terra e o meio académico,
estes formam a sua própria comunidade”, vêm os pormenores do homicídio, a
vítima terá sido agredida 15 ou 20 vezes com uma moca ou um pedaço de cano, não
houve roubo nem violação. O marido tinha ido a casa de Fielding buscar uma
pasta com exames, deparou-se com aquela tragédia. Aquela conversa bem inglesa
em que se estuda as gentes e os seus antecedentes prossegue entre o agente
policial e Smiley, a investigação promete ser difícil, a arma do crime apareceu
a 6 quilómetros de distância, começa-se a falar numa louca com quem a vítima se
relacionava. E Smiley prossegue a investigação.
Visita
Fielding, impunha-se retratá-lo: “Vestia, em lugar do costumado traje
académico, uma magnífica indumentária constituída por uma grossa toga negra e
peitilho judicial, como um monge de hábito de cerimónia. Naquela noite trazia
uma rosa, e pela sua frescura Smiley deduziu que a tinha colocado nesse preciso
momento”. É Fielding quem desvela o mundo de Carne, o que se ensina, o mundo
das orações, e Fielding despeja o seu rancor: “Carne não é um colégio. É um
sanatório para leprosos intelectuais. Os sintomas principiaram quando viemos da
universidade: uma putrefação gradual das nossas extremidades intelectuais.”
Durante o jantar, Fielding destila veneno, diverte-se a falar das farsas dos cerimoniais,
está presente outro professor, o nome é D’Arcy, indigna-se com muitos dos
comentários de Fielding. No regresso, depara-se com Janie, a tal louca, na
noite do assassinato vira alguém a voar no vento, a atmosfera enigmática
adensa-se, a polícia percebe que é muito difícil incriminar tal mulher, as
provas são mínimas, faltam impressões digitais, o ambiente de crime parece ter
sido avassalado por um tufão. É altura de Smiley ir falar com o viúvo, o
professor Rode. E depois John le Carré avantaja a fotografia do seu personagem
favorito, em toda a sua obra: “Smiley era daqueles solitários que parecem ter
vindo ao mundo já completamente educados aos 18 anos de idade. Obscuridade era
a sua natureza, assim como a sua profissão. As vielas da espionagem não são
povoadas pelos espalhafatosos e coloridos aventureiros da ficção. Um homem que,
como Smiley, tinha vivido e trabalhado durante anos entre os inimigos do seu
país aprende uma única prece: que nunca, por nunca ser, deem por ele”.
Sucedem-se
as entrevistas, ninguém daquele ambiente fechado deixará de ser interpelado por
Smiley. E habilmente le Carré investe em pesquisas que irão conduzir à
descodificação do crime, desde o início que se fala num nome de um jovem,
Perkins, a segunda vítima de assassinato, um saco com roupa de caridade é
procurado por Smiley, avança-se para a solução do crime, naquele saco vinha a
indumentária do criminoso da mulher de Rode. E um tanto à inglesa, assim como
Hercule Poirot convoca todos os possíveis envolvidos num determinado crime,
Smiley recebe para jantar o criminoso, vem as provas do crime, os porquês de
dois assassinatos, avisa que está a chegar o inspetor Rigby, o assassino fica
inteiriçado, histérico, grita que não quer morrer na força, e o final desta
bela obra só podia ter sido pensado e executado por um inglês:
“Smiley viu o carro partir. Não levava pressa; limitou-se a seguir o seu caminho pela rua molhada e desapareceu. Permaneceu ali muito depois de ele se ter ido, a olhar para o fundo da rua, de tal forma que os transeuntes o fitavam com estranheza ou tentavam seguir-lhe o olhar. Mas não havia nada para ver. Apenas a rua meio iluminada e as sombras que por ela iam passando.”
Mário Beja Santos
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