Fotografias de João Tiago Proença
Por
estes dias, reuniram-se em Atenas sete chefes de Estado para despedir um
cidadão privado.
A
sua morte, aos 82 anos, no seu país natal, mas com passaporte estrangeiro,
motivou um comunicado seco do governo conservador de Atenas, que ficou a
milímetros de saudar a morte de Konstantínos, com uma frieza que muito
provavelmente custará votos a Kyriakos Mitsotakis nas próximas eleições.
Antigo
campeão olímpico, o último rei simultaneamente filho de rei e genro de rei – e
também o último da sua dinastia em resultado dos erros que cometeu – chegou à
sepultura como um cidadão privado e estrangeiro. A decisão de recusar a
Constantino II um funeral de Estado, decidida em reunião do Conselho de
Ministros, levantou tal polémica que Mitsotakis teve de emendar a mão e
permitir honras adicionais ao cidadão privado.
Na
manhã do funeral e durante várias horas, milhares de cidadãos passaram pela pequena
capela ao lado da Catedral Ortodoxa de Atenas, beijando devota e quase
clandestinamente a sua urna, envolta nas cores, mas não na bandeira grega. Nem
na morte Constantino II conseguiu que o seu país ultrapassasse as feridas de um
reinado curto, mas traumático para os gregos e para o rei.
Nascido
em plena Segunda Guerra Mundial, filho dos Príncipes Herdeiros Paulo e
Frederica, Constantino viveu os seus primeiros anos num exílio depauperado,
entre a Pretória e o Cairo, com a mãe e as irmãs Sofia, futura Rainha de
Espanha, e Irene. O fim da Guerra encontrou uma Grécia cada vez mais
republicana e comunista, que resistia ao regresso da Família Real. A manutenção
da Monarquia foi validada em referendo em 1946, o que permitiu o regresso do
impopular Rei Jorge II e do seu irmão, o Príncipe Herdeiro. Jorge II morreria,
sem filhos, no ano seguinte; Paulo sucedeu-lhe como Rei dos Helenos e
Constantino tornou-se herdeiro do trono, diádokhos, aos 6 anos.
A
Grécia era uma peça importante no xadrez internacional e a guerra civil que se
seguiu e terminou em 1949 foi um dos primeiros episódios da Guerra Fria, com insurgentes
comunistas apoiados pela União Soviética e o governo apoiado pelo Reino Unido e
pelos Estados Unidos. A vitória militar das forças governamentais deixou
latentes tensões que iriam perdurar por muitos anos e explicam em parte a
instabilidade que sempre marcou o país, com evidências recentes no consulado de
Tsipras-Varoufakis.
Paralelamente
a estas tensões, Paulo e Frederica criaram uma corte faustosa, onde se sucediam
bailes, cruzeiros e muito raffinement. A Rainha da Grécia encontrava
sempre uma nova ocasião para celebrar e fazia-o com esplendor que trazia para o
Mediterrâneo pompas dignas das cortes no Norte, de onde, aliás, eram
originários os reis gregos. O custo desta pompa haveria de começar a ser visto
como incomportável para um país onde tanta gente passava dificuldades, ao que
Frederica de Hannover sem hesitação poderia ter respondido com a célebre frase atribuída
a D. Maria Pia de Sabóia, Rainha de Portugal: “quem quer rainhas, paga-as”.
A factura foi pesada para ambas.
A
vida pública da Família Real era acompanhada de constante apoio político dos
Estados Unidos da América. Frederica era uma fervorosa anti-comunista e, como
tal, encontrava sempre abertas as portas da Casa Branca. Os comunistas gregos
pagavam na mesma moeda e chamavam-lhe prussiana e nazi. Se dessa acusação a
Rainha se poderia livrar, já da sua tentação de interferir na política grega
será mais difícil defendê-la.
Em
2003 a revista “Socialist Worker”, tentando angariar manifestantes para
a possível visita de George W. Bush a Londres, publicava um artigo (“How
we wrecked tyrants’ visits in the past”) em que recordava com orgulho
os protestos que marcaram a visita
de Estado de Paulo e Frederica a Londres, 40 anos antes. Foi, de facto, uma
visita de raro tumulto em Inglaterra, com o peso que tal acarretava para a
Rainha Isabel II, visto ter o seu marido nascido Príncipe da Grécia e ter uma
relação próxima com os tios, que se iria estender às gerações seguintes. Os
manifestantes reclamavam a libertação de prisioneiros comunistas e insultavam
especialmente Frederica, impassível no seu desfile das melhores jóias, com os
vitupérios habituais.
Três
anos antes, em 1960, o herdeiro do trono, Constantino, conquistara a primeira
medalha olímpica de ouro para a Grécia em quase 50 anos. Este feito colocava-o
numa posição de quase herói nacional, visto que o seu mérito desportivo era
merecedor de especial reconhecimento e de orgulho dos seus compatriotas. Mais
dado ao desporto do que aos estudos, Constantino daria mais uma alegria à mãe
ao abandonar os romances menos ortodoxos e anunciar o noivado com a filha mais
nova do Rei da Dinamarca, Ana Maria.
O
golpe mais duro para Frederica chegou com o diagnóstico de um cancro ao Rei
Paulo. Importaram-se médicos e especialistas para Atenas mas ao fim de uns
meses, a 6 de Março de 1964, o Rei morria com apenas 62 anos, deixando viúva
uma rainha que adorava sê-lo.
Constantino tornou-se Rei dos Helenos aos 23 anos, jurando diante do governo socialista de Georgios Papandreou “em nome da Santíssima Trindade consubstancial e indivisível, proteger a religião dominante dos Helenos, de respeitar a Constituição e as leis da nação helena”.
Premonitoriamente,
a capa da Paris Match que noticiava a morte de Paulo mostrava
Constantino II fazendo continência com o bastão de marechal. A um canto da
capa, mas em primeiro plano, estava Frederica. A influência da Rainha-Mãe, mas
sobretudo o seu exemplo, foram porventura o que de pior podia ter acontecido a
um rei impreparado e ingénuo, num reino que não era para novos.
Seis
meses depois da subida ao trono, o casamento de Constantino
II da Grécia e Ana Maria da Dinamarca tornou Atenas no foco da atenção
mediática do mundo. Foi a última grande união dinástica entre duas casas reais
reinantes, o princípio do fim de um mundo em que o amor podia coincidir com o
dever, mas em que este se sobrepunha. Durante dias sucederam-se bailes,
cortejos, paradas militares, o cintilar ofuscante de diamantes e o desfile de condecorações
de cores garridas, de reis, rainhas, príncipes e princesas rodeados de genuíno
entusiasmo popular, como não mais se veria.
O
grande casamento de Atenas foi a glória final da Rainha Frederica, a última matchmaker
da Europa do século XX. O fim da cerimónia, onde os cânticos e o incenso faziam
recordar o fausto oriental de Constantinopla, viu chegar um momento teatral,
quase patético, em que Frederica fez uma vénia à nora, a nova Rainha, que lhe
devolveu a vénia. Era uma metáfora do que estava para vir. Se apenas Frederica
se tivesse retirado, como a vénia implicava, em vez de interferir…
Os
três anos que se seguiram foram um turbilhão político. E a tentação da
interferência na política, talvez a mais perigosa tentação para os reis
constitucionais, foi a perdição de Constantino. Recusou nomeações de ministros
e forçou a demissão Georgios Papandreou, o socialista que ancorava a
estabilidade. Sucederam-se meses de manifestações contra o rei, com Constantino
a nomear governos que sucessivamente caíam no Parlamento por falta de apoio. Ora,
na Grécia a única dinastia que foi acabou destituída foi mesmo a da Família Real,
sucedendo-se no cargo de primeiro-ministro filhos, netos e sobrinhos de antigos
primeiros-ministros: Constantino haveria de se cruzar com os Papandreou várias
vezes ao longo do resto sua vida.
Para
resolver a crise, Constantino marcou eleições para o fim de Maio de 1967. Não
se chegaram a realizar. Um golpe de Estado, a 21 de Abril, orquestrado pelo
exército com o argumento de que estavam a prevenir o regresso do comunismo,
seria o golpe de misericórdia ao reinado de Constantino. A incapacidade do Rei para
rejeitar de imediato o golpe e se distanciar foram vistas como conivência,
assim como a fotografia em que o Rei surge à frente dos coronéis da Junta
Militar na escadaria do Palácio Real. O habitualmente sorridente Constantino II
acreditou ingenuamente que a sua expressão facial na fotografia, fechada e
dura, seria sinal suficiente do seu desagrado e da rejeição do governo dos
militares. A percepção generalizada foi a contrária.
Este
episódio haveria de inspirar o cunhado de Constantino, Juan Carlos I de
Espanha, a lidar com a tentativa de golpe de 23 de Fevereiro de 1981. A
condenação internacional perante o golpe de Estado caiu também sobre o Rei, de
todos os quadrantes, incluindo a sua família dinamarquesa que deixou claro que
não seria bem-vindo em Copenhaga enquanto a situação perdurasse. Constantino
tentou, sem sucesso, que os Estados Unidos interviessem em seu favor e acabou
por ensaiar um contragolpe em Dezembro, que falhou. Constantino, Ana Maria e os
seus dois filhos, incluindo o recém-nascido herdeiro, partiram para Roma.
A
Grécia é o país que mais vezes referendou a forma de Estado no século XX,
tornando-se numa monarquia sucessivamente validada pelo povo. Constantino II
alimentou por isso e durante muitos anos a ideia de que o seu exílio não era
definitivo, como não havia sido para o seu avô Constantino I, e para o seu tio,
Jorge II, que tinham recuperado o trono depois de o perderem. Formalmente,
aliás, Constantino manteve-se como rei até 1973, quando o seu alegado
envolvimento numa nova tentativa de golpe contra a Junta Militar levou a que
fosse proclamada a república e feito um plebiscito para a legitimar.
Quando
a democracia foi restaurada, em 1974, o inesperado aconteceu novamente. O líder
da direita tradicionalmente monárquica e antigo primeiro-ministro, Konstantinos
Karamanlis, marcou um novo referendo, mas não só não fez campanha pela monarquia,
como se recusou a autorizar que o Rei regressasse para fazer campanha,
permitindo-lhe apenas uma mensagem ao país, a partir de Londres. Constantino
admitiu os seus erros, fez a profissão de fé na democracia e prometeu que a mãe
não se intrometeria na política – os cartazes da propaganda republicana tinham apenas
a fotografia de Frederica e anunciavam: “Vem aí!”. A república teve uma
vitória retumbante com quase 70% dos votos.
Constantino
viveu as suas décadas de exílio expectante, cada vez menos convencido de que
regressaria do exílio para uma pátria que o receberia como o herói olímpico a
quem os pecados seriam perdoados. Permitiram-lhe regressar por um par de horas,
em 1981, para enterrar a mãe, a Rainha Frederica, no cemitério de Tatoi. O
complexo de Tatoi seria, aliás, o pretexto da grande batalha de Constantino contra
o Estado grego.
Em
1992, o Primeiro-Ministro Konstantinos Mitsotakis, sobrinho-neto, primo e pai
de primeiros-ministros, chegou a acordo com Constantino para lhe devolver a
propriedade de Tatoi, que o antigo rei considerava privadas, a troco das terras
no resto da Grécia. Constantino regressou a Atenas no ano seguinte, mas a
pressão política sobre o governo de Mitsotakis foi tal que lhe pediram para
voltar a sair. No ano seguinte, as eleições ditaram o regresso ao poder de Andreas
Papandreou, antigo primeiro-ministro, filho e pai de primeiros-ministros e um
velho conhecido de Constantino – fora afinal à volta do alegado envolvimento de
Andreas Papandreou em conluios durante o governo do pai que começara a crise em
1965. Papandreou fez aprovar legislação a reverter o acordo com Mitsotakis e a
retirar a nacionalidade grega a Constantino. O Rei não se conformou. Pôs uma
acção no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que viria a ganhar em forma de
indemnização, mas sem recuperar Tatoi.
Só
muito mais tarde e muito discretamente pôde Constantino regressar para viver os
seus últimos dias, tranquilos, na terra que o rejeitou por ampla maioria. Ironicamente
e novamente em vésperas de eleições, foi a um novo Mitsotakis, Kyriakos, filho
e sobrinho-bisneto de primeiros-ministros, que coube tomar as decisões sobre o
funeral do antigo monarca, arriscando desta vez ir em sentido contrário das
decisões do pai e mantendo-se longe dos monárquicos e do funeral.
A
gentileza e bonomia de Constantino II fizeram com que à sua volta se
continuassem sempre a reunir os reis europeus, que o tratavam como um dos seus.
Em Atenas, embalado pela polifonia ortodoxa, incensado pelo Arcebispo de
Atenas, Constantino foi rodeado por esses reis por uma última vez. Ao lado das
mais importantes condecorações gregas, dinamarquesas e espanholas, estava a sua
maior glória, a medalha de ouro olímpica. Georges Menant, que assinava a peça
de Atenas para o Paris Match quando Constantino subiu ao trono, terminava o
texto dirigido ao novo rei com “Régnez en paix, Sire. Les dieux feront le
reste.” Os deuses gregos não foram generosos para Constantino.
Ademar
Vala Marques
Janeiro
2023
A obra chama-se Histórias Heréticas, é seu autor o escritor António Loja, um
madeirense que comandou a Companhia de Caçadores nº 1622, colocada num dos
locais com maior risco, no Sul da Guiné, 1966-1968, deu matéria para que este
capitão miliciano tivesse escrito uma poderosíssima obra de literatura
memorial, de referência, As Ausências de Deus (Âncora Editora, 2013, ainda disponível). Volta
agora a publicar na Âncora Editora, em 2020, uma reflexão sobre a exploração
das crendices, apresenta-se como agnóstico e avisa claramente que não vem com
sanha antirreligiosa, limita-se a medir a temperatura da religiosidade dos seus
compatriotas, lembra alguns santos que afinal não existiram e outros que
aparecem associados a guerras santas, é o caso de S. Tiago na guerra aos
mouros, de S. Jorge que foi excluído do calendário litúrgico, afinal ele ter
vencido o dragão não passou de uma balela e, por muito incómodo que seja, não
há provas do milagre de Ourique, foi de facto uma aldrabice forjada pelos
frades de Alcobaça.
Muito há a suspeitar dos milagres de Santo António, lembra um episódio
descrito pelo conde da Ericeira no seu Portugal Restaurado, referente aos acontecimentos do 1º de Dezembro
de 1640, havia gritaria do povo defronte da igreja de Santo António, dizia-se
que uma imagem de prata de Cristo crucificado que levava um capelão, despregara
o braço direito. “Gritou o povo, prostrado por terra, que era milagre, e todos
cobraram invencível confiança de que Deus aprovava a gloriosa deliberação dos
confederados.” Tudo isto só podia ter acontecido na igreja de Santo António…. E
o milagre das rosas, as atrocidades da Inquisição, as falsas miraculadas, a
que, felizmente, a Igreja Católica consegue pôr termo; e os milagres daquelas
imagens que parecem chorar, depois faz-se exame pericial e quem sabe da poda,
um santeiro, esclarecia cabalmente o fenómeno:
“Quando levamos a imagem de barro ao forno não podemos colocar-lhe os
olhos antes da cozedura. O forno é muito quente e os olhos de vidro derretem
naquela temperatura. O que fazemos é, depois da cozedura, abrir um furo por
detrás da cabeça até ao lugar dos olhos, depois colocamos estes, sempre por
detrás e preenchemos o espaço vazio com cera. A pintura disfarça as cicatrizes,
mas quando há muito calor junto da imagem, uma lâmpada mais forte em dia
quente, por exemplo, ou um candelabro com várias velas mais próximo, a cera
pode começar a derreter e sair pelos olhos. Isso até tem acontecido na
oficina.” Assim se pôs ponto final sobre um milagre que não aconteceu.
E há os milagres de Santa Filomena, outra santa que não existiu, mas
que aliviou dois jovens residentes na Câmara de Lobos a tirar umas notas de um
saco que estava por trás da imagem de Santa Filomena e que pretendiam comprar
duas bicicletas.
António Loja faz uma grande angular sobre iconoclastas, troça de um
tolo fanático, Sousa Lara, que queria que se fizessem umas cruzes altíssimas, a
Igreja impediu esta iniciativa megalómana, na viragem do século. E há o negócio
das medalhas milagrosas, os falsos videntes, e aí conta-nos a história da
vidente Alexandra, a Alexandra Solnado, são crendices à vista desarmada, mas
que têm clientela segura. Era indispensável uma referência a mercantilismos de
padres de paróquia, e o autor traz aqui a história do padre do Livramento, na
Madeira, que pedia pela prestação de um serviço a quantia de 8 euros por cada
membro da família, a prestação tinha a ver com a visita do Espírito Santo, ou
seja, na Páscoa aparecia o padre acompanhado de gente com opas vermelhas e
empunhando pendões, fazia parte do uso e costume oferecer-lhes vinho da
Madeira, bolos e broas, pela visita, segundo a circular distribuída pelo
correio havia a tabela de 8 euros por cabeça. Não sabemos como acabou a
história, seguramente que não teve um final prestigiante.
Sendo madeirense, também vem zurzir sobre o turismo religioso na
região, será o caso da beatificação do imperador da Áustria, ali falecido em
1922, Carlos, o herdeiro de Francisco José, refugiou-se na Madeira. “Dizem os
seus cronistas que viveu santamente, ajudando os pobres da terra e praticando as
obras de misericórdia, assim garantindo a beatificação. O Bispo D. Teodoro de
Faria declarou ao Diário de Notícias do Funchal que a beatificação do imperador
Carlos de Áustria tem levado ao Monte um maior número de turistas, sublinhou
que as igrejas e os túmulos dos santos são locais de evangelização e o turismo
religioso é um dos mais impressionantes em números.” Para quê comentários?
E conta-nos também uma história saborosa de um imigrante bem-sucedido
que regressou da Venezuela e que oportunamente um padre o nomeou mordomo, o sr.
Freitas aceitou, e na missa solene de domingo, com um grupo coral contratado
para o efeito e dois rabequistas se esmeraram junto ao altar-mor, o sr. padre
pediu uma oração pela saúde deste estimado paroquiano e pela prosperidade dos
seus negócios. Alguém bichanou ao ouvido de alguém para saber a que negócio se
dedicava o sr. Freitas, e foi rapidamente elucidado que o sr. Freitas era
proprietário de um bordel.
Não deixa de zurzir na promiscuidade entre a religião e a política e vem
à baila o padre da paróquia do Estreito de Câmara de Lobos, estávamos em 1994.
Em pleno púlpito, repentinamente, como se uma ideia brotasse do seu cérebro
iluminado por uma língua de fogo, o vigário deixou sair dos seus lábios a
frase-chave do inflamado sermão: “Se Deus pudesse votar, votaria no PPD.”
Estamos chegados às conclusões, o autor sublinha que a fragilidade cultural de uma sociedade é a sua permeabilidade ao dolo e ao engano, e a sociedade portuguesa ainda se mantém, em parte, recetiva a trapaceiros e sugestionada pelo bombástico (religioso ou não). E desanca naquela que o autor considera a grande instituição da trapaça, a Igreja Universal do Reino de Deus, pega num folheto que lhe deixaram na caixa de correio, com títulos sugestivos: “Sinta prazer na vida familiar”, “Que esperança há para entes queridos falecidos?”, aqui o folheto garante: felizmente está próximo o dia em que Satanás e o seu bando deixarão de existir! O mundo (inclusive seus governantes demoníacos) está passando, assegura a Bíblia, mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre; e há também o título “Pode este mundo sobreviver?”, versa uma infinidade de tragédias, de castigos com terramotos, inundações e pestilências. E o autor lembra as sessões litúrgicas da Universal onde se fazem exorcismos, afinal a Idade Média ainda está ao pé da nossa porta. “Abençoada Igreja, à qual tantos tolos entregam fielmente a dízima, tal como os católicos faziam há mil anos. Funciona melhor que o negócio da Dona Branca. E, aparentemente, nada paga o fisco.”
Mário Beja Santos
Vamos ao teatro, por Dina Soares, Fundação Francisco Manuel dos
Santos, 2022, é uma belíssima prova de vida de que o teatro resiste a tudo, à
perseguição política, às pandemias, à poderosíssima concorrência das indústrias
de entretenimento, é uma arte adaptável como qualquer outra, é um ser vivo que
nasce e morre todos os dias, depende do público, do autor, do dramaturgo, de
uma grande equipa, a começar pelos atores. A autora ia começar este seu livro
no dia em que os teatros fecharam, 11 de março de 2020. E lembra-nos que não
foi a primeira vez que uma pandemia fechou os teatros, recorda-nos Shakespeare,
o que me pôs a imaginação a funcionar, o criador e ator Shakespeare não se
esqueceu de pôr o teatro dentro do teatro, fê-lo, por exemplo, no genial Hamlet. Pandemia que obrigou a
respostas solidárias, desde transmissões gratuitas de grandes óperas e
concertos até espetáculos pensados para estrear online. Obviamente que uma peça
transmitida na televisão não é a mesma coisa de estarmos diante de um palco. E
um ator e encenador, Carlos Pimenta, observa: “Não é teatro, é um produto de
televisão, um documento de um espetáculo do teatro. Uma performance só existe
no presente. Quando deixa de existir no presente, passa a ser um documento.”
Mas era a resposta possível, ajudou-nos a superar o confinamento.
Agora somos levados até ao Teatro Aberto, estamos em novembro de 2021,
ainda há restrições, a autora vai vendo e comentando, lembra-nos que há muito
mais teatro do que aquilo que aparece na boca de cena, logo os bastidores, os
projetores e a maquinaria suspensa, dá-nos pormenores: “Ao longo da sala, por
cima da plateia, há nove varas de iluminação às quais os técnicos têm acesso
através de uma ponte rolante. É assim que conseguem afinar os projetores,
direcioná-los ou mudar as lâmpadas. É ainda nestas varas que estão presos os
robôs, projetores que permitem fazer dezenas de efeitos e são controlados a
partir da régie, a
cabine onde estão os operadores de luz, som e vídeo, os profissionais que
acompanham tecnicamente o decorrer dos espetáculos.” Ficamos a saber o
histórico do Teatro Aberto, fala-se no Teatro Nacional de S. João, no Chapitô,
no Teatro Viriato, e vamos agora propriamente entrar na organização do
espetáculo, logo os ensaios, conversa com os atores, oiçamos Maria Emília Correia:
“Fazer teatro assenta em todas as emoções. E no simulacro destas. A preparação
do espetáculo é, para mim, o tempo mais importante. Concentra o processo
criativo. Há que estudar o autor, a época (se a peça não for contemporânea) e o
texto, com rigor, sendo que é uma tentativa de domínio das palavras e seus
significados mais recônditos.” Não é só a representação, pode haver uma cena
que se dança, ou canto, intervêm outros, os atores confessam que houve trabalho
árduo para chegar à compreensão daquele texto. A atriz Catarina Avelar não
morre de amores pela sua personagem, de nome Célia, há na peça um monólogo em
que ela revela a sua fobia aos gatos, e a atriz comenta: “É uma paranoia total,
um total descontrolo. Conseguir deitar cá para fora aquela paranoia com aquela
linguagem, sem parecer um disparate completo, sem as pessoas perceberem que ela
não está bem, que só está a dizer disparates, é difícil. Para mim há a peça até
ao monólogo e depois. Quando se aproxima o monólogo estou sempre em grande tensão.
E dos ensaios passamos para o texto, a sofisticação da dramaturgia,
adaptam-se ou não as peças, eis a questão. As atrizes que estão a fazer a peça
do Teatro Aberto “Só Eu Escapei”, de Caryl Churchill, não são crianças, iremos
ouvir Márcia Breia, Lídia Franco e Catarina Avelar; quem entra no teatro e
contempla a cena desconhece a importância da sonografia e o que se passa nos
bastidores. A cenógrafa Marisa Fernandes procura uma definição: “Para mim, a
cenografia é a criação de imagens das palavras, de um ambiente onde se vão
desenrolar as ações. É a fisicalidade da escrita.” É importante entender a
relação do encenador com o cenário, é tudo uma questão de equilíbrio, se este
se perde o público fica às aranhas.
A autora entra nos bastidores, fala com o chefe-maquinista,
interessa-se pela régie, troca umas palavras com a assistente do palco. E depois vai visitar o
guarda-roupa, fala com a mestra do guarda-roupa do Teatro Aberto, Irene Cabral:
“Faço as roupas, lavo, limpo, engomo, faço arranjos se for preciso. Tudo o que
diga respeito às roupinhas, sou eu que trato, para que tudo esteja organizado.
Todos os dias vejo se é preciso alguma coisa, mas a limpeza e os arranjos mais
profundos são feitos ao fim de semana.” Aos poucos, vamos conhecendo os
itinerários dos elementos desta equipa, não é descurado o papel da figurinista,
Ana Paula Rocha apresenta-se: “O figurinista tem de entender a personagem que
está em cena, saber interpretá-la para a saber vestir. O figurino é o que vai
dar ao ator a sensação de ter uma segunda pele, a pele da personagem e desta
forma ajuda-o a representar.” A figurinista trabalha em grande proximidade com
o encenador, o cenógrafo e o iluminador.
Há um momento mágico para toda esta equipa do teatro: a estreia, a
ansiedade, as superstições, os medos, os atores mais velhos perguntam-se quanto
tempo mais poderão estar no palco, como comenta Márcia Breia: “O teatro é muito
exigente, é o mais exigente de tudo para uma atriz. Temos de nos transformar,
ir buscar algo que não está ali, alguém que não somos nós ou que nem sabíamos
que éramos. Não é uma exibição pessoal, nem a satisfação da vaidade pessoal,
embora quase todos caiamos nisso de vez em quando. Há quem reaja com
melancolia, nesse dia de estreia, como desabafa o encenador João Lourenço: “É
horrível. Para mim, o dia da estreia é sempre um dia muito triste. O maestro,
por exemplo, faz parte do espetáculo. Está lá a dirigir. O encenador deixa as
suas ideias e vai-se embora. Nesse momento, a criação passa para as mãos dos
atores.” E assoma do texto que João Lourenço se pauta pela minúcia, a precisão,
a importância que dá ao texto, confessa ser flexível: “Há encenadores que têm
um estilo muito forte que se sobrepõe ao próprio texto. Vê-se que são eles. São
os mais marcantes, são fantásticos. Eu olho para o palco, vejo um tapete no
chão e sei logo que é o Peter Brook. Se vejo no decorrer do espetáculo que se
prepara um grande final, sei que é do Peter Stein. As pessoas gostam de
encontrar esse estilo. Eu não sou assim, eu tento fazer sempre diferente. É
esse o meu estilo.”
E questiona-se o que é viver do teatro, uma arte que se diz constantemente estar em crise, são aqui enunciadas propostas para que o teatro prossiga, fala-se num mecenato, nas verbas da Cultura, que devia haver mais responsabilidade social das grandes empresas, na carreira profissional. Não se pode passar ao lado do teatro, segundo as estatísticas da cultura de 2019 realizaram-se nesse ano em todo o país 13516 sessões às quais assistiram perto de 2 milhões e 200 mil espetadores. Os entrevistados são unânimes: há que criar uma carreira profissional, levar os atores a sério como agentes da cultura. “Quando saímos de uma sala de teatro, depois de termos assistido a uma peça que nos interpela, que nos emociona, saímos inevitavelmente um pouco mais comprometidos connosco próprios, com os outros e com o mundo que nos rodeia.” E assim termina esta tocante ida ao teatro.
Mário Beja Santos
https://www.toli.us/art-projects/
O céu da boca
As descrições do universo concentracionário são
unânimes quanto à fome que grassava nos campos e, sobretudo, quanto aos efeitos
da fome, da fome que reduz os homens a um tubo digestivo, nas palavras de
Léon-E. Halkin (À L’Ombre de la Mort), que é inacreditável em sentido
próprio. Para crer nessa fome, ainda segundo Halkin, «é preciso ter conhecido a
fome lenta, os reflexos de voracidade, de avareza e de cleptomania, a obsessão
com o alimento, a obsessão com o que se come, com tudo o que se relaciona com
tudo o que se come, para admitir o complexo da fome, para compreender a miséria
sórdida e as suas tentações inconfessáveis.» E como tantos outros, também
Halkin sonha com lautas refeições. Em todos os textos da literatura sobre os Lager
se encontram testemunhos das intermináveis conversas sobre a confecção de
refeições, a descrição minuciosa da preparação dos pratos ou a referência aos
comensais e ao respectivo número.
Esclarecem as gramáticas que a catacrese é uma maneira
de suprir a falta de um termo específico. Nelas dá-se uma estranha forma de
comércio. Não raro, o corpo empresta ao mundo as suas designações e o mundo
empresta ao corpo o nome das suas coisas. O braço da cadeira, as bocas da faca,
o dente de alho ou a maçã do rosto. Por vezes, a relação é indirecta: o garfo
da bicicleta, ou faz-se por intermédio do corpo de um animal: a asa da chávena,
a mesa pé de galo. Macrocosmo e microcosmos são unidos apenas por aquele que pode
ser todas as coisas: o homem. Lemo-lo com clareza absoluta em Primo Levi
(Se Isto é um Homem):
«Mas como se poderia pensar em não ter fome? O Lager
é fome, nós próprios somos fome, fome viva.
Do outro lado da rua trabalha uma draga. As tenazes,
suspensas pelos cabos, abrem os maxilares dentados, libertam-se por um instante
como se hesitassem na escolha, depois atiram-se para a terra argilosa e fofa, e
ferram vorazmente, enquanto da cabine de comando sai um sopro satisfeito de
fumo branco e denso. Depois voltam a levantar-se, dão meia volta, vomitam para
trás o peso com que estão carregadas, e recomeçam. Apoiados às nossas pás,
ficamos a olhar fascinados. A cada dentada das tenazes, as bocas entreabrem-se,
as maçãs-de-adão dançam para cima e para baixo, miseravelmente visíveis por
debaixo da pele mole. Não conseguimos desvincular-nos do espetáculo do repasto
da draga.»
A fome viva, o tubo digestivo vivo não tem mais nada
como objecto, identifica-se totalmente com o mundo. No paroxismo da fome, a
analogia faz-se carne. Não espanta, pois, que a carne ganhe olhos, adquira
visão. Outro concentracionário testemunha-o. «O cego levantou-se, e foi para a
beira da sua enxerga. Tacteou a caixa onde guarda o pão. Abriu-a e retirou o
pedaço que restava. Em seguida sentou-se e tirou a faca do bolso. Eu
observava-o. Os seus gestos eram lentos, precisos, tão exactos como se visse o
que fazia, como eu próprio via. Dir-se-ia que estava a fazer uma dissecação.»
Com a última frase, Robert Antelme (A Espécie Humana) leva a cabo uma
torção radical dos conceitos: faz do pão um cadáver. O que dá a vida, na sua
ausência total, é já um morto. Talvez por isso o cego possa ver: disseca-se a
si mesmo como morto futuro – morto de fome. «Nada. De nenhuma outra coisa a
falta chama tanto esta palavra: nada.» Na vida dos homens normais, aqueles que não
sabem que tudo é possível, no dizer de David Rousset, outro concentracionário,
o pão não se liga ao nada precisamente porque não é tudo. Daí que seja
impossível imaginar a situação concentracionária.
No recentemente traduzido, Simone Veil – A
Madrugada em Birkenau, Veil, em diálogo com Paul Schaffer, insurge-se:
«SIMONE: […] Hoje, quando as pessoas vão a Birkenau ou
Auschwitz, vêem uma série de barracões, observam um certo número de coisas, mas
fica-se longe da transmissão de uma experiência. Quando os jovens dizem que
«imaginam», não imaginam coisa nenhuma.
É inimaginável.
PAUL: A meu ver, ainda bem que eles não podem
imaginar, porque indivíduos que fossem capazes de imaginar tal realidade seriam
indivíduos perigosos.»
A incapacidade de imaginar liga-se por um cordão
umbilical à linguagem. Movido pela esperança de poder dizer, Primo Levi põe a
hipótese de uma linguagem nova, a linguagem do Lager: «Como esta nossa
fome não é a sensação de quem saltou uma refeição, o nosso modo de ter frio
exigiria assim um nome particular. Nós dizemos «fome», dizemos «cansaço»,
«medo» e «dor», dizemos «Inverno», mas são coisas diferentes. São palavras
livres, criadas e utilizadas por homens livres que viviam, gozando e sofrendo,
em suas casas. Se os Lager tivessem durado mais tempo, uma nova, dura,
linguagem teria nascido […].» Cedo percebeu que nunca nasceria uma linguagem
adequada nem ao Lager nem para falar sobre ele. A ideia de uma tal
linguagem evidencia antes a sua impossibilidade. Ocorre quando já não é
necessária. Quando o Lager está morto. Como Levi viu tão bem:
«Depois de arranjar a janela partida e depois de o
aquecedor começar a difundir calor, pareceu que em cada um a tensão afrouxara,
e foi então que Towaroski (um franco-polaco de vinte e três anos, doente de tifo)
propôs aos outros doentes que oferecessem cada um uma fatia de pão a nós os
três que tivemos o trabalho, e a proposta foi aceite.
Um dia antes, tal acontecimento não teria sido
concebível. A lei do Lager dizia: «come o teu pão e, se puderes, o do
teu vizinho», e não deixava lugar à gratidão. Isto significava claramente que o
Lager estava morto.
Foi este o primeiro gesto humano que aconteceu entre
nós. Julgo que se poderia fixar naquele momento o início do processo pelo qual,
nós morremos, de Häftling voltámos lentamente a ser homens.»
Voltar a ser humano significa voltar à linguagem dos
homens normais, à linguagem que já não é uma simples reacção de um tubo
digestivo entre outros: partes extra partes. Na linguagem,
evadidos da necessidade natural antinatural, os homens comungam. Por isso, a
fome absoluta não é apenas a fome natural, é também a fome de justiça. Antelme
disse-o talvez melhor que ninguém. A natureza recomposta não apaga o sucedido,
precisamente porque o sucedido não foi um acontecimento causado pelas leis
cegas da natureza.
A experiência concentracionária foi considerada pelos
concentracionários que sobre ela escreveram um alargamento da perspectiva sobre
o mundo, um acréscimo de lucidez.
Talvez possa contribuir para dar uma resposta à pergunta:
quem é o teu Próximo? Aquele que tem fome do pão, e do pão da justiça.
O céu da boca.
João Tiago Proença
Tenho para mim que O
Papagaio de Flaubert é a obra-prima absoluta de Julian Barnes (Quetzal
Editores, 2019, reedição). Inventa-se um médico reformado e viúvo, Geoffrey
Braithwaite, este atravessa o Canal da Mancha rumo a Ruão, a terra natal de
Gustave Flaubert, move-o a curiosidade de ver o papagaio embalsamado que teria
servido de modelo ao autor da Madame Bovary durante a escrita de uma
obra ainda hoje aclamada, Un Coeur Simple. Este papagaio teria
permanecido na sua secretária durante algumas semanas até o escritor se ter
fartado daquele elemento que o ajudara na escrita.
O médico será um
elemento de ligação entre o verdadeiro narrador, que se vai mostrar muito pouco
interessado em maravilhar-nos com uma biografia daquele que escreveu o primeiro
romance moderno, e a mais estonteante viagem à vida de um homem que além do seu
talento genial vê escancarado neste romance as suas doenças, egolatria, manias,
tiques, vaidades e medos, chegaremos mesmo a um momento em que o falso biógrafo
põe na boca de cena um Flaubert sobreavaliado pela imponência literária, como
Barnes o desenha, inigualável:
“Flaubert ensina-nos
a olhar para a verdade e não temer as suas consequências; ensina-nos como
Montaigne, a dormir na almofada da dúvida; ensina-nos a dissecar as partes
constituintes da realidade e a observar que a natureza é sempre uma mistura de
géneros; ensina-nos o uso mais exato da língua; ensina-nos a não nos
aproximarmos de um livro em busca de pílulas morais ou sociais: a literatura
não é uma farmacopeia; ensina a superioridade da Verdade, da Beleza, do
Sentimento e do Estilo. E, se estudarmos a sua vida privada, ensina a coragem,
o estoicismo, a amizade; a importância da inteligência, do ceticismo e da
imaginação; a palermice do patriotismo barato; a virtude de ser capaz de ficar
sozinho no quarto; o ódio à hipocrisia; a desconfiança nas teorias; a
necessidade de falar com simplicidade.”
Portanto, um papagaio
que é um pretexto, um médico reformado que não pesa na estrutura literária, a
não ser com aquele papel que tem no teatro o ponto ou o repetidor. O que é
denso é lançar o leitor em Ruão, procurar os vestígios de Flaubert, e não são
muitos. Ajuda forjar um médico para dizer que Flaubert fora um belo jovem que
se tornara num burguês barrigudo e calvo, produto da sífilis e da epilepsia.
Médico que vai ao hospital para visitar o papagaio embalsamado, tem o nome de
Lulu, é o papagaio de Félicité, a personagem principal do conto Un Coeur
Simple, de que vamos saber a história: Félicité é uma criada ignorante que
serve a mesma patroa durante meio século, entrega sucessivamente a um noivo
boçal, aos filhos da patroa, ao sobrinho e a um velho com cancro no braço,
todos irão partir ou esquecê-la, só Lulu, o papagaio, é que é permanente, e
quando este morre Félicité manda embalsamá-lo. Feita esta visita tudo podia
acabar aqui, pelo contrário, é a primeira estação de uma viagem quase
alucinante. O médico inicia as suas pesquisas, procura lugares, dá-nos a
cronologia da vida de Flaubert (1821-1880). É hora de conhecer a vida privada,
a percetora inglesa que foi sua amante, e que dá muito que falar aos biógrafos
de Flaubert, entra no palco alguém que possuiria tais cartas trocadas, afinal
já não existem; segue-se o desconcertante bestiário de Flaubert, uma deriva
fantástica, talvez com pistas palpitantes para a psicanálise. Chegamos
abruptamente ao romance maldito, Madame Bovary, perseguido por obsceno,
coisa terrível, uma cena de adultério numa carruagem com cortinas corridas, a
viagem de Flaubert ao Egito, a caprichosa relação de Flaubert com Louise Colet,
esta mesma terá direitos para falar com o leitor e desancar esse Flaubert que a
passou a ignorar; há também uns arremedos de investigação policial, a tentativa
de apurar em quem se baseou o escritor de Ruão para cinzelar a figura de Emma
Bovary, e é a vez de Barnes falar na primeira pessoa e desancar um biógrafo de
Flaubert, tudo por causa das cores dos olhos dessa mulher cujo nome vai ser
traduzido em todas as línguas. A propósito ou a despropósito, Barnes rende-se
ao génio de Flaubert, mas podemos imaginar os dois numa sala de espelhos, um
exemplo: “Acreditava no estilo mais do que ninguém. Trabalhava afincadamente
pela beleza, pela sonoridade, pela exatidão; pela perfeição, mas nunca a
perfeição como monograma do escritor, como Wilde. O estilo é uma função do
tema. O estilo não é imposto ao assunto, decorre dele. O estilo é a verdade
para o pensamento. A palavra correta, a frase autêntica, a frase perfeita estão
sempre algures por aí; o trabalho do escritor é localizá-las seja por que meio
for.”
A dimensão física de
Flaubert não é escamoteada: era um gigante, um metro e oitenta, a posteridade
mostra-o volumoso, olhar distante, forte bigodaça, calva larga. E, logo de
seguida, Barnes muda de agulha, voltamos aos amores do escritor, às viagens, à
vida doméstica, ficamos até a saber que Flaubert detestava os caminhos-de-ferro.
E há os livros que Flaubert não escreveu e que imaginou, prometeu uma
autobiografia, o tratamento de temas vários, na sua extensa correspondência
arquitetou mundos e fundos e afinal um leitor de cultura média sabe que o seu
nome entrou na avenida dos clássicos graças a Madame Bovary, a Educação
Sentimental, a Salammbô e a uma história deliciosa que deixou
incompleta Bouvard e Pécuchet.
O monólogo de Louise
Colet é um autêntico clímax, sabiamente Barnes dá-lhe uma dimensão teatral,
oferece-lhe todos os requisitos para estilhaçar e esventrar Flaubert, é
seguramente um dos textos mais espantosos de confidências, não nos dá tréguas,
sufocante e irado:
“Alguém – talvez o
próprio Gustave – queimará as minhas cartas; as suas (que eu guardei com todo o
cuidado, tão contra os meus interesses) sobreviverão para confirmar os
preconceitos dos que são demasiado preguiçosos para compreender. Sou uma mulher
e também uma escritora que gastou da sua parcela da fama em vida; e nestes dois
campos não espero muita piedade ou muita compreensão da posteridade. Se me
importo? Com certeza que sim. Mas esta noite não estou vingativa; apenas
resignada.”
O falso médico
aparece-nos com a lista das principais personagens e situações que ajudam a
compreender o enigmático Flaubert: os membros da família, os amigos; os amantes
e as amantes, escritores envolvidos. Romance que acaba onde começa, no papagaio
embalsamado. E há uma última excentricidade de novela policial: será que
Flaubert se suicidou?
Moral da história: a
vida verdadeira é a vida que vem nos livros – porque é a única que se pode
interrogar.
De leitura
obrigatória.
Mário Beja Santos
Termino
hoje a série de crónicas e fotografias que dediquei aos Balcãs sob o título de
Entre Oriente e Ocidente.
Percorremos
uma região marcada pela Via Ignatia (cujo nome lembra o procônsul da Macedónia
que a mandou construir, Gnaeus Ignatius), estrada de mais de 1100 quilómetros
ligando Durrës, Bitola, Salónica e Constantinopla. Por onde deambulou São Paulo
e se espalhou a civilização romana.
Região
onde o império otomano dominou durante vários séculos durante os quais o culto
cristão continuou a existir desde que a altura das torres das igrejas não
ultrapassasse a dos minaretes. Na altura, o império estava presente em três
continentes.
Uma
região que, durante dezenas de anos, foi toda (com excepção da Grécia)
comunista e onde existiu uma das mais duras ditaduras do Século XX, a da
Albânia.
Neste
momento, a União Europeia tem a tarefa enorme de associar muitos dos países da
Região ao processo de desenvolvimento do continente europeu. É um imperativo
geopolítico. Se o não fizer, estes Estados serão mais permeáveis à influência
russa e aos investimentos chineses que têm como interesse permanente
enfraquecer a capacidade da Europa de actuar em conjunto netas paragens.
Depois
de termos atravessado paisagens de igrejas bizantinas e minaretes, antigas
hospedarias para viajantes, restos do realismo socialista, magníficos vestígios
das civilizações antigas, terminamos, por contraste, na nova Skopje, produto do
controverso projecto Skopje 2014.
Aqui
foram gastas quantias avultadas para reconstruir edifícios, erguer estátuas e memoriais
sempre com o objectivo de glorificar o nacionalismo macedónio. Alexandre da
Macedónia é a principal figura mas também Madre Teresa de Calcutá, albanesa de
família mas nascida em Skopje, tem o seu memorial.
Queria
agradecer aos leitores a paciência com que seguiram estas crónicas e ao António
Araújo a benevolência com que as acolheu nas páginas do Malomil.
Fotografias
de 24 de Maio de 2022
José
Liberato