quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo.

 



                                                    

     

                                                          Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo:

                                                    O olhar do historiador João Paulo Oliveira e Costa



 

“Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo”, é verso de poema de Alexandre O’Neill, aqui muito pertinente, pois trata-se de uma questão que temos todos connosco. No todo ou na parte, a reflexão sobre Portugal, como ganhou identidade, como se compraz a ser independente e a ver no seu povo um modo peculiar de se relacionar com os outros povos, é uma permanente preocupação de intelectuais portugueses, sobretudo desde o século XIX à atualidade, basta invocar os nomes de Oliveira Martins, António Sérgio, Agostinho da Silva, Orlando Ribeiro, José Mattoso, Vitorino Magalhães Godinho, Manuel Antunes, a lista é folgada. Confesso que este ensaio intitulado Portugal na História, Uma Identidade, de João Paulo Oliveira e Costa, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2022, é um exercício de referência, não só dada a largueza do olhar deste investigador com altíssimos créditos firmados, decidiu escolher uma itinerância global, que ele classifica como “ensaio historiográfico de geoestratégia”. E diz mais sobre esta sua reflexão em torno de Portugal, “trata-se de uma obra amoral, desinteressada de valores e utopias. O que está em causa é perceber porque é que Portugal existiu como entidade indissolúvel, mesmo quando perdeu a independência. Uma singularidade excecional como é o facto do país ter a fronteira terrestre mais antiga do mundo, não será vista como uma proeza de heróis, será apenas entendida como o resultado de uma sucessão de acidentes, ainda que estribados no aproveitamento da Geografia, e alimentados por uma resiliência peculiar da população, e também pelo facto do país vizinho nunca ter desejado, desde o século XIV, conquistar pedaços do território e ter aspirado sempre à submissão do todo, como conseguiu momentaneamente entre 1580 e 1640”.

É um ensaio de arromba, asseguro-vos, caminha para as 600 páginas, irá falar-nos de permanências (dinâmicas centenárias) e dos ritmos do tempo (sucessão de conjunturas), algo como aquilo que em História se designa por longa duração é o retrato da nossa identidade. Vamos ser imersos nas características do território, a presença de outros povos que nos dão o nosso modo de ser, que tanto podem ser romanos, nórdicos, semitas, árabe-berberes; e com a construção de uma língua autónoma, uma vida concelhia muito própria, espraiados entre a atração europeia e aquilo que constituiu (e constitui) a presença em várias parcelas do globo, afinal fomos formados a partir de um projeto de reconquista cristã, firmadas as fronteiras terrestres procurámos o Mediterrâneo, espiolhámos o Atlântico, viajámos e tivemos pontos de fixação em lugares remotos do Índico. E houve, nessa aventura dos Descobrimentos uma vanguarda científica, logo a cartografia quatrocentista, a natureza das embarcações, a astronomia, a matemática, o sermos pioneiros no estudo da biodiversidade. São, pois, permanências que se cruzam com aventuras comerciais, o sentido da missionação, itinerâncias que conjugadamente com os ritmos do tempo, nos dão o ADN de hoje.

Estes ritmos do tempo observados pelo investigador têm sempre presente a questão: porque é que Portugal existe? A resposta é necessariamente um livro aberto, ele procura os indícios que pronunciam a identidade, fala-nos na A66, a segunda autoestrada mais longa de Espanha, 810 km a ligar Gijón, nas Astúrias, a Sevilha, na Andaluzia, bem vistas as coisas, os romanos fugiram aos mais significativos acidentes orográficos, poderá estar aqui uma chave explicativa de como tivemos a natureza a nosso favor, ficámos arrumados neste quadrilátero. A nossa identidade emerge em 868, é o primeiro condado portucalense, o segundo condado culminará com Afonso Henriques a criar o reino de Portugal, após a batalha de S. Mamede, é um reino em perigo que será bem-sucedido quando o território se define e se celebra a paz com os outros reinos da Península, pelo caminho houve o Tratado de Alcanizes (1297), que configurará o essencial das nossas fronteiras no continente europeu. Seguir-se-ão as fronteiras marítimas com o processo da expansão, e o autor dá o pormenor do reinado de D. João I e como se desenvolverá o projeto henriquino.

E há uma chamada de atenção, a reter: “As mudanças profundas na natureza do país verificadas no frenético segundo quartel do século XV não alteram os sentimentos de identidade coletiva que se vinham afirmando desde o século XII e que se tinham manifestado estrondosamente na crise de 1383-1385”. Percorre-se a dinastia de Avis até ao seu colapso, chegamos à Restauração, rememora-se o que ocorreu no império dos portugueses, com o reconhecimento definitivo da Independência almeja-se a neutralidade, chegou o tempo das riquezas do Brasil, procura-se dar solidez às parcelas que restam no império africano e asiático. São dados que o historiador maneja desde a monarquia até à I República, daí passamos ao Estado Novo e a uma nova estação, o 25 de Abril. Releva-se a teimosia com que Salazar forjou a defesa do império, indiferente às críticas da diplomacia mundial, terá havido, mesmo no início do mandato de Marcelo Caetano a ingenuidade de acreditar num império perpétuo: “Apesar de enfrentar as críticas de quase todo o mundo, Portugal obteve sempre os apoios diplomáticos suficientes para não defrontar uma crítica unânime, ao mesmo tempo que preservou praticamente incólume o domínio de Angola e Moçambique, ao ponto de projetar e iniciar, em 1970 a construção de uma barragem gigantesca no rio Zambeze“. E não descarta o nó górdio, a incompetência do governo, que não soube aceitar uma solução política para a Guiné.

É ousado nas suas observações, falando do fortíssimo conflito que separou o PS do PCP, dirá: “O debate televisivo de 6 de novembro de 1975 foi também uma discussão entre os defensores da secular presença portuguesa ao sistema político-militar atlântico e aos seus opositores, agora russófilos. Pela sua original ligação ideológica à URSS, o PCP, para lá do modelo sociopolítico que adotou, moldou a sua forma de ver o mundo pelo prisma do anti-imperialismo proclamado pela URSS; como os acontecimento de 1991 não alteraram a oposição entre Washington e Moscovo, o partido continuou focado nas críticas à NATO e, por isso, continuou próximo do discurso geoestratégico de Moscovo, independentemente de o Kremlin ser dominado pelos sovietes ou por um regime de inspiração czarista/capitalista”. O historiador dá conta da abertura ao mundo como apanágio do Portugal democrático, e não se furta a considerações sobre o debate havido quanto à criação de um museu sobre os Descobrimentos, lembrando que monumentos classificados pela UNESCO como património mundial em Marrocos, Brasil, Uruguai, Cabo Verde, Gana, Angola, Moçambique, Tanzânia, Quénia, Bahrain, Índia, Malásia e China, construídos pelas portugueses, devem tal classificação a candidaturas apresentadas por estes Estados soberanos que protegem o legado deixado pelos portugueses. É outra dimensão do Portugal global onde perdura a lusofonia para além do sentimento da nossa vivência europeia.

Leitura obrigatória. Um sério candidato a prémios científicos, pelo primor da investigação e do peso da reflexão. 



                                                                                    Mário Beja Santos 




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