segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Κωνσταντίνος e a tentação da política.

 




Por estes dias, reuniram-se em Atenas sete chefes de Estado para despedir um cidadão privado.

A sua morte, aos 82 anos, no seu país natal, mas com passaporte estrangeiro, motivou um comunicado seco do governo conservador de Atenas, que ficou a milímetros de saudar a morte de Konstantínos, com uma frieza que muito provavelmente custará votos a Kyriakos Mitsotakis nas próximas eleições.

Antigo campeão olímpico, o último rei simultaneamente filho de rei e genro de rei – e também o último da sua dinastia em resultado dos erros que cometeu – chegou à sepultura como um cidadão privado e estrangeiro. A decisão de recusar a Constantino II um funeral de Estado, decidida em reunião do Conselho de Ministros, levantou tal polémica que Mitsotakis teve de emendar a mão e permitir honras adicionais ao cidadão privado.

Na manhã do funeral e durante várias horas, milhares de cidadãos passaram pela pequena capela ao lado da Catedral Ortodoxa de Atenas, beijando devota e quase clandestinamente a sua urna, envolta nas cores, mas não na bandeira grega. Nem na morte Constantino II conseguiu que o seu país ultrapassasse as feridas de um reinado curto, mas traumático para os gregos e para o rei.

Nascido em plena Segunda Guerra Mundial, filho dos Príncipes Herdeiros Paulo e Frederica, Constantino viveu os seus primeiros anos num exílio depauperado, entre a Pretória e o Cairo, com a mãe e as irmãs Sofia, futura Rainha de Espanha, e Irene. O fim da Guerra encontrou uma Grécia cada vez mais republicana e comunista, que resistia ao regresso da Família Real. A manutenção da Monarquia foi validada em referendo em 1946, o que permitiu o regresso do impopular Rei Jorge II e do seu irmão, o Príncipe Herdeiro. Jorge II morreria, sem filhos, no ano seguinte; Paulo sucedeu-lhe como Rei dos Helenos e Constantino tornou-se herdeiro do trono, diádokhos, aos 6 anos.

A Grécia era uma peça importante no xadrez internacional e a guerra civil que se seguiu e terminou em 1949 foi um dos primeiros episódios da Guerra Fria, com insurgentes comunistas apoiados pela União Soviética e o governo apoiado pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos. A vitória militar das forças governamentais deixou latentes tensões que iriam perdurar por muitos anos e explicam em parte a instabilidade que sempre marcou o país, com evidências recentes no consulado de Tsipras-Varoufakis.

Paralelamente a estas tensões, Paulo e Frederica criaram uma corte faustosa, onde se sucediam bailes, cruzeiros e muito raffinement. A Rainha da Grécia encontrava sempre uma nova ocasião para celebrar e fazia-o com esplendor que trazia para o Mediterrâneo pompas dignas das cortes no Norte, de onde, aliás, eram originários os reis gregos. O custo desta pompa haveria de começar a ser visto como incomportável para um país onde tanta gente passava dificuldades, ao que Frederica de Hannover sem hesitação poderia ter respondido com a célebre frase atribuída a D. Maria Pia de Sabóia, Rainha de Portugal: “quem quer rainhas, paga-as”. A factura foi pesada para ambas.





A vida pública da Família Real era acompanhada de constante apoio político dos Estados Unidos da América. Frederica era uma fervorosa anti-comunista e, como tal, encontrava sempre abertas as portas da Casa Branca. Os comunistas gregos pagavam na mesma moeda e chamavam-lhe prussiana e nazi. Se dessa acusação a Rainha se poderia livrar, já da sua tentação de interferir na política grega será mais difícil defendê-la.

Em 2003 a revista “Socialist Worker”, tentando angariar manifestantes para a possível visita de George W. Bush a Londres, publicava um artigo (“How we wrecked tyrants’ visits in the past”) em que recordava com orgulho os protestos que marcaram a visita de Estado de Paulo e Frederica a Londres, 40 anos antes. Foi, de facto, uma visita de raro tumulto em Inglaterra, com o peso que tal acarretava para a Rainha Isabel II, visto ter o seu marido nascido Príncipe da Grécia e ter uma relação próxima com os tios, que se iria estender às gerações seguintes. Os manifestantes reclamavam a libertação de prisioneiros comunistas e insultavam especialmente Frederica, impassível no seu desfile das melhores jóias, com os vitupérios habituais.

Três anos antes, em 1960, o herdeiro do trono, Constantino, conquistara a primeira medalha olímpica de ouro para a Grécia em quase 50 anos. Este feito colocava-o numa posição de quase herói nacional, visto que o seu mérito desportivo era merecedor de especial reconhecimento e de orgulho dos seus compatriotas. Mais dado ao desporto do que aos estudos, Constantino daria mais uma alegria à mãe ao abandonar os romances menos ortodoxos e anunciar o noivado com a filha mais nova do Rei da Dinamarca, Ana Maria.

O golpe mais duro para Frederica chegou com o diagnóstico de um cancro ao Rei Paulo. Importaram-se médicos e especialistas para Atenas mas ao fim de uns meses, a 6 de Março de 1964, o Rei morria com apenas 62 anos, deixando viúva uma rainha que adorava sê-lo.

Constantino tornou-se Rei dos Helenos aos 23 anos, jurando diante do governo socialista de Georgios Papandreou “em nome da Santíssima Trindade consubstancial e indivisível, proteger a religião dominante dos Helenos, de respeitar a Constituição e as leis da nação helena”.


Premonitoriamente, a capa da Paris Match que noticiava a morte de Paulo mostrava Constantino II fazendo continência com o bastão de marechal. A um canto da capa, mas em primeiro plano, estava Frederica. A influência da Rainha-Mãe, mas sobretudo o seu exemplo, foram porventura o que de pior podia ter acontecido a um rei impreparado e ingénuo, num reino que não era para novos.

Seis meses depois da subida ao trono, o casamento de Constantino II da Grécia e Ana Maria da Dinamarca tornou Atenas no foco da atenção mediática do mundo. Foi a última grande união dinástica entre duas casas reais reinantes, o princípio do fim de um mundo em que o amor podia coincidir com o dever, mas em que este se sobrepunha. Durante dias sucederam-se bailes, cortejos, paradas militares, o cintilar ofuscante de diamantes e o desfile de condecorações de cores garridas, de reis, rainhas, príncipes e princesas rodeados de genuíno entusiasmo popular, como não mais se veria.

O grande casamento de Atenas foi a glória final da Rainha Frederica, a última matchmaker da Europa do século XX. O fim da cerimónia, onde os cânticos e o incenso faziam recordar o fausto oriental de Constantinopla, viu chegar um momento teatral, quase patético, em que Frederica fez uma vénia à nora, a nova Rainha, que lhe devolveu a vénia. Era uma metáfora do que estava para vir. Se apenas Frederica se tivesse retirado, como a vénia implicava, em vez de interferir…







Os três anos que se seguiram foram um turbilhão político. E a tentação da interferência na política, talvez a mais perigosa tentação para os reis constitucionais, foi a perdição de Constantino. Recusou nomeações de ministros e forçou a demissão Georgios Papandreou, o socialista que ancorava a estabilidade. Sucederam-se meses de manifestações contra o rei, com Constantino a nomear governos que sucessivamente caíam no Parlamento por falta de apoio. Ora, na Grécia a única dinastia que foi acabou destituída foi mesmo a da Família Real, sucedendo-se no cargo de primeiro-ministro filhos, netos e sobrinhos de antigos primeiros-ministros: Constantino haveria de se cruzar com os Papandreou várias vezes ao longo do resto sua vida.

Para resolver a crise, Constantino marcou eleições para o fim de Maio de 1967. Não se chegaram a realizar. Um golpe de Estado, a 21 de Abril, orquestrado pelo exército com o argumento de que estavam a prevenir o regresso do comunismo, seria o golpe de misericórdia ao reinado de Constantino. A incapacidade do Rei para rejeitar de imediato o golpe e se distanciar foram vistas como conivência, assim como a fotografia em que o Rei surge à frente dos coronéis da Junta Militar na escadaria do Palácio Real. O habitualmente sorridente Constantino II acreditou ingenuamente que a sua expressão facial na fotografia, fechada e dura, seria sinal suficiente do seu desagrado e da rejeição do governo dos militares. A percepção generalizada foi a contrária.

Este episódio haveria de inspirar o cunhado de Constantino, Juan Carlos I de Espanha, a lidar com a tentativa de golpe de 23 de Fevereiro de 1981. A condenação internacional perante o golpe de Estado caiu também sobre o Rei, de todos os quadrantes, incluindo a sua família dinamarquesa que deixou claro que não seria bem-vindo em Copenhaga enquanto a situação perdurasse. Constantino tentou, sem sucesso, que os Estados Unidos interviessem em seu favor e acabou por ensaiar um contragolpe em Dezembro, que falhou. Constantino, Ana Maria e os seus dois filhos, incluindo o recém-nascido herdeiro, partiram para Roma.

A Grécia é o país que mais vezes referendou a forma de Estado no século XX, tornando-se numa monarquia sucessivamente validada pelo povo. Constantino II alimentou por isso e durante muitos anos a ideia de que o seu exílio não era definitivo, como não havia sido para o seu avô Constantino I, e para o seu tio, Jorge II, que tinham recuperado o trono depois de o perderem. Formalmente, aliás, Constantino manteve-se como rei até 1973, quando o seu alegado envolvimento numa nova tentativa de golpe contra a Junta Militar levou a que fosse proclamada a república e feito um plebiscito para a legitimar.

Quando a democracia foi restaurada, em 1974, o inesperado aconteceu novamente. O líder da direita tradicionalmente monárquica e antigo primeiro-ministro, Konstantinos Karamanlis, marcou um novo referendo, mas não só não fez campanha pela monarquia, como se recusou a autorizar que o Rei regressasse para fazer campanha, permitindo-lhe apenas uma mensagem ao país, a partir de Londres. Constantino admitiu os seus erros, fez a profissão de fé na democracia e prometeu que a mãe não se intrometeria na política – os cartazes da propaganda republicana tinham apenas a fotografia de Frederica e anunciavam: “Vem aí!”. A república teve uma vitória retumbante com quase 70% dos votos.



Constantino viveu as suas décadas de exílio expectante, cada vez menos convencido de que regressaria do exílio para uma pátria que o receberia como o herói olímpico a quem os pecados seriam perdoados. Permitiram-lhe regressar por um par de horas, em 1981, para enterrar a mãe, a Rainha Frederica, no cemitério de Tatoi. O complexo de Tatoi seria, aliás, o pretexto da grande batalha de Constantino contra o Estado grego.

Em 1992, o Primeiro-Ministro Konstantinos Mitsotakis, sobrinho-neto, primo e pai de primeiros-ministros, chegou a acordo com Constantino para lhe devolver a propriedade de Tatoi, que o antigo rei considerava privadas, a troco das terras no resto da Grécia. Constantino regressou a Atenas no ano seguinte, mas a pressão política sobre o governo de Mitsotakis foi tal que lhe pediram para voltar a sair. No ano seguinte, as eleições ditaram o regresso ao poder de Andreas Papandreou, antigo primeiro-ministro, filho e pai de primeiros-ministros e um velho conhecido de Constantino – fora afinal à volta do alegado envolvimento de Andreas Papandreou em conluios durante o governo do pai que começara a crise em 1965. Papandreou fez aprovar legislação a reverter o acordo com Mitsotakis e a retirar a nacionalidade grega a Constantino. O Rei não se conformou. Pôs uma acção no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que viria a ganhar em forma de indemnização, mas sem recuperar Tatoi.

Só muito mais tarde e muito discretamente pôde Constantino regressar para viver os seus últimos dias, tranquilos, na terra que o rejeitou por ampla maioria. Ironicamente e novamente em vésperas de eleições, foi a um novo Mitsotakis, Kyriakos, filho e sobrinho-bisneto de primeiros-ministros, que coube tomar as decisões sobre o funeral do antigo monarca, arriscando desta vez ir em sentido contrário das decisões do pai e mantendo-se longe dos monárquicos e do funeral.

A gentileza e bonomia de Constantino II fizeram com que à sua volta se continuassem sempre a reunir os reis europeus, que o tratavam como um dos seus. Em Atenas, embalado pela polifonia ortodoxa, incensado pelo Arcebispo de Atenas, Constantino foi rodeado por esses reis por uma última vez. Ao lado das mais importantes condecorações gregas, dinamarquesas e espanholas, estava a sua maior glória, a medalha de ouro olímpica. Georges Menant, que assinava a peça de Atenas para o Paris Match quando Constantino subiu ao trono, terminava o texto dirigido ao novo rei com “Régnez en paix, Sire. Les dieux feront le reste.” Os deuses gregos não foram generosos para Constantino.


Ademar Vala Marques

Janeiro 2023







sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Zurzir nas trafulhices das crendices: Uma viagem no mundo do imaginário religioso dos portugueses.

 





 

A obra chama-se Histórias Heréticas, é seu autor o escritor António Loja, um madeirense que comandou a Companhia de Caçadores nº 1622, colocada num dos locais com maior risco, no Sul da Guiné, 1966-1968, deu matéria para que este capitão miliciano tivesse escrito uma poderosíssima obra de literatura memorial, de referência, As Ausências de Deus (Âncora Editora, 2013, ainda disponível). Volta agora a publicar na Âncora Editora, em 2020, uma reflexão sobre a exploração das crendices, apresenta-se como agnóstico e avisa claramente que não vem com sanha antirreligiosa, limita-se a medir a temperatura da religiosidade dos seus compatriotas, lembra alguns santos que afinal não existiram e outros que aparecem associados a guerras santas, é o caso de S. Tiago na guerra aos mouros, de S. Jorge que foi excluído do calendário litúrgico, afinal ele ter vencido o dragão não passou de uma balela e, por muito incómodo que seja, não há provas do milagre de Ourique, foi de facto uma aldrabice forjada pelos frades de Alcobaça.

Muito há a suspeitar dos milagres de Santo António, lembra um episódio descrito pelo conde da Ericeira no seu Portugal Restaurado, referente aos acontecimentos do 1º de Dezembro de 1640, havia gritaria do povo defronte da igreja de Santo António, dizia-se que uma imagem de prata de Cristo crucificado que levava um capelão, despregara o braço direito. “Gritou o povo, prostrado por terra, que era milagre, e todos cobraram invencível confiança de que Deus aprovava a gloriosa deliberação dos confederados.” Tudo isto só podia ter acontecido na igreja de Santo António…. E o milagre das rosas, as atrocidades da Inquisição, as falsas miraculadas, a que, felizmente, a Igreja Católica consegue pôr termo; e os milagres daquelas imagens que parecem chorar, depois faz-se exame pericial e quem sabe da poda, um santeiro, esclarecia cabalmente o fenómeno:

“Quando levamos a imagem de barro ao forno não podemos colocar-lhe os olhos antes da cozedura. O forno é muito quente e os olhos de vidro derretem naquela temperatura. O que fazemos é, depois da cozedura, abrir um furo por detrás da cabeça até ao lugar dos olhos, depois colocamos estes, sempre por detrás e preenchemos o espaço vazio com cera. A pintura disfarça as cicatrizes, mas quando há muito calor junto da imagem, uma lâmpada mais forte em dia quente, por exemplo, ou um candelabro com várias velas mais próximo, a cera pode começar a derreter e sair pelos olhos. Isso até tem acontecido na oficina.” Assim se pôs ponto final sobre um milagre que não aconteceu.

E há os milagres de Santa Filomena, outra santa que não existiu, mas que aliviou dois jovens residentes na Câmara de Lobos a tirar umas notas de um saco que estava por trás da imagem de Santa Filomena e que pretendiam comprar duas bicicletas.

António Loja faz uma grande angular sobre iconoclastas, troça de um tolo fanático, Sousa Lara, que queria que se fizessem umas cruzes altíssimas, a Igreja impediu esta iniciativa megalómana, na viragem do século. E há o negócio das medalhas milagrosas, os falsos videntes, e aí conta-nos a história da vidente Alexandra, a Alexandra Solnado, são crendices à vista desarmada, mas que têm clientela segura. Era indispensável uma referência a mercantilismos de padres de paróquia, e o autor traz aqui a história do padre do Livramento, na Madeira, que pedia pela prestação de um serviço a quantia de 8 euros por cada membro da família, a prestação tinha a ver com a visita do Espírito Santo, ou seja, na Páscoa aparecia o padre acompanhado de gente com opas vermelhas e empunhando pendões, fazia parte do uso e costume oferecer-lhes vinho da Madeira, bolos e broas, pela visita, segundo a circular distribuída pelo correio havia a tabela de 8 euros por cabeça. Não sabemos como acabou a história, seguramente que não teve um final prestigiante.

Sendo madeirense, também vem zurzir sobre o turismo religioso na região, será o caso da beatificação do imperador da Áustria, ali falecido em 1922, Carlos, o herdeiro de Francisco José, refugiou-se na Madeira. “Dizem os seus cronistas que viveu santamente, ajudando os pobres da terra e praticando as obras de misericórdia, assim garantindo a beatificação. O Bispo D. Teodoro de Faria declarou ao Diário de Notícias do Funchal que a beatificação do imperador Carlos de Áustria tem levado ao Monte um maior número de turistas, sublinhou que as igrejas e os túmulos dos santos são locais de evangelização e o turismo religioso é um dos mais impressionantes em números.” Para quê comentários?

E conta-nos também uma história saborosa de um imigrante bem-sucedido que regressou da Venezuela e que oportunamente um padre o nomeou mordomo, o sr. Freitas aceitou, e na missa solene de domingo, com um grupo coral contratado para o efeito e dois rabequistas se esmeraram junto ao altar-mor, o sr. padre pediu uma oração pela saúde deste estimado paroquiano e pela prosperidade dos seus negócios. Alguém bichanou ao ouvido de alguém para saber a que negócio se dedicava o sr. Freitas, e foi rapidamente elucidado que o sr. Freitas era proprietário de um bordel.

Não deixa de zurzir na promiscuidade entre a religião e a política e vem à baila o padre da paróquia do Estreito de Câmara de Lobos, estávamos em 1994. Em pleno púlpito, repentinamente, como se uma ideia brotasse do seu cérebro iluminado por uma língua de fogo, o vigário deixou sair dos seus lábios a frase-chave do inflamado sermão: “Se Deus pudesse votar, votaria no PPD.”

Estamos chegados às conclusões, o autor sublinha que a fragilidade cultural de uma sociedade é a sua permeabilidade ao dolo e ao engano, e a sociedade portuguesa ainda se mantém, em parte, recetiva a trapaceiros e sugestionada pelo bombástico (religioso ou não). E desanca naquela que o autor considera a grande instituição da trapaça, a Igreja Universal do Reino de Deus, pega num folheto que lhe deixaram na caixa de correio, com títulos sugestivos: “Sinta prazer na vida familiar”, “Que esperança há para entes queridos falecidos?”, aqui o folheto garante: felizmente está próximo o dia em que Satanás e o seu bando deixarão de existir! O mundo (inclusive seus governantes demoníacos) está passando, assegura a Bíblia, mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre; e há também o título “Pode este mundo sobreviver?”, versa uma infinidade de tragédias, de castigos com terramotos, inundações e pestilências. E o autor lembra as sessões litúrgicas da Universal onde se fazem exorcismos, afinal a Idade Média ainda está ao pé da nossa porta. “Abençoada Igreja, à qual tantos tolos entregam fielmente a dízima, tal como os católicos faziam há mil anos. Funciona melhor que o negócio da Dona Branca. E, aparentemente, nada paga o fisco.” 


                                                                                Mário Beja Santos









 




quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Representamos na vida. No palco, somos verdadeiros.

 




 

Vamos ao teatro, por Dina Soares, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2022, é uma belíssima prova de vida de que o teatro resiste a tudo, à perseguição política, às pandemias, à poderosíssima concorrência das indústrias de entretenimento, é uma arte adaptável como qualquer outra, é um ser vivo que nasce e morre todos os dias, depende do público, do autor, do dramaturgo, de uma grande equipa, a começar pelos atores. A autora ia começar este seu livro no dia em que os teatros fecharam, 11 de março de 2020. E lembra-nos que não foi a primeira vez que uma pandemia fechou os teatros, recorda-nos Shakespeare, o que me pôs a imaginação a funcionar, o criador e ator Shakespeare não se esqueceu de pôr o teatro dentro do teatro, fê-lo, por exemplo, no genial Hamlet. Pandemia que obrigou a respostas solidárias, desde transmissões gratuitas de grandes óperas e concertos até espetáculos pensados para estrear online. Obviamente que uma peça transmitida na televisão não é a mesma coisa de estarmos diante de um palco. E um ator e encenador, Carlos Pimenta, observa: “Não é teatro, é um produto de televisão, um documento de um espetáculo do teatro. Uma performance só existe no presente. Quando deixa de existir no presente, passa a ser um documento.” Mas era a resposta possível, ajudou-nos a superar o confinamento.

Agora somos levados até ao Teatro Aberto, estamos em novembro de 2021, ainda há restrições, a autora vai vendo e comentando, lembra-nos que há muito mais teatro do que aquilo que aparece na boca de cena, logo os bastidores, os projetores e a maquinaria suspensa, dá-nos pormenores: “Ao longo da sala, por cima da plateia, há nove varas de iluminação às quais os técnicos têm acesso através de uma ponte rolante. É assim que conseguem afinar os projetores, direcioná-los ou mudar as lâmpadas. É ainda nestas varas que estão presos os robôs, projetores que permitem fazer dezenas de efeitos e são controlados a partir da régie, a cabine onde estão os operadores de luz, som e vídeo, os profissionais que acompanham tecnicamente o decorrer dos espetáculos.” Ficamos a saber o histórico do Teatro Aberto, fala-se no Teatro Nacional de S. João, no Chapitô, no Teatro Viriato, e vamos agora propriamente entrar na organização do espetáculo, logo os ensaios, conversa com os atores, oiçamos Maria Emília Correia: “Fazer teatro assenta em todas as emoções. E no simulacro destas. A preparação do espetáculo é, para mim, o tempo mais importante. Concentra o processo criativo. Há que estudar o autor, a época (se a peça não for contemporânea) e o texto, com rigor, sendo que é uma tentativa de domínio das palavras e seus significados mais recônditos.” Não é só a representação, pode haver uma cena que se dança, ou canto, intervêm outros, os atores confessam que houve trabalho árduo para chegar à compreensão daquele texto. A atriz Catarina Avelar não morre de amores pela sua personagem, de nome Célia, há na peça um monólogo em que ela revela a sua fobia aos gatos, e a atriz comenta: “É uma paranoia total, um total descontrolo. Conseguir deitar cá para fora aquela paranoia com aquela linguagem, sem parecer um disparate completo, sem as pessoas perceberem que ela não está bem, que só está a dizer disparates, é difícil. Para mim há a peça até ao monólogo e depois. Quando se aproxima o monólogo estou sempre em grande tensão.

E dos ensaios passamos para o texto, a sofisticação da dramaturgia, adaptam-se ou não as peças, eis a questão. As atrizes que estão a fazer a peça do Teatro Aberto “Só Eu Escapei”, de Caryl Churchill, não são crianças, iremos ouvir Márcia Breia, Lídia Franco e Catarina Avelar; quem entra no teatro e contempla a cena desconhece a importância da sonografia e o que se passa nos bastidores. A cenógrafa Marisa Fernandes procura uma definição: “Para mim, a cenografia é a criação de imagens das palavras, de um ambiente onde se vão desenrolar as ações. É a fisicalidade da escrita.” É importante entender a relação do encenador com o cenário, é tudo uma questão de equilíbrio, se este se perde o público fica às aranhas.

A autora entra nos bastidores, fala com o chefe-maquinista, interessa-se pela régie, troca umas palavras com a assistente do palco. E depois vai visitar o guarda-roupa, fala com a mestra do guarda-roupa do Teatro Aberto, Irene Cabral: “Faço as roupas, lavo, limpo, engomo, faço arranjos se for preciso. Tudo o que diga respeito às roupinhas, sou eu que trato, para que tudo esteja organizado. Todos os dias vejo se é preciso alguma coisa, mas a limpeza e os arranjos mais profundos são feitos ao fim de semana.” Aos poucos, vamos conhecendo os itinerários dos elementos desta equipa, não é descurado o papel da figurinista, Ana Paula Rocha apresenta-se: “O figurinista tem de entender a personagem que está em cena, saber interpretá-la para a saber vestir. O figurino é o que vai dar ao ator a sensação de ter uma segunda pele, a pele da personagem e desta forma ajuda-o a representar.” A figurinista trabalha em grande proximidade com o encenador, o cenógrafo e o iluminador.

Há um momento mágico para toda esta equipa do teatro: a estreia, a ansiedade, as superstições, os medos, os atores mais velhos perguntam-se quanto tempo mais poderão estar no palco, como comenta Márcia Breia: “O teatro é muito exigente, é o mais exigente de tudo para uma atriz. Temos de nos transformar, ir buscar algo que não está ali, alguém que não somos nós ou que nem sabíamos que éramos. Não é uma exibição pessoal, nem a satisfação da vaidade pessoal, embora quase todos caiamos nisso de vez em quando. Há quem reaja com melancolia, nesse dia de estreia, como desabafa o encenador João Lourenço: “É horrível. Para mim, o dia da estreia é sempre um dia muito triste. O maestro, por exemplo, faz parte do espetáculo. Está lá a dirigir. O encenador deixa as suas ideias e vai-se embora. Nesse momento, a criação passa para as mãos dos atores.” E assoma do texto que João Lourenço se pauta pela minúcia, a precisão, a importância que dá ao texto, confessa ser flexível: “Há encenadores que têm um estilo muito forte que se sobrepõe ao próprio texto. Vê-se que são eles. São os mais marcantes, são fantásticos. Eu olho para o palco, vejo um tapete no chão e sei logo que é o Peter Brook. Se vejo no decorrer do espetáculo que se prepara um grande final, sei que é do Peter Stein. As pessoas gostam de encontrar esse estilo. Eu não sou assim, eu tento fazer sempre diferente. É esse o meu estilo.”

E questiona-se o que é viver do teatro, uma arte que se diz constantemente estar em crise, são aqui enunciadas propostas para que o teatro prossiga, fala-se num mecenato, nas verbas da Cultura, que devia haver mais responsabilidade social das grandes empresas, na carreira profissional. Não se pode passar ao lado do teatro, segundo as estatísticas da cultura de 2019 realizaram-se nesse ano em todo o país 13516 sessões às quais assistiram perto de 2 milhões e 200 mil espetadores. Os entrevistados são unânimes: há que criar uma carreira profissional, levar os atores a sério como agentes da cultura. “Quando saímos de uma sala de teatro, depois de termos assistido a uma peça que nos interpela, que nos emociona, saímos inevitavelmente um pouco mais comprometidos connosco próprios, com os outros e com o mundo que nos rodeia.” E assim termina esta tocante ida ao teatro. 


                                                                                        Mário Beja Santos 

 



quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Cartas de Bruxelas (1)

 

                                                                                                            https://www.toli.us/art-projects/



                                                                                                        

                                                                                               O céu da boca

 

 

As descrições do universo concentracionário são unânimes quanto à fome que grassava nos campos e, sobretudo, quanto aos efeitos da fome, da fome que reduz os homens a um tubo digestivo, nas palavras de Léon-E. Halkin (À L’Ombre de la Mort), que é inacreditável em sentido próprio. Para crer nessa fome, ainda segundo Halkin, «é preciso ter conhecido a fome lenta, os reflexos de voracidade, de avareza e de cleptomania, a obsessão com o alimento, a obsessão com o que se come, com tudo o que se relaciona com tudo o que se come, para admitir o complexo da fome, para compreender a miséria sórdida e as suas tentações inconfessáveis.» E como tantos outros, também Halkin sonha com lautas refeições. Em todos os textos da literatura sobre os Lager se encontram testemunhos das intermináveis conversas sobre a confecção de refeições, a descrição minuciosa da preparação dos pratos ou a referência aos comensais e ao respectivo número.

Esclarecem as gramáticas que a catacrese é uma maneira de suprir a falta de um termo específico. Nelas dá-se uma estranha forma de comércio. Não raro, o corpo empresta ao mundo as suas designações e o mundo empresta ao corpo o nome das suas coisas. O braço da cadeira, as bocas da faca, o dente de alho ou a maçã do rosto. Por vezes, a relação é indirecta: o garfo da bicicleta, ou faz-se por intermédio do corpo de um animal: a asa da chávena, a mesa pé de galo. Macrocosmo e microcosmos são unidos apenas por aquele que pode ser todas as coisas: o homem. Lemo-lo com clareza absoluta em Primo Levi (Se Isto é um Homem):

«Mas como se poderia pensar em não ter fome? O Lager é fome, nós próprios somos fome, fome viva.

Do outro lado da rua trabalha uma draga. As tenazes, suspensas pelos cabos, abrem os maxilares dentados, libertam-se por um instante como se hesitassem na escolha, depois atiram-se para a terra argilosa e fofa, e ferram vorazmente, enquanto da cabine de comando sai um sopro satisfeito de fumo branco e denso. Depois voltam a levantar-se, dão meia volta, vomitam para trás o peso com que estão carregadas, e recomeçam. Apoiados às nossas pás, ficamos a olhar fascinados. A cada dentada das tenazes, as bocas entreabrem-se, as maçãs-de-adão dançam para cima e para baixo, miseravelmente visíveis por debaixo da pele mole. Não conseguimos desvincular-nos do espetáculo do repasto da draga.»

A fome viva, o tubo digestivo vivo não tem mais nada como objecto, identifica-se totalmente com o mundo. No paroxismo da fome, a analogia faz-se carne. Não espanta, pois, que a carne ganhe olhos, adquira visão. Outro concentracionário testemunha-o. «O cego levantou-se, e foi para a beira da sua enxerga. Tacteou a caixa onde guarda o pão. Abriu-a e retirou o pedaço que restava. Em seguida sentou-se e tirou a faca do bolso. Eu observava-o. Os seus gestos eram lentos, precisos, tão exactos como se visse o que fazia, como eu próprio via. Dir-se-ia que estava a fazer uma dissecação.» Com a última frase, Robert Antelme (A Espécie Humana) leva a cabo uma torção radical dos conceitos: faz do pão um cadáver. O que dá a vida, na sua ausência total, é já um morto. Talvez por isso o cego possa ver: disseca-se a si mesmo como morto futuro – morto de fome. «Nada. De nenhuma outra coisa a falta chama tanto esta palavra: nada.» Na vida dos homens normais, aqueles que não sabem que tudo é possível, no dizer de David Rousset, outro concentracionário, o pão não se liga ao nada precisamente porque não é tudo. Daí que seja impossível imaginar a situação concentracionária.

No recentemente traduzido, Simone Veil – A Madrugada em Birkenau, Veil, em diálogo com Paul Schaffer, insurge-se:

«SIMONE: […] Hoje, quando as pessoas vão a Birkenau ou Auschwitz, vêem uma série de barracões, observam um certo número de coisas, mas fica-se longe da transmissão de uma experiência. Quando os jovens dizem que «imaginam», não imaginam coisa nenhuma.

É inimaginável.

PAUL: A meu ver, ainda bem que eles não podem imaginar, porque indivíduos que fossem capazes de imaginar tal realidade seriam indivíduos perigosos.»

A incapacidade de imaginar liga-se por um cordão umbilical à linguagem. Movido pela esperança de poder dizer, Primo Levi põe a hipótese de uma linguagem nova, a linguagem do Lager: «Como esta nossa fome não é a sensação de quem saltou uma refeição, o nosso modo de ter frio exigiria assim um nome particular. Nós dizemos «fome», dizemos «cansaço», «medo» e «dor», dizemos «Inverno», mas são coisas diferentes. São palavras livres, criadas e utilizadas por homens livres que viviam, gozando e sofrendo, em suas casas. Se os Lager tivessem durado mais tempo, uma nova, dura, linguagem teria nascido […].» Cedo percebeu que nunca nasceria uma linguagem adequada nem ao Lager nem para falar sobre ele. A ideia de uma tal linguagem evidencia antes a sua impossibilidade. Ocorre quando já não é necessária. Quando o Lager está morto. Como Levi viu tão bem:

«Depois de arranjar a janela partida e depois de o aquecedor começar a difundir calor, pareceu que em cada um a tensão afrouxara, e foi então que Towaroski (um franco-polaco de vinte e três anos, doente de tifo) propôs aos outros doentes que oferecessem cada um uma fatia de pão a nós os três que tivemos o trabalho, e a proposta foi aceite.

Um dia antes, tal acontecimento não teria sido concebível. A lei do Lager dizia: «come o teu pão e, se puderes, o do teu vizinho», e não deixava lugar à gratidão. Isto significava claramente que o Lager estava morto.

Foi este o primeiro gesto humano que aconteceu entre nós. Julgo que se poderia fixar naquele momento o início do processo pelo qual, nós morremos, de Häftling voltámos lentamente a ser homens.»

Voltar a ser humano significa voltar à linguagem dos homens normais, à linguagem que já não é uma simples reacção de um tubo digestivo entre outros: partes extra partes. Na linguagem, evadidos da necessidade natural antinatural, os homens comungam. Por isso, a fome absoluta não é apenas a fome natural, é também a fome de justiça. Antelme disse-o talvez melhor que ninguém. A natureza recomposta não apaga o sucedido, precisamente porque o sucedido não foi um acontecimento causado pelas leis cegas da natureza.

A experiência concentracionária foi considerada pelos concentracionários que sobre ela escreveram um alargamento da perspectiva sobre o mundo, um acréscimo de lucidez.

Talvez possa contribuir para dar uma resposta à pergunta: quem é o teu Próximo? Aquele que tem fome do pão, e do pão da justiça.

O céu da boca.

 

                                                                                          João Tiago Proença







terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Quando dois grão-mestres da literatura se enfrentam a pretexto de uma biografia inexistente.

 


 

Tenho para mim que O Papagaio de Flaubert é a obra-prima absoluta de Julian Barnes (Quetzal Editores, 2019, reedição). Inventa-se um médico reformado e viúvo, Geoffrey Braithwaite, este atravessa o Canal da Mancha rumo a Ruão, a terra natal de Gustave Flaubert, move-o a curiosidade de ver o papagaio embalsamado que teria servido de modelo ao autor da Madame Bovary durante a escrita de uma obra ainda hoje aclamada, Un Coeur Simple. Este papagaio teria permanecido na sua secretária durante algumas semanas até o escritor se ter fartado daquele elemento que o ajudara na escrita.

O médico será um elemento de ligação entre o verdadeiro narrador, que se vai mostrar muito pouco interessado em maravilhar-nos com uma biografia daquele que escreveu o primeiro romance moderno, e a mais estonteante viagem à vida de um homem que além do seu talento genial vê escancarado neste romance as suas doenças, egolatria, manias, tiques, vaidades e medos, chegaremos mesmo a um momento em que o falso biógrafo põe na boca de cena um Flaubert sobreavaliado pela imponência literária, como Barnes o desenha, inigualável:

“Flaubert ensina-nos a olhar para a verdade e não temer as suas consequências; ensina-nos como Montaigne, a dormir na almofada da dúvida; ensina-nos a dissecar as partes constituintes da realidade e a observar que a natureza é sempre uma mistura de géneros; ensina-nos o uso mais exato da língua; ensina-nos a não nos aproximarmos de um livro em busca de pílulas morais ou sociais: a literatura não é uma farmacopeia; ensina a superioridade da Verdade, da Beleza, do Sentimento e do Estilo. E, se estudarmos a sua vida privada, ensina a coragem, o estoicismo, a amizade; a importância da inteligência, do ceticismo e da imaginação; a palermice do patriotismo barato; a virtude de ser capaz de ficar sozinho no quarto; o ódio à hipocrisia; a desconfiança nas teorias; a necessidade de falar com simplicidade.”

Portanto, um papagaio que é um pretexto, um médico reformado que não pesa na estrutura literária, a não ser com aquele papel que tem no teatro o ponto ou o repetidor. O que é denso é lançar o leitor em Ruão, procurar os vestígios de Flaubert, e não são muitos. Ajuda forjar um médico para dizer que Flaubert fora um belo jovem que se tornara num burguês barrigudo e calvo, produto da sífilis e da epilepsia. Médico que vai ao hospital para visitar o papagaio embalsamado, tem o nome de Lulu, é o papagaio de Félicité, a personagem principal do conto Un Coeur Simple, de que vamos saber a história: Félicité é uma criada ignorante que serve a mesma patroa durante meio século, entrega sucessivamente a um noivo boçal, aos filhos da patroa, ao sobrinho e a um velho com cancro no braço, todos irão partir ou esquecê-la, só Lulu, o papagaio, é que é permanente, e quando este morre Félicité manda embalsamá-lo. Feita esta visita tudo podia acabar aqui, pelo contrário, é a primeira estação de uma viagem quase alucinante. O médico inicia as suas pesquisas, procura lugares, dá-nos a cronologia da vida de Flaubert (1821-1880). É hora de conhecer a vida privada, a percetora inglesa que foi sua amante, e que dá muito que falar aos biógrafos de Flaubert, entra no palco alguém que possuiria tais cartas trocadas, afinal já não existem; segue-se o desconcertante bestiário de Flaubert, uma deriva fantástica, talvez com pistas palpitantes para a psicanálise. Chegamos abruptamente ao romance maldito, Madame Bovary, perseguido por obsceno, coisa terrível, uma cena de adultério numa carruagem com cortinas corridas, a viagem de Flaubert ao Egito, a caprichosa relação de Flaubert com Louise Colet, esta mesma terá direitos para falar com o leitor e desancar esse Flaubert que a passou a ignorar; há também uns arremedos de investigação policial, a tentativa de apurar em quem se baseou o escritor de Ruão para cinzelar a figura de Emma Bovary, e é a vez de Barnes falar na primeira pessoa e desancar um biógrafo de Flaubert, tudo por causa das cores dos olhos dessa mulher cujo nome vai ser traduzido em todas as línguas. A propósito ou a despropósito, Barnes rende-se ao génio de Flaubert, mas podemos imaginar os dois numa sala de espelhos, um exemplo: “Acreditava no estilo mais do que ninguém. Trabalhava afincadamente pela beleza, pela sonoridade, pela exatidão; pela perfeição, mas nunca a perfeição como monograma do escritor, como Wilde. O estilo é uma função do tema. O estilo não é imposto ao assunto, decorre dele. O estilo é a verdade para o pensamento. A palavra correta, a frase autêntica, a frase perfeita estão sempre algures por aí; o trabalho do escritor é localizá-las seja por que meio for.”

A dimensão física de Flaubert não é escamoteada: era um gigante, um metro e oitenta, a posteridade mostra-o volumoso, olhar distante, forte bigodaça, calva larga. E, logo de seguida, Barnes muda de agulha, voltamos aos amores do escritor, às viagens, à vida doméstica, ficamos até a saber que Flaubert detestava os caminhos-de-ferro. E há os livros que Flaubert não escreveu e que imaginou, prometeu uma autobiografia, o tratamento de temas vários, na sua extensa correspondência arquitetou mundos e fundos e afinal um leitor de cultura média sabe que o seu nome entrou na avenida dos clássicos graças a Madame Bovary, a Educação Sentimental, a Salammbô e a uma história deliciosa que deixou incompleta Bouvard e Pécuchet.

O monólogo de Louise Colet é um autêntico clímax, sabiamente Barnes dá-lhe uma dimensão teatral, oferece-lhe todos os requisitos para estilhaçar e esventrar Flaubert, é seguramente um dos textos mais espantosos de confidências, não nos dá tréguas, sufocante e irado:

“Alguém – talvez o próprio Gustave – queimará as minhas cartas; as suas (que eu guardei com todo o cuidado, tão contra os meus interesses) sobreviverão para confirmar os preconceitos dos que são demasiado preguiçosos para compreender. Sou uma mulher e também uma escritora que gastou da sua parcela da fama em vida; e nestes dois campos não espero muita piedade ou muita compreensão da posteridade. Se me importo? Com certeza que sim. Mas esta noite não estou vingativa; apenas resignada.”

O falso médico aparece-nos com a lista das principais personagens e situações que ajudam a compreender o enigmático Flaubert: os membros da família, os amigos; os amantes e as amantes, escritores envolvidos. Romance que acaba onde começa, no papagaio embalsamado. E há uma última excentricidade de novela policial: será que Flaubert se suicidou?

Moral da história: a vida verdadeira é a vida que vem nos livros – porque é a única que se pode interrogar.

De leitura obrigatória.



                                                                                                        Mário Beja Santos






segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Entre Oriente e Ocidente (32).

 


 

Termino hoje a série de crónicas e fotografias que dediquei aos Balcãs sob o título de Entre Oriente e Ocidente.

Percorremos uma região marcada pela Via Ignatia (cujo nome lembra o procônsul da Macedónia que a mandou construir, Gnaeus Ignatius), estrada de mais de 1100 quilómetros ligando Durrës, Bitola, Salónica e Constantinopla. Por onde deambulou São Paulo e se espalhou a civilização romana.

Região onde o império otomano dominou durante vários séculos durante os quais o culto cristão continuou a existir desde que a altura das torres das igrejas não ultrapassasse a dos minaretes. Na altura, o império estava presente em três continentes.

Uma região que, durante dezenas de anos, foi toda (com excepção da Grécia) comunista e onde existiu uma das mais duras ditaduras do Século XX, a da Albânia.

Neste momento, a União Europeia tem a tarefa enorme de associar muitos dos países da Região ao processo de desenvolvimento do continente europeu. É um imperativo geopolítico. Se o não fizer, estes Estados serão mais permeáveis à influência russa e aos investimentos chineses que têm como interesse permanente enfraquecer a capacidade da Europa de actuar em conjunto netas paragens.

Depois de termos atravessado paisagens de igrejas bizantinas e minaretes, antigas hospedarias para viajantes, restos do realismo socialista, magníficos vestígios das civilizações antigas, terminamos, por contraste, na nova Skopje, produto do controverso projecto Skopje 2014.

Aqui foram gastas quantias avultadas para reconstruir edifícios, erguer estátuas e memoriais sempre com o objectivo de glorificar o nacionalismo macedónio. Alexandre da Macedónia é a principal figura mas também Madre Teresa de Calcutá, albanesa de família mas nascida em Skopje, tem o seu memorial.

 







  

Queria agradecer aos leitores a paciência com que seguiram estas crónicas e ao António Araújo a benevolência com que as acolheu nas páginas do Malomil.

 

                                                                                Fotografias de 24 de Maio de 2022

 

                                                                                                                  José Liberato