Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo:
O olhar do historiador João Paulo Oliveira e Costa
“Portugal: questão
que eu tenho comigo mesmo”, é verso de poema de Alexandre O’Neill, aqui muito
pertinente, pois trata-se de uma questão que temos todos connosco. No todo ou
na parte, a reflexão sobre Portugal, como ganhou identidade, como se compraz a ser
independente e a ver no seu povo um modo peculiar de se relacionar com os
outros povos, é uma permanente preocupação de intelectuais portugueses,
sobretudo desde o século XIX à atualidade, basta invocar os nomes de Oliveira
Martins, António Sérgio, Agostinho da Silva, Orlando Ribeiro, José Mattoso,
Vitorino Magalhães Godinho, Manuel Antunes, a lista é folgada. Confesso que
este ensaio intitulado Portugal na História, Uma Identidade, de João
Paulo Oliveira e Costa, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2022, é um
exercício de referência, não só dada a largueza do olhar deste investigador com
altíssimos créditos firmados, decidiu escolher uma itinerância global, que ele
classifica como “ensaio historiográfico de geoestratégia”. E diz mais sobre
esta sua reflexão em torno de Portugal, “trata-se de uma obra amoral,
desinteressada de valores e utopias. O que está em causa é perceber porque é
que Portugal existiu como entidade indissolúvel, mesmo quando perdeu a
independência. Uma singularidade excecional como é o facto do país ter a
fronteira terrestre mais antiga do mundo, não será vista como uma proeza de
heróis, será apenas entendida como o resultado de uma sucessão de acidentes,
ainda que estribados no aproveitamento da Geografia, e alimentados por uma
resiliência peculiar da população, e também pelo facto do país vizinho nunca
ter desejado, desde o século XIV, conquistar pedaços do território e ter
aspirado sempre à submissão do todo, como conseguiu momentaneamente entre 1580
e 1640”.
É um ensaio de
arromba, asseguro-vos, caminha para as 600 páginas, irá falar-nos de
permanências (dinâmicas centenárias) e dos ritmos do tempo (sucessão de
conjunturas), algo como aquilo que em História se designa por longa duração é o
retrato da nossa identidade. Vamos ser imersos nas características do
território, a presença de outros povos que nos dão o nosso modo de ser, que
tanto podem ser romanos, nórdicos, semitas, árabe-berberes; e com a construção
de uma língua autónoma, uma vida concelhia muito própria, espraiados entre a
atração europeia e aquilo que constituiu (e constitui) a presença em várias
parcelas do globo, afinal fomos formados a partir de um projeto de reconquista
cristã, firmadas as fronteiras terrestres procurámos o Mediterrâneo,
espiolhámos o Atlântico, viajámos e tivemos pontos de fixação em lugares
remotos do Índico. E houve, nessa aventura dos Descobrimentos uma vanguarda
científica, logo a cartografia quatrocentista, a natureza das embarcações, a
astronomia, a matemática, o sermos pioneiros no estudo da biodiversidade. São,
pois, permanências que se cruzam com aventuras comerciais, o sentido da
missionação, itinerâncias que conjugadamente com os ritmos do tempo, nos dão o
ADN de hoje.
Estes ritmos do tempo
observados pelo investigador têm sempre presente a questão: porque é que
Portugal existe? A resposta é necessariamente um livro aberto, ele procura os
indícios que pronunciam a identidade, fala-nos na A66, a segunda autoestrada
mais longa de Espanha, 810 km a ligar Gijón, nas Astúrias, a Sevilha, na Andaluzia,
bem vistas as coisas, os romanos fugiram aos mais significativos acidentes
orográficos, poderá estar aqui uma chave explicativa de como tivemos a natureza
a nosso favor, ficámos arrumados neste quadrilátero. A nossa identidade emerge
em 868, é o primeiro condado portucalense, o segundo condado culminará com
Afonso Henriques a criar o reino de Portugal, após a batalha de S. Mamede, é um
reino em perigo que será bem-sucedido quando o território se define e se
celebra a paz com os outros reinos da Península, pelo caminho houve o Tratado
de Alcanizes (1297), que configurará o essencial das nossas fronteiras no
continente europeu. Seguir-se-ão as fronteiras marítimas com o processo da
expansão, e o autor dá o pormenor do reinado de D. João I e como se desenvolverá
o projeto henriquino.
E há uma chamada de
atenção, a reter: “As mudanças profundas na natureza do país verificadas no
frenético segundo quartel do século XV não alteram os sentimentos de identidade
coletiva que se vinham afirmando desde o século XII e que se tinham manifestado
estrondosamente na crise de 1383-1385”. Percorre-se a dinastia de Avis até ao
seu colapso, chegamos à Restauração, rememora-se o que ocorreu no império dos
portugueses, com o reconhecimento definitivo da Independência almeja-se a
neutralidade, chegou o tempo das riquezas do Brasil, procura-se dar solidez às
parcelas que restam no império africano e asiático. São dados que o historiador
maneja desde a monarquia até à I República, daí passamos ao Estado Novo e a uma
nova estação, o 25 de Abril. Releva-se a teimosia com que Salazar forjou a
defesa do império, indiferente às críticas da diplomacia mundial, terá havido,
mesmo no início do mandato de Marcelo Caetano a ingenuidade de acreditar num
império perpétuo: “Apesar de enfrentar as críticas de quase todo o mundo,
Portugal obteve sempre os apoios diplomáticos suficientes para não defrontar
uma crítica unânime, ao mesmo tempo que preservou praticamente incólume o
domínio de Angola e Moçambique, ao ponto de projetar e iniciar, em 1970 a
construção de uma barragem gigantesca no rio Zambeze“. E não descarta o nó
górdio, a incompetência do governo, que não soube aceitar uma solução política
para a Guiné.
É ousado nas suas
observações, falando do fortíssimo conflito que separou o PS do PCP, dirá: “O
debate televisivo de 6 de novembro de 1975 foi também uma discussão entre os
defensores da secular presença portuguesa ao sistema político-militar atlântico
e aos seus opositores, agora russófilos. Pela sua original ligação ideológica à
URSS, o PCP, para lá do modelo sociopolítico que adotou, moldou a sua forma de
ver o mundo pelo prisma do anti-imperialismo proclamado pela URSS; como os
acontecimento de 1991 não alteraram a oposição entre Washington e Moscovo, o
partido continuou focado nas críticas à NATO e, por isso, continuou próximo do
discurso geoestratégico de Moscovo, independentemente de o Kremlin ser dominado
pelos sovietes ou por um regime de inspiração czarista/capitalista”. O
historiador dá conta da abertura ao mundo como apanágio do Portugal
democrático, e não se furta a considerações sobre o debate havido quanto à
criação de um museu sobre os Descobrimentos, lembrando que monumentos
classificados pela UNESCO como património mundial em Marrocos, Brasil, Uruguai,
Cabo Verde, Gana, Angola, Moçambique, Tanzânia, Quénia, Bahrain, Índia, Malásia
e China, construídos pelas portugueses, devem tal classificação a candidaturas
apresentadas por estes Estados soberanos que protegem o legado deixado pelos
portugueses. É outra dimensão do Portugal global onde perdura a lusofonia para
além do sentimento da nossa vivência europeia.
Leitura obrigatória. Um sério candidato a prémios científicos, pelo primor da investigação e do peso da reflexão.
Mário Beja Santos
Sem comentários:
Enviar um comentário